Imortalidade ou Ressurreição - Teologia (2024)

Nos últim os anos, a tradicional visão dualística da natureza e

destino hum anos tem sofrido ataque de d iversos estud iosos da

Bíblia, filósofos e cientistas. Essa visão vem sendo considerada

contrária às Escrituras, à razão e à ciência. O livro Imortalidade ou

Ressurreição?, de Sam uele Bacchiocchi, baseado em pesquisas

recentes, desafia os cristãos a retomarem o ensino bíblico de que o

corpo e a alma são uma unidade indissolúvel, criada, redim ida e

restaurada, finalmente, por Deus.

Imortalidade ou Ressurreição? é um livro im portantíssim o para

os dias de hoje. Apresentando uma contundente argum entação

bíblica, ele desm ascara o mais antigo e possivelm ente o maior

engano de todos os tempos, a saber, que os seres hum anos

possuem alma imortal que vive independente do corpo físico. Este

livro ajudará você a entender com o este enganoso ensino da

imortalidade incondicional tem prom ovido um conjunto de

crenças erróneas que afeta negativamente a prática e o

pensam ento cristãos. O m ais importante: este livro aumentará seu

apreço pelo g lorio so plano d iv ino para sua vida presente e eterna,

com Cristo.

A UNASPRESS, Imprensa Universitária Adventista, publica

Imortalidade ou Ressurreição? com a certeza de contribuir para a

d ifusão da correta com preensão de um dos mais atuais temas

bíblicos: a natureza e destino humanos.

Agência B rasileira do ISBN

ISBN 9 7 8 - 8 5 - 8 9 5 0 4 1 ־20־

9 V 8 8 5 8 9*504201

[ U N A S P R E S S ]

Centro Universitário Adventista

de São Paulo

Campus Engenheiro Coelho

IMORTALIDADE O U RESSURREIÇÃO?

Uma abordagem bIblica sobre a natureza humana e o destino eterno

Título do original em inglês: Immortality or Ressunectionf A Biblical Study on Human

Nature and Destiny

Autor: Samuelc Bacchiocchi

Todos d o direitos reservados para a UN ASPRESS. N ão é permitida a cópia

total ou parcial sem autorização prévia dos editores.

Tradução: Azenilto de Btito

Editoração: Vanderlei Domclcs '

Revisão: André Leite, Renato Groger e Tiago Cabreira

Capa: Geyyison S. Ludugério

Diagramação: Natália Ferreira e Tiago Cabreira

Bacchiocchi, Samuele

Imortalidade ou Ressurreição? uma abordagem bíblica sobre a natureza

humana e o destino eterno

T ed.

UNASPRESS, 2007

Engenheiro Coelho, SP

1. imortalidade; 2. ressurreição; 3. Escrituras

l3 edição

3.000 exemplares

2007

Impresso no Brasil

Primed in Brasil

Para adquirir um exemplar, entre em contato com:

UNASPRESS - Imprensa Universitária Adventista

Tel. (19) 38589055־ / Home Page: www.unaspress.unasp.edu.br

n

http://www.unaspress.unasp.edu.br

—- V

...:vii

ix

Prefácio à edição em português

Prefácio à edição em inglês ...

Abreviaturas.:.... ,..-...... ....-....־■:

1

7

Introdução

C apítulo 1........ ... .......— ---------- : ■ ··------------

O debate sobre a natureza e'o destino humanos

27III—NI—II lh-J.ll—II .!-·Hl ״ IIII ··Ml*Hl ·I—·»·l-*l **— l».'l-·" r*-.■■!■-■■ ■I ···IIHI I■--"C apítulo 2 ............ .......■t....

O ponto de ;vista bíblico da natureza humana

69C apítulo 3 .......׳ ................... .. ................ .... ......... -........-

A visão da natureza do homem no NovoTestamento

1.13

145

C apítulo 4

A visão bíblica da morte

C apítulo 5 : -----------

O estado dos mortos

185C apítulo 6 ... ........................... ...;......... ,...-.....

Inferno: tormento, eterno ou aniquilamento?

2 4 3C apítulo 7 - -...— ------־-·—

A consumação da redenção

À ED1ÇÀO EM PORTUGUÊS

Durante as últimas décadas os redutos evangélicos■ têm testemunhado um

acalorado debate sobre a rejeição progressiva da doutrina da imortalidade da alma1

e seu desdobramento direto, expresso na-noçao de inferno e tormento eterno

consciente. Muitos teólogos ê eruditos bíblicos do peso de John Stott, Michael

Green, John Wenham, Philip Edgcumbe Hughes, Clark Pmnokz e Oscar Cull-

mann, entre outros, têm se afastado da. posição protestante tradicional sobre

destino da alma, para uma. adesão ao ensino bíblico. Clark Pinnock,: em seu

aclamado Four Vieun ofHdl, fala por muitos ao indicar que existem boas razões■

para se questionar o tradicional ensino■ da imortalidade da. alma e a existência

do inferno, observando, porém, “que a razão mais importante é o fato de que a

Bíblia não ensina isto. Contrário às reivindicações de tradicionalistas, estas não

são doutrinas bíblicas3.״ Isto equivale dizer que, para muitos evangélicos, hoje, o־

dualismo grego entre corpo e alma'imortal passou a ser visto com forte suspeita,.

como o ensino de uma antropologia estranha às Escrituras. Desta forma, aquilo

que. no passado foi marca quase exclusiva dos adventistas do sétimo dia, agora

ganha uma audiência evangélica mais amplà.

O presente trabalho de Samuele Bacchiocchi, Imortalidade ou Ressurreição! .

é, realmente, o que indica seu subtítulo:, ümá abordagem bíblica sobre a natu­

reza humana e o destino eterno. Tal obra representa enorme.contribuição para

a clarificação do assunto. Discutido com sólida argumentação bíblica e precisão

lógica,.o autor desacredita a noção da imortalidade, que historicamente repre­

sentou um considerável fardo dogmático na consciência da igreja cristã e um

obstáculo à compreensão do evangelho. Além disto, a idéia da imortalidade, por

séculos, foi um elemento inibidor da eseatologia bíblica; minando, por exemplo,

a fé no segundo advento è na ressurreição, além de se tornar uma porta aberta

■para os enganos associados a ela. Bacchiocchi ressalta que a crença tradicional da

imortalidade ou de que Deus faça os ímpios sofrerem em um interminável inferno

é antibíblica, mais dependente do belenismo e da dicotomia platônica, do que

da revelação. Textos bíblicos tradicionalmente utilizados por uma questionável

hermenêutica,-em apoio à tradição, recebem tratamento lúcido quanto ao seu

verdadeiro significado.

Estou seguro de que: este Volume íqi mlecerá a convicção dos que já ado­

tam a posição bíblica quanto a nãtüreza e^dèstinò bumanos, criara um positivo

ponto de contato pára o diálogo com cristãos dê convicções diferentes, além de

representar um poderoso desafio para aqueles qué sinceramente desejam saber o,,

que as Escrituras ensinam sobre tão relevante questão.

N o t a s ׳ .־ ׳ ■ ■

1 Para uma boa introdução a este debate, veja o capítulo de John Wenham, ״The Case for,.

Condicional Immortality”, ■em Uniuersãlísni anã the:Doctrine of Hell, N. M. S. Cameron ed, (Grand

Rapids: Baker Books House, 1992). Este livro é um tipo de relatório da .Quarta Conferência, de

Edinburgh sobre Dogmática Cristã,

.. . 2 Veja John R, W Stott, Essentials: A LiberaFEvangelical Dialogue (Londres: Hodder & Stou­

ghton, 1988). Stott observa que a Bíblia aponta ira direção inversa dáquild que tem sido mantido pela

tradição protestante, á qual segundo ele “deve ser submetida à suprema autoridade das Escrituras01

( p . 306- 326) . . ; . : - ־ ■ ■ ■ ■ ' ־ ■■ · ■ ■. ■■■■ ■ '

d Clark H. Pinnock, Four Views of Hell (Grand Rapids: Zondervan, 1982), p,. 145,146, Talvez

a obra mais significativa produzida, como parte deste debate entre evangélicos foi publicada em

1989. pela Inter Varsity Press e Eerdmans! The True image: The. Ongm and Destiny of Man in Christ,

do erudito anglicano Philip Edgc'umbe Hughes. Veja ainda Peter Tbon, Heaven and HeU. (Hashiville:

Thomas Nelson, 1986) ,

, A.MIN A . R o d o r , Th.D.

" P r o f e s s o r d e T e o l o g ia S is t e m á t ic a e d ir e t o r d o S e m in á r io

' ■ A d v e n t is t a La t in o - Á m e r ic a n o d e : T e ò l o g ía

U n a s p , (Ca m p u s E n g e n h e ir o C o e l h o

À EDIÇÃO EM INGLÊS

Permitam-me dar as boas-vindas a mais um esplêndido livro do Dr. Samuele

Bacchiocehi. Na tradição dé Oscâr Cullmami, o Dr, Bacchiocehi demonstrou

numa forma muito mais completa 0 contraste entre a esperança apostólica cristã

pela ressurreição dos mortos e a expectativa helenística da sobrevivência da alma

imortal. Nesta fina obra, ele oferece um estudo bíblico profundo da natureza

humana como

,

fundamental deste assunto para

toda a estrutura das crenças e práticas cristãs. Faz-se, pois, imperativo que dili-

gentemente examinemos o que a Bíblia realmente ensina sobre esse tema vital.

Isso faremos ao investigar nos capítulos 2 e 3 o ponto de vista bíblico da natureza

humana, e nos capítulos 4 a 7 o ensino bíblico sobre o destino humano.

R e f e r ê n c ia s

1 John A. X Robinson, The Body (Londres, 1952), 16.

2 Reínhold Niebuhr, The Nature anã Destiny o/Man (N. York, 1941), 4-17.

3 George E. Ladd, A Theology of the New Testament {Grand Rapids, 1975), 457.

4 John W. Cooper, Body, Soul and Life Everlasting. Biblical Anthropology arid the Monism-Dualism

Debate (Grand Rapids, 1989), 3.

5Ibid., 1.

6 Ibid., 4.

7 Oscar Cullmann, Immortality of the Soul or Resurrection of the Dead? The Witness of the New Testa-

merit (N. York, 1958), 5. ,

8 C. H. Pinnock, “The Conditional View”, in Four Views on Heíl, W. Crockett, ed., (Grand Rapids,

1993), 161.

9 Ibid., 162.

10John W. Stott e David Edwards, Essentials: A Liberal-Evangelical Diabgue (Londres, 1988),

319-320.

11 Ver Christianity Today (I6de junho de 1989), 60-62. No volume da conferência, John Ankerberg

alega que negar o ponto de vista tradicional da imortalidade da alma e da punição eterna do

inferno, equivaleria a negar a divindade de Cristo (Ver K. S. Kantzer e Carl F. Henry., eds.,

Evangelic«/ Affirmations [Grand Rapids, 1990]}.

12 Citado em G. C. Berkouwer, The Return of Christ (Grand Rapids, 1972), 34· A mesma opinião é

expressa por Russell Foster Aldwinckle, Death in the Secular City (Londres, 1972) , 82.

13 Conrad Bergendoff, “Body and Spirit in Christian Thought”, The Lutheran Quarterly 6 (agosto

de 1954), 188-189.

14Uma excelente pesquisa sobre como o dualismo corpo-alma tem contribuído para o surgimento

do secularísmo moderno e a distinção entre a vida secular e espiritual ou religiosa se acha em

Brian Walsh e Richard Middleton, “The Development of Dualism”, capítulo 7 em The Transfor-

ming Vision (Downers Grove, Illinois, 1984).

13 Citado por D. R. G, Owen, Body and Soul A Study on the Christkm View of Man (Filadélfia, 1957), 28.

16 Do poema de John Donne, “The Anniversary”.

O DEBATE SOBRE A NATUREZA E O DESTINO HUMANOS

17 Henlee H. Barnette, The Church and Ecological Crisis (N. York, 1972), 65.

,a Encyclopedia Americana, ed- de 1983, s, v. ‘*Holistic medicine294 ,״.

19 Citado por Norman Cousins, Anatomy of an illness (N. York, 1979), 133. Entre muitos livros sobre

medicina holística, os seguintes merecem destaque: David Allen et al., Whole Person Medicine

(Downers Grove, Illinois, 1980); Ed Gaedwag, ed., Inner Balance: The Power o f Holistic Healing

(Englewood Cliffs, NJ, 1979); Morton Walker, Total Health: The Holistic Alternative to Traditional

Medicine (N. York, 1979); Jack La Patra, Healing the Coming Revolution in Holistic Medici.

2 5

CAPÍTULO 2

O PONTO DE VISTA BÍBLICO DA

NATUREZA HUMANA

A pergunta suscitada pelo salmista ‘que é o homem» que dele Te lembres?”

(SI 8:4) é uma das indagações mais fundamentais que alguém teria a considerar. É

fundamental porque sua resposta determina o modo pelo qual vemos a nós mes­

mos, a este mundo, a redenção e a nosso destino final

Nenhuma era aprendeu tanto e tantas coisas sobre a natureza humana do

que a nossa, contudo nenhuma era sabe menos a respeito do que o homem re­

almente é. Tendo perdido sua consciência de Deus, muitas pessoas hoje estão

basicamente preocupadas com sua existência presente. A perda de consciência

de Deus torna muitas pessoas incertas quanto ao significado da vida, porque é

somente com referência a Deus e a sua revelação que a natureza e destino da vida

podem ser verdadeiramente percebidos.

A questão da natureza humana tem sido preocupação constante na histó­

ria do pensamento ocidental No capítulo 1 fizemos notar que, historicamente, a

maioria dos cristãos tem definido a natureza humana dualisticamente, que con­

siste de um corpo material, mortal, e uma alma imaterial, imortal, que sobrevive

ao corpo na morte. A começar com o Iluminismo (um movimento filosófico do

século 18), tentativas têm sido feitas para definir o homem como uma máquina

que faz parte de um gigantesco maquinísmo cósmico. Sendo assim, os seres hu­

manos estariam aprisionados inescapavelmente num universo determinístico e

seu comportamento é definido por forças tão impessoais e involuntárias quanto

fatores genéticos, secreções químicas, educação, criação e condicionamento so-

Im o r t a l id a d e o u R e s s u r r e iç ã o ?

ciai. As pessoas não têm uma alma imaterial, imortal, somente um corpo mortal,

material, que é condicionado pelo determinismo do maquinário cósmico.

Essa visão materíalístíca deprimente que reduz os seres humanos à condição

de uma máquina ou de um animal nega o ponto de vista bíblico do homem criado

à imagem de Deus. Em vez de ser ,‘semelhante a Deus”, o ser humano é reduzido a

ser “como um animal”. Talvez como reação a essa visão pessimística, vários cultos

e ideologias modernas e pseudo-pagãs (como a Nova Era) deificam os seres huma­

nos. O homem nem é ”semelhante a um animal”, nem “semelhante a Deus”, ele é

deus. Ele conta com poder divino inerente e recursos que aguardam ser liberados.

Esse novo evangelho humanístico é popular hoje em dia porque desafia as pessoas

a buscarem a salvação dentro de si mesmas, porque as desafia a explorar e liberar

o potencial e recursos que, no seu íntimo, estão adormecidos.

O que estamos vivenciando hoje é uma violenta reversão do pêndulo de um

ponto de vista materialista extremo da natureza humana para um ponto de vista de

deificação extremo e místico. Nesse contexto, as pessoas são confrontadas com duas

escolhas; ou os seres humanos nada são, senão máquinas pré ׳־programadas, ou são

divinos com potencial ilimitado. À resposta cristã a esse desafio deve ser buscada

nas Sagradas Escrituras que propiciam a base para definir nossas crenças e práticas.

Nosso estudo revela que a Escritura ensina que nem somos máquinas programadas,

nem seres divinos com potencial ilimitado. Somos seres criados à imagem de Deus e

dele dependentes para nossa existência neste mundo e no mundo porvir.

O b je t iv o s d o c a p ít u l o

Este capítulo busca compreender o ponto de vista veterotestamentário da

natureza humana examinando quatro termos antropológicos proeminentes: alma,

corpo, coração e espírito. Os vários significados e empregos desses termos são

analisados para determinar se qualquer deles é alguma vez utilizado para denotar

uma substância imaterial que age independentemente do corpo.

Nosso estudo indica que o Antigo Testamento não distingue entre os órgãos

físicos e espirituais. Isso porque o conjunto de funções humanas mais elevadas,

tais como sentir, pensar, saber, amar, observar os mandamentos de Deus, louvar

e orar é atribuído não só aos órgãos "espirituais” da alma e espírito, mas também

aos órgãos físicos como o coração e, ocasíonalmente, aos rins e vísceras. A alma

(nephesh) e o espírito (ruach) são empregados no Antigo Testamento para denotar,

não entidades imateriais capazes de sobreviver ao corpo após a morte, mas uma

gama completa de funções físicas e psicológicas.

Ao empreendermos esta investigação devemos ter em mente que os escrito­

res bíblicos não estavam familiarizados com a moderna fisiologia ou psicologia. Eles

não sabiam necessariamente, por exemplo, que a sensação que experimentamos

U ΡΟΝΤΟ DE VISTA BÍBLICO DA NATUREZA HUMANA

quando nossa mão toca um objeto é causada por nervos que transmitem a informa­

ção ao cérebro, A palavfa “cérebro” não ocorre na Bíblia em inglês [N.T.; nem em

português], Os autores bíblicos nada sabiam do sistema nervoso ou respiratório. Na

maior parte eles definiam a natureza humana em termos do que viam e sentiam.

Este capítulo divide-se em cinco partes principais. A primeira parte examina

o que o relato da criação nos diz a respeito da constituição original da natureza

humana, As quatro partes subseqüentes

,

analisam os quatro termos fundamen­

tais da natureza humana que encontramos no Antigo Testamento: alma, corpo,

coração e espírito, Nossa investigação indica que todos esses termos não descre-

vem substâncias inteiramente diferentes, cada uma com suas próprias funções

distintas, mas as capacidades e funções inter-relacionadas e integradas da mesma

pessoa. O fato de que uma pessoa consiste de várias partes que são integradas,

inter-relacionadas e funcionalmente unidas, não deixa margem à noção da alma

ser distinta do corpo. Deste modo, remove a base para a crença na sobrevivência

da alma por ocasião da morte do corpo.

A NATUREZA HUMANA NA CRIAÇÃO

C r i a ç ã o , q u e d a e r e d e n ç ã o

Ao buscar entender o ponto de vista bíblico da natureza humana, devemos

reconhecer primeiro que o sentido da vida humana é definido nas Escrituras em

termos da criação, a queda no pecado e o plano de Deus da redenção. Essas três

verdades básicas são fundamentais para entender a perspectiva bíblica da natu­

reza e destino humanos. Cronologicamente, essas são as primeiras três verdades

que encontramos em Gênesis 1 a 3, onde ocorre o primeiro relato da criação, da

queda e da promessa de redenção. Tematicamente, tudo o mais nas Escrituras é

um desenvolvimento desses três conceitos. Eles propiciam o prisma mediante o

qual a existência humana, com todos os seus problemas, é vista e definida.

Quando Jesus abordou a questão do casamento e divórcio, ele primeiro a ana­

lisou em termos do que o casamento deveria significar quando da criação. A partir

disso, Ele a considerou pela perspectiva da queda, porque o pecado explica a razão

da permissão para o divórcio (Mt 19:1-8), Semelhantemente, Paulo apela â criação,

à queda e à redenção para explicar a distinção dos papéis entre homens e mulheres

(ICo 11:3-12; lTm 2:12-14), bem como sua igualdade em Cristo (G13:2S).

Quando consideramos a natureza humana a partir da perspectiva bíblica da

criação, queda e redenção, imediatamente vemos que a criação nos fala a respeito

da constituição original da natureza humana; a queda a respeito de sua condição

presente; e a redenção, a respeito da restauração sendo realizada no presente e

Im ortalidade ou Ressurreição?

consumada no futuro- Assim, uma definição bíblica abrangente da natureza hu­

mana deve ser levada em consideração coiti o que a natureza humana era por

ocasião da criação, o que se tomou após a queda, e o que é agora e se tornará no

futuro como resultado da redenção,

A CRIAÇÃO DO HOMEM

O ponto de início lógico para o estudo da perspectiva bíblica da natureza

humana é o relato da criação do homem. Empregamos aqui o termo “homem”

como utilizado nas Escrituras, ou seja, incluindo tanto o homem quanto a mulher.

A primeira importante declaração bíblica é encontrada em Gênesis 1:26 e 27:

“Então disse Deus: ‘Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa seme­

lhança’ ... Assim criou Deus o homem à sua própria imagem, à imagem de Deus o

criou; macho e fêmea os criou”.

O primeiro relato da criação do homem nos diz que a vida humana teve

início, não como resultado de forças naturais casuais ou uma mutação aciden­

tal no mundo animal, mas como resultado de um ato criativo de Deus. Fql

após o Senhor ter chamado à existência a Terra com toda a sua vegetação e

animais que Ele anunciou a criação do homem. E como se as pessoas fossem o

enfoque específico da criação de Deus. A impressão transmitida pela narrativa

é de que quando Deus chegou à criação do homem, passou a dedicar-se a algo

diferente e distinto.

Ao fim de cada estágio da criação do mundo, Deus parava para contemplar o que

havia feito e considerava-o como “bom״ (Gn 1:4, 10, 12, 18, 21, 25). Então, Deus se

dispôs a criar um ser que pudesse ter o senhorio sobre sua criação; um ser com o qual

Ele pudesse caminhar e conversar. O advérbio “então”, no início do verso 26, sugere

que a criação do homem foi algo especial Todos os atos criativos de Deus antenores

são apresentados como uma série contínua ligada pela conjunção V ’ (Gn 1:3, 6, 9,

14, 20, 24). Mas quando a ordem cósmica da criação foi concluída e a Terra estava

pronta para sustentar a vida humana, então o Senhor expressou sua intenção de criar o

homem. “Então disse Deus, façamos o homem” (Gn 1:26). Após criar o homem, Deus

pronunciou “muito bom”, considerando sua criação inteira (Gn 1:31).

U m a c r ia ç ã o especial de D eus

Essa declaração original, divina, sugere duas verdades fundamentais. Primei-

ratnente, o homem é uma criação especial de Deus cuja vida depende dele. Sua vida

deriva de Deus e continua somente por causa da misericórdia de Deus. Esse senso

de contínua dependência humana do Altíssimo é básico ao entendimento bíblico

da natureza humana. Deus é o Criador e os seres humanos são criaturas depen­

dentes dele para sua origem e continuação de sua existência.

O PONTO PH VISTA RÍFSÜCO LIA NATUREZA HUMANA

Em segundo lugar, o homem e distinto cie Deus. Os seres humanos têm um iní-

eio temporal, mas Deus é eterno, O Senhor não é o homem para que possa morrer.

As Escrituras destacam o contraste entre os atributos infinitos de Deus como

Criado! e a limitação finita do homem como criatura. Esta é uma consideração

importante que se deve ter em mente quando se define o ponto de vista bíblico

da natureza humana. A revelação divina global apresenta os seres humanos como

criaturas que dependem de Deus, mas são distintas dele (Is 45:11; 57:15; Jó 10:8-

10). Contudo, a despeito da ênfase na dependência do homem de Deus como

criatura, eíe permanece numa posição de relacionamento especial com o Criador.

"O caráter distinto de sua humanidade coloca-o à parte não só das outras criatu-

ras de Deus, mas também para o serviço amorável e grato a seu Criador1״.

■*L

A IMAGEM DE D e US

A característica distintiva da relação do homem com Deus é expressa

na declaração de sua criação a imagem de Deus. "Façamos o homem à nossa

imagem, conforme a nossa semelhança״ (Gn 1:26; cf. 5:1-3; 9:6). Tentativas

elaboradas têm sido feitas para definir o que a ״imagem de Deus״, segundo a

qual o homem foi criado, vem a ser.- Alguns afirmam tratar-se da semelhança

tísica entie Deus e o homem. 1 O problema com essa posição é que pressupõe que

Deus tem uma natureza corpórea semelhante á dos seres humanos. Tal idéia é

desmentida pela declaração de Cristo de que "Deus é Espírito” (Jo 4:24), o que

sugere que Ele não é limitado por espaço ou matéria, como nós. Ademais, os

termos bíblicos para o aspecto físico da natureza humana (bashat, suvks — carne,

corpo) nunca são aplicados a Deus.

Outros julgam que a imagem de Deus é o aspecto não-material da natureza

humana, ou seja, sua alma espiritual. Assim, R. Laird-Harris declara:

No mundo, só o homem é um ser espiritual, moral e racional. Ele possui uma alma

concedida por Deus e a inferência é que essa alma, sendo feita à imagem de Deus,

não se sujeita aos limites de tempo e espaço.4

Numa linha semelhante de pensamento, Calvino afirma: ״Não se pode

duvidar que o correspondente apropriado da imagem á a alma״, mas ele acres­

centa que não há qualquer parte no homem, nem mesmo o seu corpo, que

não seja adornada com alguns raios de sua glória”.· Tal ponto de vista pres­

supõe um dualismo entre o corpo e a alma que não tem respaldo no relato da

criação do Gênesis. O homem não recebeu uma alma de Deus; ele foi feno

uma alma vivente. Além disso, na historia da criação os animais também são

mencionados como tendo dentro de si uma alma vivente, contudo, não foram

criados à imagem de Deus.

Imortalidade ou R essurreição?

Alguns interpretam a imagem de Deus no homem como sendo a combina״

ção da masculinidade e feminilidade humanas.6 A base para essa interpretação é

primaria mente a proximidade da expressão “macho e fêmea os criou* com a de­

claração “à imagem de Deusos criou״ (Gn 1:27). Incontestavelmente, há alguma

verdade teológica na noção de que a imagem de Deus é refletida na comunhão de

macho-fêmea como iguais.

,

Mas o problema com essa interpretação é que êla faz

muito de tão pouco para reduzir a imagem de Deus exclusivamente à comunhão

macho-fêmea como iguais.

A interpretação da imagem de Deus como sendo a combinação da mascu­

linidade e feminilidade humanas tem levado alguns a transformar Deus num ser

andrógino, metade macho e metade fêmea. Tal ponto de vista é estranho à Bíblia,

uma vez que Deus não carece de um correspondente feminino para completar

sua identidade. Um ato de Deus é muitas vezes comparado com o de uma mãe

compassiva (Is 49:15), mas a pessoa de Deus é revelada como a de nosso Pai, espe­

cialmente por meio de Jesus Cristo.

I m agem c o m o ca pa c id a d e pa ra refletir D eus

Em nosso ponto de vista, a imagem de Deus é associada, não ao homem

como macho e fêmea, ou a uma alma imortal atribuída a nossa espécie, mas à ca­

pacidade da humanidade em ser e fazer, num nível finito, o que Deus é e faz num

nível infinito. O relato da criação parece estar dizendo que ainda que o sol reine

no dia e a lua na noite, e os peixes reinem no mar, a humanidade reflete a imagem

de Deus tendo domínio sobre todos esses reinos (Gn 1:28-30).

No Novo Testamento, a imagem de Deus na humanidade nunca ê associada

à comunhão macho-fêmea, ou à semelhança física, ou uma alma não-material,

espiritual, mas com as capacidades morais e racionais: “E vos revestistes do novo

homem que se refaz para o pleno conhecimento, segundo a imagem daquele que

o criou” (Cl 3:10 cf. Ef 4:24)· Semeíhantemente, a conformidade com a imagem

de Cristo (Rm 8:29; ICo 15:49) é geralmente entendida em termos de justiça e

santidade. Nenhuma dessas qualidades ê possuída pelos animais, O que distingue

as pessoas dos animais é o fato de que a natureza humana de forma inerente tem

possibilidades semelhantes a Deus. Em virtude de ser criado à imagem de Deus, o

ser humano é capaz de refletir o caráter divino etn sua própria vida.

Ser criado à imagem de Deus significa que devemos ver-nos como essendal-

mente valiosos e ricamente investidos com significado, potencial e responsabilidades.

Significa que fomos criados para refletir a Deus em nossos pensamentos e ações. De­

vemos ser e fazer numa escala finita o que Deus é e faz numa escala infinita.

A Bíblia nunca menciona a imortalidade em ligação com a imagem de Deus

no homem. A árvore da vida representava a imortalidade na comunhão com o

Ο ΡΟΝΤΟ DE VISTA BÍBLICO DA NATUREZA HUMANA

Criador, mas como resultado do pecado, Adão e Eva foram expulsos do jardim,

sendo assim privados de acessar a fonte de vida contínua na presença de Deus.

Por que devia a imagem ser encontrada na imortalidade mais do que o seria na

onisciência, onipotência ou onipresença? Nenhum desses outros atributos divinos

foi atribuído ao homem como parte da imagem de Deus, mesmo antes da queda.

Nada nas Escrituras sugere que o homem transmite a imagem de Deus por pos­

suir atributos divinos, como a imortalidade. Não existem razões válidas para isolar

a imortalidade como o único atributo divino que se tenciona expressar pela frase

“imagem de Deus”. Ao contrário, as Escrituras negam isso, como veremos.

G ê n e s is 2 :7 : “ u m a a l m a v iv e n t e ״

A segunda importante declaração bíblica para entender a natureza huma­

na se encontra em Gênesis 2:7. Não surpreende que este texto forme a base da

discussão concernente à natureza humana, uma vez que propicia o único relato

bíblico de como Deus criou o homem. O texto menciona: “Então formou Deus

o homem do pó da terra, e soprou-lhe nas narinas o fôlego de vida; e o homem

tornou-se uma alma vivente” (Gn 2:7).

Historicamente, este texto tem sido lido através das lentes do dualismo clás­

sico. Tem-se presumido que o fôlego de vida soprado nas narinas do homem foi

simplesmente uma alma imaterial, imortal, que Deus implantou em seu corpo.

Assim, Gênesis 2:7 tem sido historicamente interpretado à base do dualismo· tra­

dicional corpo-alma.

O que tem conduzido a essa interpretação errônea é o fato de que a palavra

hebraica nephesh} traduzida por “alma” em Gênesis 2:7, tem sido entendida con­

forme a definição-padrão do dicionário Webster para alma: “A essência imaterial,

princípio animador, ou causa atuante de uma vida individual”. Ou, “o princípio

espiritual incorporado nos seres humanos”.7 Essa definição-padrão reflete o ponto

de vista platônico da alma-psychê como sendo uma essência imaterial, imortal que

reside no corpo, ainda que não sendo parte dele.

Esse ponto de vista prevalecente leva as pessoas a lerem as referências à

alma-nep/iesTi no Antigo Testamento à luz do dualismo platônico, ao invés do

holismo bíblico. Como Claude Tresmontant expressou: “ao aplicar à palavra he­

braica nephesh [alma] às características da pS3?chê [alma] platônica, (...) deixamos

que nos escape o real sentido de nephesh [alma] e, além disso, somos deixados com

inumeráveis pseudo-problemas”8.

As pessoas que lêem as referências do Antigo Testamento a nephesh (que na

Versão Kíng James recebe a tradução de “alma” 472 vezes) com uma mentalidade

dualística terão grande dificuldade em entender o ponto de vista holístico da na­

tureza humana. Segundo esse ponto de vista, o corpo e a alma são a mesma pessoa

Im ortalidade o u R essurreição7

vista de diferentes perspectivas. Essa pessoas enfrentarão problemas em aceitar o

significado bíblico de “alma” como o princípio que anima tanto a vida humana

quanto a animal Além disso, estarão em apuros para explicar aquelas passagens

que falam de uma pessoa morta como uma alma-nephesh morta (Lv 19:28; 21:1! l l i_

22:4; Nm 5:2; 6:6, 11; 9:6, 7, 10; 19:11, 13: Ag 2:13), Para elas, é inconcebível

que uma alma imortal possa morrer com o corpo.

O SENTIDO DE “ALMA VIVENTE״

A prevalecente noção de que a alma humana é imortal tem levado mui­

tos a interpretarem a declaração “e o homem tornou-se uma alma vivente” (Gn

2:7) como significando “o homem obteve uma alma vivente”. Essa interpre­

tação tem sido desafiada por numerosos eruditos que são sensíveis à confusão

relativa à diferença entre o conceito dualístico grego e a concepção holística

bíblica da natureza humana.

Aubrey Johnson, por exemplo, explica que nephesh^ahna em Gênesis 2:7 de­

nota o homem integral, com ênfase sobre sua consciência e vitalidade.9 Seme­

lhantemente, Johannes Pedersen, falando da criação do homem em seu clássico

estudo Israel, escreve:

34 A base de sua essência era a ffágil substância corpórea, mas pelo sopro de Deus foi

transformada e tomou-se uma nephesh, uma alma. Não é dito que o homem foi suprido

com uma nephesh, e por isso a relação entre corpo e alma é completamente diferente

desse ponto de vista. Tal como ele é, o homem em sua essência total é uma alma.10

Pedersen prossegue fazendo notar que

no Antigo Testamento somos constantemente confrontados com o fato de que o ho­

mem, como tal, é uma alma. Abraão partiu para Canaã com sua propriedade e todas

as almas que lhe pertenciam (Gn 12:51, e quando Abraão conseguiu os despojos em

sua expedição guerreira contra os grandes reis, o rei de Sodoma exortou-o a dar-lhe

as almas e conservar os bens (Gn 14:2 lh Setenta almas da casa de Jacó foram para

o Egito (Gn 46:27: Êx 1:5). Toda vez que um censo é levantado, a pergunta que

surge sempre é: quantas almas há? Nesse e em outros numerosos lugares podemos

substituir pessoas por almas.11

Comentando Gênesis 2:7, Hans Walter Wolff pergunta:

O que nephesh [alma] significa aqui? Certamente não alma [no sentido dualístico

tradicional]. Nephesh foi designado para ser visto junto com a forma completa do

homem, e especíalmente com sua respiração; além disso o homem não tem nephesh

[alma], ele é nephesh, ele vive como nephesh.n

LJ PONTO Oh VISTA BÍBLICO DA NATUREZA HUMANA

O fato de que a alma na Bíblia se apresenta como a pessoa viva integral é

reconhecido mesmo pelo erudito católico Dom Wulstan Mork, que se expressa

em termos semelhantes;

É nephesh [alma] que dá vida ao bashar [corpo], mas não como uma substância

,

distiiv

ta. Adão não temnephesh [alma]; ele é nephesh [alma], tal como ele é bashar [corpo].

O corpo, longe de ser dividido de seu princípio vital, é a nephesh [alma] visível13

De uma perspectiva bíblica, o corpo e a alma não são duas substâncias sepa­

radas (uma mortal e outra imortal) que residem juntas dentro do ser humano, mas

duas características da mesma pessoa. Johannes Pedersen admiravelmente resume

este ponto com uma declaração que tem se tomado proverbial: “O corpo é a alma

em sua forma exterior14״. O mesmo ponto de vista é expresso por H. Wheeler Ro-

binson numa declaração igualmente famosa: “A idéia hebraica de personalidade é

a de um corpo vital, e não (como para os gregos) a de uma alma encarnada”15;

Em suma, podemos dizer que a expressão “o homem tomou-se uma alma

vivente — nephesh hayyah” não significa que por ocasião da criação seu corpo foi

dotado de uma alma imortal, uma entidade separada, distinta do corpo. Em vez

disso, significa que como resultado do divino soprar do “fôlego de vida" no cor­

po inanimado, o homem tomou-se um ser vivente, que respira, nada maís, nada

menos. O coração começou a bater, o sangue a circular, o cérebro a pensar, sendo

todos os sinais vitais ativados. Declarado em termos simples, “uma alma vivente"

significa “um ser vivo”.

As implicações práticas dessa definição são destacadas numa maneira suges­

tiva por Dom Wulstan Monk:

O homem como nephesh [alma] significa que é sua nephesh [alma] que vai jantar, que

apanha um bife e o come. Quando vejo outra pessoa, o que vejo não é meramente

o seu corpo, mas sua nephesh [alma] visível, porque, nos termos de Gênesis 2:7, isso

é o que constitui o homem - uma nephesh vivente. Os olhos têm sido chamados “a

janela da alma”. Isso é realmente uma dicotomia. Os olhos, enquanto pertencerem

à pessoa viva, são em si próprios a revelação da alma.10

O S ANIMAIS COMO ״ ALMAS VIVENTES״

O sentido de “alma vivente” como simplesmente “ser vivente” é apoiado

pelo emprego da mesma frase “alma vivente - nephesh hayyah" para os animais.

Em muitas traduções bíblicas, como é o caso da Versão Kíng James, esta frase

aparece pela primeira vez em Gênesis 2:7, quando se descreve a criação de Adão.

Mas devemos observar que esta não é a primeira ocasião em que tal frase surge na

Bíblia hebraica. Também a encontramos em Gênesis 1:20. 2L 24 e 30. Em todos

Imortalidade ou Ressurreição?

esses quatro versos “alma vivente - nephesh hayyah” foi traduzida como “criaturas

viventes” em referência aos animais, mas os tradutores da maioria das versões em

inglês escolheram traduzir “criatura vivente” em lugar de “alma vivente”. O mes­

mo é verdade com relação a outras passagens após Gênesis 2:7, onde os animais

são referidos como “criaturas viventes” em lugar de “almas viventes” (Gn 2:19,

9:10: 12 e 15■ 16: Lv 11:46).

Por que os tradutores da maioria das versões em inglês traduzem a mesma

frase hebraica nephesh hayyah como “alma vivente” nas referências a seres huma­

nos, e “criaturas viventes” quando se referem aos animais? A razão é simples: es­

tão condicionados pela crença de que os seres humanos têm uma alma imaterial,

imortal, o que não corresponderia aos animais. Em consequência, empregam a

palavra “alma” para homem, e “criatura” para animais ao traduzirem o mesmo ter­

mo hebraico nephesh. Norman Snaith condena essa interpretação como “bastante

repreensível”, e declara ser

uma grave reflexão pot parte dos revisores !tradutores da Versão Autorizada, em

inglês] que conservaram essa enganosa diferença na tradução. (...) A frase he­

braica devia ser traduzida exatameme do mesmo modo em ambos os casos. Agir

diferente disso é enganar todos aqueles que não leem o hebraico. Não há descul­

pas nem. defesa apropriada. A tendência de ler 1alma imortal’ no sentido hebraico

36 nephesh e traduzi-la de acordo com essa interpretação é muito antiga, e pode ser

vista na Septuaginta...17

Basii Atkinson, um ex-bibliotecário da Universidade Cambridge, oferece a

mesma explicação.

Nossos tradutores [da Versão Autorizada] ocultaram este fato de nós, presumivel­

mente porque estavam tão presos a noções teológicas atuais do significado da pa­

lavra *alma5 que ousaram não traduzi-la por ela ser uma palavra hebraica que faz

referência a animais, embora o tenham feito na margem [da Versão Autorizada]

dos versos 20 e 30. Nesses versos, encontramos “criaturas que se movem, ou alma

vivente” (hebraico - v. 20); “toda alma vivente (hebraico nephesh) que se move” (v.

21); “produza a terra almas viventes (hebraico nephesh) segundo sua espécie” (v. 24);

e também “e a toda besta da terra, e a toda ave do ar, e a todos os répteis da terra,

nos quais há alma vivente” (hebraico nephesh ־־ v. 30).18

O emprego de nephesh-alma nessas passagens em referência a toda sorte

de animais revela claramente que nephesh não é uma alma imortal dada ao ho­

mem, mas o princípio animador de vida ou o “fôlego de vida”, presente tanto

no homem quanto no animal. Ambos são caracterizados como almas, em con­

traste com as plantas. A razão por que as plantas não são almas é possivelmente

porque não possuem órgãos que lhes permitam respirar, sentir dor e alegria, ou

Ο ΡΟΝΤΟ DE VISTA BÍBLICO DA NATUREZA HUMANA

mover-se em busca de alimento. O que distingue a alma humana da dos animais

é o fato de que os seres humanos foram criados à imagem de Deus, isto é, com

possibilidades semelhantes às de Deus, não disponíveis aos animais.

O ponto importante a se notar nestas alturas é que tanto o homem quanto

o animal sdo almas. Como Atkínson assinala,

eles [o homem e os animais] não são criaturas bipartites, que consistem de uma

alma e um corpo que podem ser separados e prosseguir vivendo. Suas almas são a

totalidade deles e compreende seus corpos, bem como suas faculdades mentais. São

referidos como lenào alma, ou seja, sendo conscientes, para distinguidos dos objetos

inanimados que não têm vida. Do mesmo modo, podemos dizer que um homem ou

um animal é um ser consciente e tem um ser consciente.1̂

O termo alma-nephesh é empregado tanto para as pessoas quanto para os

animais porque ambos são seres conscientes. Ambos compartilham o mesmo

princípio animador de vida, ou “fôlego de vida״.

A lma e s a n g u e

Adicionalmente às quatro passagens que consideramos em Gênesis 1, há

19 outras no Antigo Testamento onde a palavra nephesh é aplicada aos animais.

Desejamos considerar duas delas porque ajudam a esclarecer adicíonalmente o

sentido de ״alma vivente״ em Gênesis 2:7. Essas passagens são de especial inte­

resse porque associam nephesh com sangue. Em Levítico 17:11, lemos: “Porque

a vida da carne está no sangue”. “Vida” é tradução do hebraico nephesh. Desse

nodo, a passagem menciona: “A alma da carne está no sangue”.

No verso 14 do mesmo capítulo lemos: “Portanto a vida de toda carne é o seu

sangue; por isso tenho dito aos filhos de Israel: Não comereis o sangue de nenhuma

carne, porque a vida de toda carne é o seu sangue”. Aqui a palavra “vida” é empre­

gada em cada caso para traduzir o hebraico nephesh, então o texto devia ser real-

Mente lido assim: “Pois a alma de cada criatura está no seu sangue...” {ver também

Dc 12:23). Essa frase “toda criatura״ sugere que as referências a sangue aplicam-se

Canto ao homem quanto aos animais. Deste modo, como Atkínson assinala, “temos

aqui um lampejo muito importante revelado quanto à essência da natureza huma­

na. A alma e o sangue são idênticos”20.

A razão por que a alma -nephesh é igualada ao sangue presumivelmente é

porque a vitalidade da vida-nephesh reside no sangue. No sistema sacrifical, o

sangue expiava pelo pecado por causa de sua associação com nephesh-vida. A

■acança sacrifical de um animal significava que uma nephesh-vida fora sacrifi­

cada para expiar pelos pecados de outra nephesh-vida.

Im o r ta lid a d e o u R essurreição?

Tory Hoff de forma muito apropriada observa que

a relação hebraica entre nephesh [vida] e sangue revela que nephesh [vida] transmite

um aspecto

,

“sagrado” para a vida humana. Nephesh [vida] foi uma obra de Deus (Gn

2:7)t estava no cuidado de Deus (Pv 24:12), achava-se em suas mãos (Jó 12:10), e a

Ele pertencia (Ez 18:4, 20). Os hebreus criam que eram proibidos de se intrometer

ou interferir na existência como nephesh [vida] uma ver que era uma existência

recebida além do homem. (...) Os hebreus eram proibidos de comer carne ainda

contendo sangue porque o ato interferia com nephesh [vida] e, portanto, tornava-se

ofensivo a Deus. A equação entre sangue e nephesh [vida) significava que consumir

sangue era uma forma de assassinato. Um estava sustendo a própria vida [nephesh]

de uma pessoa com o nephesh [vida] sagrado de outra.21

A discussão precedente da associação de nephesfi-alma com animais e sangue

tem servido para esclarecer adicionalmente o significado de “alma vivente” (Gn

2:7) como aplicado a Adão. Temos visto que esta frase não significa que, por ocasião

da criação, Deus dotou o corpo humano de uma alma imortal, mas simplesmente

que o homem tornou-se um ser vivente em resultado do sopro divino dentro do cor­

po inanimado. Esta conclusão é apoiada pelo fato de que o termo nephesh é também

empregado para descrever animais e sangue. O último igualava-se a nephesh-alma

porque era visto como manifestação tangível da vitalidade da vida. Antes de explo­

rar adicionalmente o significado de nephesh-alma no Antigo Testamento, precisa­

mos considerar o significado de “fôlego de vida” em Gênesis 2:7.

O FÔLEGO DE VIDA j T, v׳c *0 ־

O que é o “fôlego [neshamah] de vida” que Deus soprou nas narinas de Adão?

Alguns presumem que o ,,fôlego de vida” é a alma imortal que Deus implantou no

corpo material de Adão. Essa interpretação não pode ser legitimamente apoiada

pelo significado e emprego bíblico de “fôlego de vida” porque em parte alguma da

Bíblia é o “fôlego de vida” identificado com uma alma imortal.

Na Escritura, o “fôlego [neshamah] de vida” é o poder transmissor de vida

associado ao sopro de Deus. Assim, lemos em j ó 33:4, “O Espírito de Deus me fez;

e o sopro [ruach] do Todo-Poderoso me dá vida”. O paralelismo entre “o Espírito

de Deus” e o “sopro do Todo-Poderoso” sugere que os dois são usados intercam-

biavelmente porque ambos referem-se ao dom da vida concedido por Deus à suas

criaturas. Outro claro exemplo se acha em Jsaías 42:5: “Assim diz Deus, o Senhor

que criou os céus e os estendeu (...) que dá fôlego (neshamah] de vida ao povo que

nela está, e o espírito [ruach] aos que andam nela”. Aqui, novamente, o paralelis­

mo demonstra que o fôlego e o espírito denotam o mesmo princípio animador de

vida que Deus concede à suas criaturas.

W I W I N ׳.—1 1 V_״ V I J J Í ; u i U L I V /V _ ^ V V I׳_1 N ; I I U I U j L · / 1 L 1 U

A imagem do “fôlego de vida” descreve de forma sugestiva o dom divino da

vida a suas criaturas, porque o fôlego é um sinal vital da existência. Uma pessoa

que não mais respira está morta. Assim, não é de surpreender que nas Escrituras o

Espírito de Deus que concede vida seja caracterizado como o “fôlego de vida". Afi­

nal de contas, respirar é uma manifestação tangível de vida. Jó declara: “Enquanto

em mim estiver a minha vida [o fôlego-neshamah, VKJ], e o sopro [ruach] de Deus

nos meus narizes, nunca os meus lábios falarão injustiça” (Jó 27: 3, 4)» Aqui, o “fô­

lego” humano e o divino “sopro” [“espírito", VKJ] são igualados, porque respirar é

visto como uma manifestação do poder sustentador do Espírito de Deus.

A posse do “fôlego de vida” não confere em si mesmo imortalidade, por­

que, por ocasião da morte, “o fôlego de vida” retoma para Deus. Ao descrever a

morte, Jó declara: “Se Deus (...) para si recolhesse o seu espírito [ruach] > e o seu

sopro [ruach] t toda carne juntamente expiraria, e o homem voltaria para o pó”

(ló 34:14, 15). A mesma verdade é expressa em JBclcsiststes_lZi7: “O pó volte à

terra, como o era, e o espírito volte a Deus que o deu”. A respeito do dilúvio,

lemos: “Pereceu toda a carne que se movia sobre a Terra (...) Tudo o que tinha

fôlego de vida [neshamah] em suas narinas, tudo o que havia em terra seca,

morreu” (Gn 7:21 e 22).

O fato de que a morte é caracterizada como a retirada do fôlego de vida demons­

tra que esse “fôlego de vida” não é um espírito ou alma imortal que Deus concede a

suas criaturas, mas o dom da vida que os seres humanos possuem pelo decurso de sua

existência terrena. Enquanto o “fôlego de vida” ou espírito permanecerem, os seres

humanos são “almas viventes”. Mas quando o fôlego parte tomam-se almas mortas.

A ligação entre o “fôlego de vida” e a “alma vivente” torna-se clara quando

nos lembramos que, como assinala Atkinson,

a alma do homem está era seu sangue e, de fato, o seu sangue é a sua alma. Assim ele

é mantido em vida como uma alma viva pela inalação do oxigênio extraído do ar, e a

ciência médica hoje sabe, logicamente, bastante sobre a ligação entre essa absorção

de oxigênio e o sangue,22

A cessação da respiração resulta na morte da alma, porque o sangue, que é

igualado à alma, não mais recebe o oxigênio que é tão vital para a vida. Isso expli­

ca por que a Bíblia se refere 13 vezes à morte humana como sendo morte da alma

lLv 19:28; 21:1, 11; 22:4; Nm 5:2; 6:6.11; 9:6, 7, 10; 19:11. 13; Ag 2:13).

A luz da discussão precedente, concluímos que o homem “tornou-se alma

vivente” (VKJ) por ocasião da criação, não através da implantação de uma alma

imaterial, imortal em seu corpo material, mortal, mas mediante o princípio ani­

mador de vida (“fôlego de vida”) a ele concedido pelo próprio Deus. No relato da

criação, a “alma vivente” denota o princípio de vida ou o poder que anima o corpo

humano e revela-se na forma de vida consciente.

Im o r ta lid a d e o u R e ssu r r e iç ã o ?

A NATUREZA HUMANA COMO ALMA

Até aqui, temos examinado o ponto de vista veterotestamentário da naoiTeza

humana à luz da criação do homem à imagem de Deus como uma alma vivente. Te״

mos descoberto que os dois textos fundamentais da criação humana, Gênesis 1:26,

27 e 2 :7 , não dão lugar a uma interpretação dualfetica da natureza humana com um

corpo mortal e uma alma imortal. Pelo contrário, o corpo, o fôlego de vida e a alma

estão presentes na criação do homem, não como entidades separadas, mas como

características da mesma pesso a^O corpo é o homem como um ser çQnçrçtoia alma

é o homem como um indivíduo vivo; o fôlego de vida ou espírito é o homem tendo^

sua fonte em Deus.)Para testar a validade dessa conclusão inicial, agora examina״

remos mais detidamente o emprego mais amplo no Antigo Testamento de quatro

aspectos-chave da natureza humana: alma, corpo, coração e espírito.

Nosso estudo inicial do significado de nephesh-alma no contexto da criação

demonstrou que a palavra é empregada para designar o princípio animador da

vida como presente tanto nos seres humanos quanto nos animais. Neste pon­

to, desejamos explorar o emprego mais amplo de nepfiesh no Antigo Testamento.

Uma vez que nephesJi ocorre no Antigo Testamento 754 vezes e é traduzido em 45

maneiras diferentes,21 nosso enfoque recairá sobre os três usos principais da pala­

vra que se relaciona diretamente com o objeto de nossa investigação.

A l m a c o m o u m a p e s s o a n e c e s s it a d a

Em seu livro de maior autoridade e atualidade A?iíhropolog} of the Old Testa*

ment [Antropologia do Antigo Testamento], virtualmente indisputável entre eru­

ditos de várias confissões teológicas, Hans Walter Wolff intitula o capítulo sobre a

alma como “nephesh-homem necessitado”.24 A razão para esta caracterização de

nephesh como “homem necessitado” toma-se evidente quando se leem os muitos

textos que retratam nephesh-alma em situações perigosas em proporções de vida e

morte.

Sendo que Deus foi quem fez o homem “uma alma vivente” e que sustém

a alma humana, os hebreus quando em perigo apelavam a Deus para livrar suas

almas, ou seja, suas vidas. Davi orou: “livra do ímpio a minha alma [nephesh]”;

“por amor da tua justiça, tira da tribulação

,

a minha alma [nephesh]” (S! 143:11).

O Senhor merece ser louvado, “pois livrou a alma [nephesh] do necessitado da

mão dos malfeitores” (Jr 20:13).

As pessoas tinham grande temor por suas almas [nephesh] (Js 9:24) quando

outros estavam buscando suas almas [nephesh] (Êx 4:19; ISm 23:15). Eles tiveram

que fugir por suas almas [nephesh] (2Rs 7:7) ou defender suas almas [nephesh] (Et

8:1 1 ); se não o fizessem, suas almas [nephesh] seriam totalmente destruídas (Js

10:28, 30, 32, 35,37 e 39). “A alma que pecar, essa morrerá” (Ez 18:4 e 20). Raabe

Ο ΡΟΝΤΟ DE VISTA BÍBLICO DA NATUREZA HUMANA

pediu aos doís espias israelitas que salvassem sua família falando em termos de “li-

vrareis as nossas vidas [,almas’, VKJ] da morte” Os 2:13). Nesses casos, é evidente

que a alma que estava em perigo e necessitava ser livrada era a vida do indivíduo.

A alma experimentava perigo não só dos inimigos, mas também da falta de

alimento. Ao lamentar o estado de Jerusalém, Jeremias declarou; “Todo o povo

anda gemendo e à procura de pão; deram eles as suas coisas mais estimadas a

troco de mantimento para restaurar as forças [alma-nephesh, VKJ] (Lm 1:11). Os

israelitas resmungavam no deserto porque não tinham mais carne como antes no

Egito. ״Agora, porém, seca-se a nossa alma [nephesh], e nenhuma coisa vemos

senão este maná” (Nm 11:6).

O jejuar tinha implicações para a alma porque interrompia a nutrição de

que carecia a alma. No dia da expiação, os israelitas eram ordenados: “afligireis as

vossas almas” (Lv 16:29) pelo jejum. Eles se abstinham de comida para demons­

trar que suas almas dependiam de Deus tanto para a nutrição física quanto para a

salvação espiritual. Tory7 Hoff escreve:

Muito apropriadamente, eles [os israelitas] eram solicitados a jejuar no dia da ex­

piação porque suas almas é que eram expiadas (...) mediante o derramamento de

sangue (de uma alma inocente) e era o Deus providencial que sustinha a alma, a

despeito do pecado da alma.25

O tema do perigo e libertação associado com a alma [nep/ies/i] permite-nos ver

que a alma no Antigo Testamento era vista como a condição incerta e insegura da

vida que às vezes era ameaçada de morte^e não como um componente imortal da

natureza humana. Essas situações que envolviam intenso perigo e libertação recor­

davam aos israelitas que eles eram almas [nephesh] necessitadas, pessoas com vida

cuja existência dependia constantemente de Deus para proteção e livramento.

A ALMA COMO SEDE DAS EMOÇÕES

Sendo o princípio animador da vida humana, a alma também atuava como

o centro de atividades emocionais. Ao falar da sunamita, 2 Reis 4:27 diz: “A sua

alma [?lep/iesh] está em amargura”. Davi clamou ao Senhor buscando livramento

de seus inimigos dizendo: “A minha alma [nephes/i] está profundamente perturba­

da. (...) Volta-te, Senhor, e livra a minha alma [nep/iesJi]” (Sl 6:3, 4).

Enquanto as pessoas estavam esperando pela libertação de Deus, suas almas

perdiam vitalidade. Tory Hoff nota que

pelo fato de que o salmista frequentemente escrevia em face de sua experiência

[de perigo], os Salmos incluem sentenças tais como “desfalecia neles a alma“ (SI

107:5), “a minha alma de tristeza verte lágrimas” (SI 119:28), “desfalece-me a

alma, aguardando a tua salvação” (SI 119:81), “minha alma suspira e desfalece

Im o r t a l id a d e o u R e ssu r r e iç ã o ?

pelos átrios do Senhor” (Sl 84:2), e “no meio destas angústias, desfalecia-lhes

a alma” (Sl 107:26). Jó indaga: “Até quando afligireis a minha alma (...) ?” (Jó

19:2). Também era a alma que esperaria por livramento. “Somente em Deus, ó

minha alma, espera silenciosa" (Sl 62:1). “Aguarda o Senhor, a minha alma o

aguarda” (Sl 130:5). Sendo que o hebreu sabia que todo o livramento procedia

de Deus, sua alma tomaria “refúgio” em Deus (Sl 57:1) e “tem sede de Deus”

(Sl 42:2; 63:1). Uma vez que o perigo e a tensão tinham passado e a natureza

precária da situação houvesse findado, a alma louvaria a Deus pela libertação

recebida. “Gloriar-se-á no Senhor a minha alma1’ (Sl 34:2). “E minha alma se

regozijará no Senhor, e se deleitará na sua salvação״ (Sl 35:9).26

Estas passagens que falam da alma como sede da emoção são interpretadas

por alguns dualistas como apoiando a noção da alma como uma entidade imate­

rial ligada ao corpo e responsável pela vida emocional e intelectual do indivíduo.

Tbry Hofl explica que o problema com essa interpretação é que “a alma é a ‘sede

da emoção’ não mais do que qualquer outro termo antropológico hebraico”27.

Veremos que a alma é somente um centro de emoções, porque o corpo,

o coração, os rins e outras partes do corpo também funcionam como centros

emocionais. Do ponto de vista holístico bíblico da natureza humana, uma parte

do corpo pode muitas vezes representar o todo.

Wolff corretamente observa que o conteúdo emocional da alma é igualado

42 ao eu da pessoa e não é uma entidade independente. Ele cita, como exemplo, o

Salmo 42:5, 1 1 e 43:5 em que se encontra o mesmo cântico de lamento e auto-

exortação: “Por que estás abatida, ó minha alma? Por que te perturbas dentro em

mim? Espera em Deus, pois ainda o louvarei”. “Aqui״, Wolff escreve, “nephesh

[alma] é o eu da vida necessitada, sedenta de desejo”.28 Nada há nestas passagens

que sugira que a alma é uma parte imaterial da natureza humana que está equipa­

da com personalidade e consciência e é capaz de sobreviver à morte. Notaremos

que a alma morre quando o corpo morre.

^ A ALMA COMO SEDE DA PERSONALIDADE

A alma [nephesh] é vista no Antigo Testamento não somente como a sede

das emoções, mas também como a sede da personalidade. A alma é a pessoa

como um indivíduo responsável Em Miquéias 6:7 lemos: “Darei o meu primo­

gênito pela minha transgressão? O fruto do meu corpo pelo pecado da minha

alma [nephesh]?” A palavra hebraica traduzida aqui por “corpo” é beten, que

significa barriga ou ventre. O contraste aqui não é entre corpo e alma. Ao co­

mentar este texto, Dom Wulstan Mork escreve;

O sentido não é que a alma seja a causa humana do pecado, com o corpo como o instru­

mento da alma. Antes, a nepteh, a pessoa viva integral, é a causa do pecado. Portanto,

neste verso, a responsabilidade pelo pecado é atribuída à nephesh como à pessoa.29

Ο ΡΟΝΤΟ DE VISTA BÍBLICO DA NATUREZA HUMANA

Encontramos a mesma idéia em vários textos que discutem o pecado e a cul­

pa, “Quando alguém [“uma alma-nephésh”, VKJ] pecar por ignorância” (Lv 4:2);

‘Quando alguém [“uma alma-ncphesh”, VKJ] pecar nisto (.,) levará a sua íniqüida-

de” (Lv 5;1); “Mas a pessoa ralma-nephesh, VKJ] que fizer alguma coisa atrevida­

mente (...) tal pessoa [“alma-nephesh”, VKJ] será eliminada do meio do seu povo”

(Nm 15:30). “Eis que todas as almas [nephesh] são minhas; (...) a alma [nephesh]

que pecar, essa morrerá” (Ez 18:4). E evidente que em textos como estes a alma é a

pessoa responsável que pensa, deseja e deve responder por sua conduta.

Qualquer atividade física era empreendida pela alma porque tal atividade pre­

sumia uma pessoa vivente, pensante e ativa, “O hebraico não dividia e atribuía ati­

vidades humanas. Qualquer ato era da nephesh completa em ação, portanto, da pes­

soa integral”.30 Como adequadamente expressa W D. Stacey, “nephesh sofria, tinha

fome e pensava, porque cada uma dessas funções requeria a personalidade integral

para realizá-la, e a distinção entre o emocional, físico e mental não era feita”31.

No Antigo Testamento a alma e o corpo são duas manifestações da mesma

pessoa. A alma inclui e presume o corpo. Mork escreve:

De fato, os antigos hebreus não podíam conceber uma sem a outra. Aqui não

havia a dicotomia grega de alma e corpo, de duas substâncias opostas, mas uma

unidade, homem, que é bashar [corpo] de um aspecto e nephesh [alma] de outro.

Bdshfír, pois, é a realidade concreta da existência humana, nephesh é a personali­

dade da existência humana.32

A ALMA E A MORTE

A sobrevivência da alma no Antigo Testamento liga-se à sobrevivência do

corpo, visto que o corpo é uma manifestação

,

exterior da alma. Isso explica por que

a morte de uma pessoa é muitas vezes descrita como a morte da alma. Johannes

Pedersen escreve:

Quando ocorre a morte, então é a alma que se priva de vida. A morte não pode

atacar o corpo ou quaisquer outras partes da alma sem afetar a inteireza da alma.

Logo, também é dito sobre “matar uma alma” ou “ferir uma alma” (Nm 31:19;

>35^4,30; Js 20:3, 9); pode também ser empregado para “ferir alguém com respeito

aalma”, isto é, ferir alguém de modo que a alma seja morta (Gn 37:21; Dt 19:6,

11» Jr 40:14, 15). Não pode haver dúvida de que é a alma que morre, e todas as

teorias que tentam negar este fato são falsas. E deliberadamente dito tanto que a

,alma morre (Jz 16:30; Nm 23:10), quanto que é destruída ou consumida (Ez 22:25 ־־

27), e que é extinta (Jó 11:20).33

Leitores da Bíblia em inglês [ou português] podem questionar a validade da

declaração de Pedersen de que a alma morre, porque a palavra “alma” não ocorre

nos textos que ele cita. Por exemplo, ao falar das cidades de refúgio, Números

Im ortalidade o u R essurreição?

35:15 traz: “Para que nelas se acolha aquele que matar alguém [nephesh] invo­

luntariamente״. Uma vez que a palavra “alma-nephesh” não ocorre na maioria das

traduções das Bíblias vernáculas, alguns podem alegar que o texto está falando de

matar o corpo e não a alma. A verdade, porém, é que nephesh é encontrada no

hebraico, mas os tradutores geralmente preferiram interpretar por “pessoa”, presu­

mivelmente por causa de crerem que a alma é imortal e não pode ser morra.

Em alguns casos, os tradutores interpretaram nephes/i-alma com pronomes

pessoais. Leitores das versões vernáculas não têm meios de saber que os prono­

mes apresentam-se como a alma-nephes/i. Por exemplo, um dos textos citados por

Pedersen é Deuteronomio 19:11, que na Versão Almeida Revista e Atualizada

(edição de 1969) assim menciona: “Mas, havendo alguém que aborrece a seu

próximo, e lhe arma ciladas, e se levanta contra ele, e o fere de golpe mortal, e se

acolhe a uma destas cidades..." A frase “o fere de golpe mortal” no hebraico se lê

“fere a alma-nepfresh mortalmente”. Pedersen cita os textos da Bíblia hebraica e

não das traduções vernáculas. Assim, sua declaração de que ״a alma morre” refle­

te com precisão o que o texto hebraico transmite. Ademais, há textos mesmo na

versão vernácula que claramente falam da morte da alma, Por exemplo, Ezequiel

18:20 diz: “A alma que pecar, essa morrerá” (ver também 18:4)·

A morte é vista no Antigo Testamento como o esvaziamento da alma de

toda a sua vitalidade e força. “Ele derramou a sua alma na morte” (Is 53:12). “Ele

derramou” ê versão do hebraico arah que significa “esvaziar, desnudar, ou deixar

descoberto”. Isso significa que o Servo Sofredor esvaziou-se de toda a vitalidade e

força da alma. Na morte, a alma não mais funciona como o princípio animador da

vida, mas descansa na sepultura.

“A morte”, escreve Pedersen, “é uma alma destituída de vigor. Portanto, os

mortos são chamados fos fracos1 (rephaim). ‘Como nós, estás fraco’ é a sauda­

ção com que os rei caído dos babilônios é recebido no domínio dos mortos (Is

14: 1o)”.34 O corpo morto é ainda uma alma, mas uma alma sem vida. Os nazireus

não tinham permissão de contaminar-se por chegar perto “de um cadáver”. Do

mesmo modo, os sacerdotes não deviam contaminar-se aproximando-se das almas

mortas de seus parentes (Lv 21:1, 11; Nm 5:2; 9:6, 7, 10).

A sorte da alma está ligada à sorte do corpo. Sobre o episódio em que

]osué conquistou as várias cidades além do Jordão, nos é dito repetidamente

que “destruiu-os totalmente, e a todos os que nela estavam” [“destruiu toda

alma-neptash”, VKJ] (Is 10:28, 30, 31, 34, 36, 38). A destruição do corpo é vista

como a destruição da alma. “Na Bíblia”, escreve Edmund Jacob, “nephesh refere-

se somente ao cadáver antes de sua dissolução iinal e enquanto tem aspectos

distinguíveis".35 Quando o corpo é destruído e consumido de modo que seus

aspectos não mais sejam reconhecidos, então a alma não mais existe, porque

“o corpo é a alma em sua forma exterior1’36. Por outro lado, quando o corpo é

Ο ΡΟΝΤΟ DE VISTA BÍBLICO DA NATUREZA HUMANA

posto a descansar na sepultura com os pais, a alma está também em repouso e

jaz imperturbável (Gn 15; 15; 25:8; ]z 8 :2 1 ; lC r 29:28).

A visão do Antigo Testamento, ao considerar a alma como cessando de fun­

cionar por ocasião da morte como o princípio animador da vida do corpo, suscita

algumas questões interessantes com respeito à declaração de Jesus: ״Não temais

os que matam o corpo e não podem matar a alma; temei antes aquele que pode

fazer perecer no inferno tanto a alma como o corpo” (Mt 10:28). Este texto parece

sugerir que a morte do corpo não acarreta necessariamente a morte da alma. Ele é

examinado no próximo capítulo que trata do ponto de vista do Novo Testamento

com respeito à natureza humana.

A PARTIDA DA ALMA

Adicionalmente às passagens que acabamos de considerar, em que a alma-

nephesh associa-se à morte, pelo menos dois textos merecem especial consideração

porque falam da partida e retorno da alma. O primeiro é Gênesis 35:18, que fala

que a alma de Raquel saía-lhe ao morrer, e a segunda é 1 Reis 17:21, 22, que fala

da alma do filho da viúva que lhe retornava. Estes dois textos são utilizados para

apoiar o ponto de vista de que na morte a alma deixa o corpo e retorna ao corpo

por ocasião da ressurreição.

Em seu livro Derzth and the Afterlife [A morte e o além túmulo], Robert A.

Morey apela a esses dois textos para apoiar sua crença na sobrevivência da alma

diante da morte do corpo. Ele escreve:

Se os autores das Escrituras não cressem que a alma deixou o corpo por ocasião da

morte e retomaria ao corpo quando da ressurreição, não teriam empregado tal frase­

ologia [a partida e retomo da alma]. A maneira de expressão deles revela que criam

que o homem por fim sobrevivia à morte do corpo.37

Pode tal conclusão ser derivada legitimamente desses dois textos/ Examine­

mos mais detidamente cada um deles. Ao descrever o parto de Raquel, Gênesis

35:18 declara: “Ao sair-lhe a alma (porque morreu), deu-lhe o nome de Benoni;

mas seu pai lhe chamou Benjamim”. Interpretar a sentença “sair-lhe a alma” como

significando que a alma imortal de Raquel estava deixando seu corpo enquanto

ela morria contraria o ensino coerente do Antigo Testamento de que a alma morre

com o corpo. Como Hans Walter Wolfí corretamente assinala,

não devemos deixar de observar que a nephesh [alma] nunca recebe um sentido de

um indestrutível núcleo da existência, em contraste com a vida física, e mesmo capaz

de viver quando eliminada dessa vida. Quando ocorre uma menção ao termo “sair”

(Gn 35:18) da nephes/i de um homem, ou de seu “retomo” (Lm 1:11), a idéia básica é

a noção concreta da cessação e restauração da respiração.58

Im ortalidade o u R essurreição?

A sentença “sair-lhe a alma” muito provavelmente significa que “sua respira­

ção estava cessando״, ou, poderíamos dizer, ela estava dando o seu último suspiro.

É importante observar que o substantivo “alma-nephesh״ deriva do verbo que tem

a mesma raiz com o sentido de “respirar״, “inspirar ar״. O soprar do fôlego de vida

resultou no homem tornar-se uma alma vivente, um organismo que respira. A

partida do fôlego de vida resulta numa pessoa que se torna uma alma morta (“por­

que morreu״). Assim, como Edmund Jacob explica, “a partida da nepJiesh é uma

metáfora para a morte; um homem morto é alguém que cessou de respirar”39.

Tory Hoff oferece um comentário semelhante:

Mediante a imagem concreta da partida do fôlego, o texto comunica que Raquel

estava no processo de morrer enquanto dava nome a seu recém-nascido. Ela não

estava ainda morta no sentido moderno da palavra, mas aproximava-se da morte

a cada momento. Estava perdendo a nepbesb vital que a ruah [respiração] sustinha

até o ponto em que em breve partiría da existência da nephesh.40

Concluímos que a partida da alma é uma metáfora para a morte, muito

,

pro­

vavelmente associada à interrupção do processo de respiração. Esta conclusão é

apoiada pelo segundo texto, 1 Reis 17:21, 2 2 , que agora examinaremos.

O RETORNO DA ALMA

Ao relatar a história do despertar à vida do filho da viúva de Sarepta pelo

profeta Elias, 1 Reis 17:20-22 assim menciona: “E estendendo-se três vezes sobre

o menino, clamou ao Senhor e disse: O Senhor meu Deus, rogo-te que faças a

alma deste menino tornar a entrar nele. E o Senhor atendeu à voz de Elias; e a

alma do menino tomou a entrar nele, e reviveu״.

Deve-se admitir que tomado isoladamente este texto poderia ser tido como

significando que a alma deixa o corpo por ocasião da morte e nesse caso foi recu­

perada pela oração de Elias. Esta conclusão obviamente apoiaria a crença de que

a alma é imortal e sobrevive à morte do corpo.

Três principais razões nos levam a rejeitar esta interpretação. Primeiro, nem

nesta passagem nem em qualquer outra da Bíblia há qualquer indicação de que a

alma humana é imortal. Pelo contrário, temos visto que a alma é o princípio que

anima a vida manifesta no corpo enquanto o corpo está vivo.

Em segundo lugar, no verso 17, a morte do menino é descrita como o cessar

da respiração: “Não restou qualquer fôlego nele” [VKJ]. Isto sugere que o cessar

de respirar é que causou a partida da alma-nephesh, de modo que a recuperação da

respiração provocou o retomo da alma. Como Edmund Jacob ressaltou,

em 1 Reis 17:17 a falta de neshamah [respiração] provoca a partida da nephesh, que

retorna quando o profeta concede a respiração ao menino novamente, pois nepEesh

somente é o que faz uma criatura vivente tornar-se um organismo vivo.4'

Ο ΓΟΝΤΟ DE VISTA BÍBLICO DA NATUREZA HUMANA

Uma vez que a respiração é a manifestação exterior da alma, a cessação ou

restauração da respiração causa a partida ou retorno da alma.

Em terceiro lugar, no hebraico, o verso 21 literalmente assim diz: “Que a

alma da criança adentre novamente suas partes interiores”, Esta leitura, que

se acha à margem da Versão Autorizada, apresenta uma construção linguística

diferente. O que retorna às partes interiores é a respiração. A alma como tal

nunca se liga a algum órgão “interior” do corpo. O retorno da respiração às par-

tes interiores resulta no reavivamemo do corpo, ou, poderíamos dizer, faz com

que se torne outra vez uma alma vivente.

Basii Atkinson muito perceptivamente observa que

o escritor não pensava na alma como sendo ־a criança real ou carregando sua perso­

nalidade. A criança jazia morta sobre a cama e a alma retornou à criança. Elias não

pensava ou falava termos como os que se ouvem nos modernos funerais: “não posso

mais imaginá-lo aqui42.״

A luz das considerações acima, concluímos que a declaração ״a alma do

menino tomou a entrar nele” simplesmente significa que a criança recuperou a

vida, ou começou a respirar novamente. É desta forma que os tradutores da Neu>

International Version entenderam a cláusula ao traduzirem, “a vida do menino

retornou-lhe”. Esta é uma maneira perfeita mente inteligível de entender o texto

e está em sintonia com o resto do ensino veterotestamentário.

C o n c l u s ã o

Nosso estudo do significado de neptash-alma no Antigo Testamento tem

mostrado que nem uma única vez a palavra transmite a idéia de uma entidade

imaterial, imortal capaz de existir à parte do corpo. Pelo contrário, descobrimos

que a alma-nepJiesh é o princípio animador da vida, o fôlego de vida, que está

presente tanto nos seres humanos quanto nos animais. A alma identifica-se

com o sangue porque este ultimo é visto como uma manifestação palpável da

vitalidade do ser. Por ocasião da morte, a alma cessa de funcionar como princí­

pio animador da vida do corpo. O destino da alma liga-se inexoravelmente ao

destino do corpo porque o corpo é a manifestação da alma.

Natureza humana como corpo e carne

Nosso estudo do entendimento do Antigo Testamento quanto à alma já esta­

beleceu que o corpo e a alma são uma unidade indivisível, ou seja, o homem visto

de duas diferentes perspectivas. O corpo é a realidade física da existência humana,

a alma é a vitalidade e personalidade da existência humana.

Im ortalidade o u R essurreição?

>

E lamentável que durante boa parte da história cristã o aspecto físico da

natureza humana tenha sido depreciado e até denegrido como indesejável e mau.

A palavra “carne" tem sido associada com imoralidade. Os “pecados da carne”

invariavelmente significam indulgências pecaminosas. A razão para esse ponto de

vista negativo é que “carne” é sinônimo de corpo, e o corpo é mau, ou, pelo me״

nos, suspeito, segundo o dualismo clássico, que influenciou enormemente a vida

e pensamento cristão ao longo dos séculos.

E verdade que na Bíblia “a carne” não representa o aspecto mais elevado e

nobre da natureza humana. Paulo em especial fala da inimizade que existe entre a

carne e o espírito. Mas isso não significa que Paulo ou o resto da Bíblia condenem

a carne ou o corpo como eticamente maus em si mesmos. Antes, a carne é empre­

gada metaforicamente para representar a pessoa não-regenerada como um todo,

agindo segundo seus desejos e propensões pecaminosos naturais.

Historicamente, muito da espiritualidade e religiosidade cristãs tem sido influem

ciado por uma visão negativa do corpo como sede do pecado. O martírio da came ao

pnvar o corpo de alimento, agasalho, ou mesmo do prazer físico de um banho momo,

tem sido visto como indispensáveis para cultivar a vida espiritual4* Deste modo, para

fortalecer nossa espiritualidade cristã, é imperativo recuperar o aspecto holístico bíblico

da natureza humana, especialmente a perspectiva positiva física de nossa existência.

O CORPO CRIADO POR Ü EU S

O relato da criação propicia o ponto inicial lógico para o estudo da atitude

bíblica para com o aspecto físico da natureza humana. A história nos conta que a

matéria, inclusive o corpo humano, foi criada por Deus. A matéria não é um pruv

cípio eterno do mal antagonístico a Deus, como no Timaeus de Platão, mas parte

da boa criação de Deus para realizar seu eterno propósito. Toda a ordem física,

inclusive o corpo humano, foi criada por Deus segundo o seu eterno propósito.

Repetidamente, ao longo do relato da criação, nos é dito que Deus considerou

o que havia criado “e viu que era bom” (Gn 1:10, 12, 18, 21 e 25). Após ter criado

o homem à sua própria imagem, Deus admirou tudo o que havia criado e declarou

que era “muito bom” (Gn 1:31). Com base no relato bíblico da criação, podemos as״

segurar que este mundo materia[ é a boa criação de Deus e tem um lugar adequado

em seu eterno propósito.

E importante observar também que Deus criou o homem, não de alguma

substância espiritual divina, mas “do pó da terra” (Gn 2:7).

Não há qualquer parte do homem que seja de origem divina e que desça para assu״

mir residêncíâ temporária no “corpo” alienado. O homem de modo algum participa

da natureza divina. Ele é feito do pó da terra, e seu relacionamento com Deus não é

o de uma chama de fogo ou de uma gota d‘água no oceano, mas o de uma imagem

Ο ΡΟΝΤΟ DE VISTA BÍBLICO DA NATUREZA HUMANA

do original. Assim, nada há no homem que estabeleça uma identidade ou mesmo

uma continuidade entre ele e Deus, cotno a “alma״ racional na perspectiva *‘religiosa

[dualística] ”, Em vez de identidade, há meramente semelhança; em ves de continui­

dade, há uma radical descontinuidade, como entre a criatura e o Criador.44

- O CORPO FÍSICO NÃO É MAU

O fato de que o corpo humano toi criado de substância material da terra

não significa que a matéria é a fonte da maldade na vida humana. No dualismo

platônico, a matéria é a fonte e origem do m al O mal é identificado com a maté­

ria, que é um princípio eterno independente do Deus bom e a Ele antagônico, A

identificação do mal com a matéria tem levado a uma visão pessimista do corpo

e da existência física. E lamentável que esse ponto de vista pessimista do corpo

tenha influenciado tão fortemente o pensamento e prática cristãos.

No relato

,

da criação de Adão e Eva não existe o mínimo indício de que o

corpo físico deve ser culpado por sua desobediência e queda. Uma tradição cristã

popular interpreta o pecado original como consistindo de um ato sexual ilícito. Tal

interpretação é totalmente destituída de apoio bíblico, A tentação em que Adão

e Eva caíram não foi o desejo de ter sexo, pias de agir como se eles fossem Deus.

O sexo é a boa criação de Deus do mesmo modo que todas as demais funções

fisiológicas do corpo humano.

A tentação foi “sereis como Deus” (Gn 3:5). A origem do pecado na vida

humana nada tem que ver com intercurso sexual ou qualquer outro ato tísico

do corpo. Antes, deve ser encontrado no fato de que o homem sucumbiu à ten­

tação de tentar ser como Deus, em vez de ser um refletor da imagem de Deus,

Esta tem sido a manifestação fundamental do pecado, ou seja, colocar o eu antes

que Deus, no centro de tudo.

Na Bíblia, a origem cio pecado é encontrada não em algum defeito na cons­

tituição física do corpo humano, mas na escolha errada, egoísta, feita pelos seres

humanos livres. Hoje, a humanidade acha-se numa condição de pecado porque as

pessoas levam vidas centralizadas no eu, ao invés de terem a Deus como o centro.

Devido a esse egoísmo, as tremendas possibilidades inerentes a nossa natureza

humana criada à imagem de Deus têm-se realizado numa forma desastradamente

errada. “O que são possibilidades sagradas tornaram-se realidades demoníacas”.45

O relato bíblico da criação e queda da humanidade localiza a origem do

pecado, não no corpo, mas na mente, ou seja, no desejo de agir e pensar em si

mesmo como sendo Deus. O pecado é volitivo, um ato da vontade, e não uma

condição biológica do corpo, A Bíblia tem uma visão salutar do corpo como o ob­

jeto da criação e redenção divinas. Este ponto se toma mais claro ao examinarmos

o significado e o emprego vetero testamen tário de “carne-bas/wír”.

Im o r ta lid a d e o u Re ssu r r e iç ã o ?

A CARNE COMO SUBSTÂNCIA DO CORPO

O termo hebraico preciso para o corpo inteiro é gevíyyah, o qual é raro. É em­

pregado uma dúzia de vezes para referir-se a um corpo vivo ou morto íGn 47:1$; lRs

31:10, 12; Hz 1:11, 23; ISm 31:10, 12; Dn 10:6). O termo comum empregado na

Bíblia hebraica para designar o corpo é bashar, que tecnicamente significa “carne״.

Bashar ocorre 266 vezes no Antigo Testamento hebraico. Seu significado mais comum

é o de ״carne” que constitui o corpo. Um exemplo desse emprego é Gênesis 2:21-24:

Então o Senhor Deus fez cair pesado sono sobre o homem, e este adormeceu; tomou

uma das suas costelas, e fechou o lugar com carne [bashar], E a costela que o Senhor

Deus tomara ao homem, transformou-a numa mulher, e lha trouxe. E disse o ho­

mem: Esta, afinal, é osso dos meus ossos, e carne da minha carne [bashar].

Outro exemplo se encontra no galtno 79 :JL onde o salmista lamenta: “Deram os

cadáveres dos teus servos por alimento às aves dos céus, e a came [bashar] dos teus

santos às feras da terra”. O paralelismo indica que a came [bashar] é empregada como

sinônimo de corpo. Bashar denota a substância carnal que os seres humanos têm em

comum com os animais. Tanto o homem quanto os animais são came. O relato do

dilúvio ressalta isso: “Porque estou a derramar águas em dilúvio sobre a terra para

consumir toda came [bashar] em que há fôlego de vida debaixo dos céus” (Gn6:17; cf■̂

6:19; 9:17). “Os animais que estão contigo, de toda cajjie [bashar], assim aves, como

gado, e todo réptil que rasteja sobre a terra, faze sair a todos” (Gn8:17).

Os exemplos acima indicam que ״came-bashar” significa a substância do corpo

que o homem tem em comum com as ordens inferiores dos animais. A came é criada

por Deus que pode destruí-la, bem como curá-la e restaurá-la.

A CARNE COMO O HOMEM INTEGRAL

Há textos em que a came -bashar significa a pessoa integral, não somente uma

substância carnal, mas o ser racional e emocional. “O Deus, tu és o meu Deus for­

te, eu te busco ansiosamente; a minha alma tem sede de ti; meu corpo [bashar] te

almeja” (51 63:1). “À minha alma suspira e desfalece pelos átrios do Senhor; o meu

coração e a minha came [bashar] exultam pelo Deus vivo!” 15184:2). Jó refere-se a

quem jaz no leito de enfermidade: ״Ele sente as dores apenas de seu próprio corpo

[bashar], e só a seu respeito sofre a sua alma” (Jó 14:22).

O paralelismo nestes textos entre alma e carne indica que a carne, à semelhan­

ça da alma, pode funcionar como a sede das emoções. A carne e a alma não são duas

formgsdiferçnçes .çle exi^ênci^ mas duas manifestações da mesma pessoa. O ponto

de vista holístico bíblico toma possível empregar carne e alma intercambiavelmente

porque são partes do mesmo organismo.

Ο ΡΟΝΤΟ DE VISTA BÍBLICO DA NATUREZA HUMANA

A carne é também empregada para denotar o parentesco que une as pessoas

consangüineamente ou como membros da família humana. Assim, Judá aconselha

seus irmãos para não matarem José, “não ponhamos sobre ele a nossa mão, pois

é nosso irmão e nossa carne [bashar]* (Gn 37:27). Uma fórmula frequente para

expressar a consangüinidade é “meu osso e minha carne״_(Gn 29:14: lz 9:2; 2Sm

4lL-12lL2U-No relato do Dilúvio, “toda carne” (Gn 6:17, 19) denota o vínculo

mais amplo da família humana.

A CARNH COM O NATUREZA HUMANA EM SUA FRAQUEZA

A carne-bas/iar é também empregada na Bíblia para caracterizar a fraqueza

e fragilidade da natureza humana. Hans Walter Wolff intitulou o capítulo sobre

O ״.carne-bashar" como “o homem em sua enfermidade46״ título reflete o fre­

quente emprego de “carne” no Antigo Testamento para indicar a “nulidade” hu­

mana aos olhos de Deus. Lemos em ]6 34:14. 15: “Se Deus pensasse apenas em

si mesmo, e para si recolhesse o seu espírito e o seu sopro, toda carne [bashar]

juntamente expiraria e o homem voltaria para o pó”. Porque os seres humanos

são carne (fracos e frágeis), Deus se recorda deles: “Ele, porém, que é misericor­

dioso, perdoa a iniquidade (...) Lembra-se de que eles são carne [bashar], vento

que passa e já não voltani$ l 78:38T 39).

Em um relacionamento com Deus, o homem é carne, uma criatura depen­

dente dele para a contínua existência. “Toda a carne [bashar] é erva, e toda a

sua glória como a flor da ei^à” (Is 40:6). Por serem os humanos carne, acham-se

impotentes diante de Deus. “Em Deus (...) ponho a minha confiança e nada te­

merei. Que me pode fazer o mortal fa carne-tashnr, VKJ]?” (Si 56:4, cf. Is 31:3).

Conseqüentemente, é imperativo que os seres humanos confiem em Deus e não

em sua “carne” (recursos humanos). “Maldito o homem que confia no homem,

faz da carne mortal [bashar] o seu braço”,(ír 17:5). N este texto, “carne-bashar”

denota a oposição humana a Deus. A carne não é intrinsecamente má do ponto

de vista ético. Pode ser fraca, mas não inerentemente má em sí. Quando um “co­

ração de pedra” é transformado em um “coração de carne”, torna-se um coração

que obedece a Deus (Ez 11:19). Por causa de seus dotes naturais, a carne pode

tornar-se orgulhosa, íludir-se e conseqüentemente tornar-se antagônica a Deus.

O último significado transfere-se ao Novo Testamento onde Paulo o desenvolve

mais do que outros autores.

C o n c l u s ã o

Nosso estudo do significado e emprego de “came-bashar" no Antigo Testamento

revela que a palavra geralmente é empregada para descrever a redidade concreta da

existência humana da perspectiva de sua fraqueza e fragilidade. Contrariamente ao

dualismo clássico, o Antigo Testamento nunca vê a came e a alma como duas formas

Imortalidade ou R essurreição /

diferentes de existência. Antes, são manifestações da mesma pessoa e, consequente­

mente, muitas vezes são empregadas intercambiavelmente, Um bom exemplo se en­

contra em Salmos 84:2, onde a alma, o coração e a carne expressam o mesmo anseio

por Deus: “A minha alma suspira e desfalece pelos átrios do Senhor; o meu coração e a

minha came [ibas/iar] exultam pelo Deus vivo־'” Na perspectiva do Antigo Testamento

quanto à natureza humana nada há que seja meramente físico.

,

Qualquer parte física

do corpo humano pode expressar também funções psicológicas.

O ponto de vista holístico da natureza humana tomou possível aos autores

bíblicos verem o corpo e a alma como expressões do mesmo organismo. Pedersen

corretamente faz notar que “a proposição de que a alma é carne é indissoluvel­

mente ligada com o inverso disso, como seja, que a came é alma47.״ Os dois estão

indissoluvelmente ligados porque o corpo é a forma exterior da alma e a alma é a

vida interior do corpo.

A NATUREZA HUMANA COMO CORAÇÃO

No ponto de vista bíblico da natureza humana, o coração é o órgão central

e unificador da vida pessoal As palavras hebraicas traduzidas por “coração” são

kb e lebab> que se acham juntas 858 vezes.48 Isso toma o coração o termo mais

comum dentre todos os empregados para descrever a natureza humana. Walther

Eichrodt nota que “dificilmente há um processo espiritual que não possa ser rela­

cionado de algum modo com o coração. Ele é tomado como o órgão igualmente

do sentimento, atividades intelectuais e a ação da vontade49.״

O coração no pensamento bíblico é a fonte da vida individual, a derradeira ori­

gem das energias físicas, intelectuais, emocionais e volitivas, e, consequentemente,

a parte da pessoa que normalmente tem contato com Deus, No interior do coração

estão os pensamentos, as atitudes, os temores, e as esperanças que determinam a

personalidade ou caráter do indivíduo. Muitas das funções do coração correspon­

dem às funções da alma. Isso se dá porque no ponto de vista bíblico da natureza

humana, nenhuma distinção radical existe entre os vários aspectos do indivíduo.

O CORAÇÃO É A SEDE DAS EMOÇÕES

Todas as emoções de que uma pessoa é capaz são atribuídas ao coração.

O coração pode ser ou estar alegre (Pv 27:11; At 14:17), triste (Nm 2:2), perturba­

do (2Rs 6:11), corajoso {2Sm 17:10), desanimado (Nm 32:7), temeroso (Is 35:4),

invejoso (Pv 23:17), confiante (Pv 31:11), generoso (2Cr 29:31), movido pelo ódio

(Lvl9;17) ou amor (Dt 13:3)2°

Ο ΡΟΝΤΟ DE VISTA BÍBLICO DA NATUREZA HUMANA

As emoções do coração são retratadas vívida e concretamente. Diz-se que

o coração desfalece (Gn 42:28), desmaia (G n 45:26), excita-se (SI 38:10), es­

tremece (ISm 28:5), agita-se (Pv 23:17; Dt 19:6), adoece (Pv 13:12). Q estado

do coração determina toda manifestação da vida. “O coração alegre aformoseia

o rosto, mas com a tristeza do coração o espírito se abate״ (Pv 15:13). Mesmo a

saúde é afetada pela condição do coração. ״O coração alegre é bom remédio, mas

o espírito abatido faz secar os ossos” (Pv 17:22).

As PARTES ÍNTIMAS COMO SEDE DAS EMOÇÕES

Para efeito de clareza, devemos acrescentar que a sede das emoções é encon­

trada não somente no coração, mas também nas partes íntimas do corpo huma­

no, referidas em hebraico pelo termo qereb, “intestinos”. É impressionante como

o Antigo Testamento considera algumas dessas paTtes íntimas do corpo como o

local e fonte das capacidades humanas superiores. Como Hans Walter Wolff res­

salta, “as partes intimas do corpo e seus órgãos são ao mesmo tempo o portador

dos impulsos éticos e espirituais do homem”.51

[ Uns poucos exemplos servem para ilustrar este ponto. Jeremias pergunta ao

i povo de Jerusalém: “Até quando hospedarás contigo os teus maus pensamentos?”

i(Jr 4:14). Aqui, a expressão “hospedarás contigo” traz “qereb'nos intestinos”,

)como a localização dos maus pensamentos. Provérbios 23:16 diz: “Exultará o meu

jfritimo [‘rins-feeia^oC VKJ], quando os teus lábios falarem coisas retas”. O sal-־

/mista agradece a Deus por aconselhá-lo e porque “durante a noite o meu coração

U‘rinsJceIflgwt\ VKJ] me ensina” (SI 16:7).

Em outra parte, o salmista associa os rins com o coração como os órgãos mais

sensíveis: “Quando o coração se me amargou e as entranhas [‘rins-JteítfyoC VKJ]

se me comoveram” (SI 73:21). Aqui, os rins agem como consciência do indiví­

duo. O fígado também pode servir para expressar profunda dor. Jeremias lamenta:

“Com lágrimas se consumiram os meus olhos, turbada está a minha alma, o meu

coração [ fígado~kabed\ VKJ] se derramou de angústia por causa da calamidade

da filha do meu povo”, AfO À; //

Essa breve digressão sobre as partes interiores do corpo teve intenção de

demonstrar que estas podem agir como a sede das emoções, do mesmo modo que

o coração, isso é possível porque no pensamento holístico bíblico uma parte da

pessoa pode às vezes representar o organismo inteiro.

3 CORAÇÃO COMO SEDE DO INTELECTO

Na maioria dos casos, o coração na Bíblia denota o centro da vida intelectu-

d, precisamente o que atribuímos à cabeça ou ao cérebro. Ao contrário de nossa

:ultura ocidental, onde o coração é associado primariamente com emoções e sen-

Im o r t a l id a d e o u Re ssu r r e iç ã o ?

timentos, na Bíblia o coração é o centro de raciocínio da pessoa que determina o

que ela é: “Porque assim como imagina em sua alma, assim ele é” (Pv 23:7).

Provérbios 15:14 descreve a função essencial do coração no sentido bíblico:

“O coração entendido procura o conhecimento״. O coração busca o conhecimen­

to não meramente por causa do conhecimento, mas para capacitar o indivíduo a

tomar decisões morais responsáveis. E altamente significante o fato que o termo

"coraçâo-íeb” ocorre com uma frequência muito maior na literatura de sabedoria

(99 vezes somente em Provérbios, 42 vezes em Eclesiastes, e 51 vezes no altamen­

te didático livro de Deuteronomio).52

A grande sabedoria de Salomão consistia no fato de que ele não pediu por

longa vida ou riquezas, mas por um coração entendido: “Dá, pois, ao teu servo

coração compreensivo para julgar a teu povo para que prudentemente discirna

entre o bem e o mal; pois quem poderia julgar a este grande povo?” (lRs 3:9). O

coração entendido que Salomão solicitou é o que chamaríamos de uma mente

com discernimento. Por causa de seu caráter concreto, a língua hebraica dificil­

mente pode expressar a idéia de “pensar”, exceto para a sentença “disse contigo”

[“dizer no coração”, VKJ] (Gn 27:41; SI 10:6). É com o coração que uma pessoa

planeja (Pv 16:9), busca conhecimento, compreende (Ec 8:16}, e medita sobre as

profundas coisas da vida (SI 4:4).

Sendo o centro da razão, o coração é também o centro da vontade e, daí, da vida

moral. O coração pode planejar coisas perversas (Pv 6:18) e tomar-se corrompido

(Pv 11:20). Pode elevar-se com orgulho (Dt 8:14), endurecer-se (Zc 7:12), teimar (Jr

3:17), ou desviar-se de Deus (lRs 11:2). Por outro lado, o bom coração é perfeito (lRs

8:61), ou inculpável (SI 119:80), puro (SI 51:10), reto (SI 32:11). O coração pode ser

purificado (SI 73:13) ou renovado (Ez 18:31). Um novo coração toma possível inter­

nalizar a vontade de Deus como revelada em sua lei (Ez 11:19; 36:26).

O CORAÇÃO SE COMUNICA COM DEUS

Como o centro do raciocínio da personalidade humana, o coração é capaz de

comunicar-se com Deus. O coração fala a Deus (SI 27:8), recebe sua palavra (Dt

30:14), e confia nele (SI 28:7). Deus pode dar ao homem um coração entendido

(lRs 3:9) ou retirar todo entendimento (Jó 12:24). Para seus misteriosos propósi­

tos, Deus pode endurecer o coração (Êx 4:21) ou pode amolecê-lo (Ed 6:22).

Sendo que em resultado da queda, o coração é inclinado para o mal, a transforma­

ção do coração ocorre pela divina graça. Deus promete escrever a sua lei nos corações

humanos (Jr 31:33) e criar um novo coração nos seres humanos (3151:10). Ele remove­

rá o coração endurecido e o substituirá com um coração receptivo (Ez 36:26). No Novo

Testamento nos é dito que Deus derramou o seu amor nos corações humanos (Rm 5:5).

Cristo habita no coração humano (Et 3:17) e sua paz ali reina (Cl 3:15).

Ο ΡΟΝΤΟ ΠΕ VISTA BÍBLICO DA NATUREZA HUMANA

C o n c l u s ã o

Esta breve pesquisa das funções do coração no Antigo Testamento mostra

que o coração é o centro e fonte de todas as atividades religiosas, intelectuais e

morais. Mais do que qualquer outro termo veterotestamentário, o coração expres-

sa o centro mais profundo da existência

,

uma unidade indivisível e extrai implicações para nosso destino e

muitas outras questões.

O dualismo antropológico tem causado sério prejuízo ao enfraquecer a bendita

esperança do aparecimento de Cristo e distorcer nosso entendimento do mundo por

vir. Também tem fomentado muitas, falsas dicotomias, inclusive uma visão negativa

do corpo em contraste com a alma e um conceito de salvação como uma experiência

interior, antes que transformação total. O pior de tudo é que tem dado margem a

um ensino sadístico de qiie Deus faz os ímpios sofrerem tormento consciente in­

findável no inferno, o que tem representado um tertível peso à consciência cristã

e ofensa tão desnecessária a tantos pesquisadores da verdade.

Um grande número de eruditos׳ concorda com o autor com respeito à natu­

reza humana, mas nenhum extraiu tão corajosamente as necessárias implicações.

Este livro é muito necessário a fim de combater a opinião tão persistente quanto

equivocada entre os cristãos de que a alma é uma substância imortal, uma crença

que é tantò antibíblica quanto prejudicial. Congratulo-me com o Dr. Bacchiocehi

e sou-lhe grato por esta obra decisiva.

" . C l a rk I I P in n o c k , Ph.D.

■ P r o fe sso r de T e o l o g ia M c M a s t e r D iv im t y C ollege H a m il t o n

O n t a r io , C a n a d á

A breviaturas

L iv r o s d a B íb lia

Gn Gênesis ' ·. Ne Neemias

Êx Êxodo Et Ester

Lv Levítico . ■ Jó ־ . ■ Jó ־

Nm Números SI , Salmos

Dt Deuteronomio Pv Provérbios

Js. . Josué Ec . Eclesiastes

Jz ■ juízes Ct Cantares de Salomão

Rt ' Rute Is ־ !saías

l-2$m 1-2 Samuel Jr Jeremias

l-2Rs 1-2 Reis Lm _ Lamentações

1-2Q . 1'2 Crônicas Ez Ezequiel

Ed Esdras ■' Dn . Daniel

Os . Oséias Rm Romanos

Jl joel l-2Co . ■1-2 Coríntios

Am Amos . G1 Gálatas

Ob Obadias Ef Efésios

Jn Jonas . . . .. G1 Gálatas . ■

Mq Miquéias Fp Filipenses

Na Naum Cl Colossenses'

Hc Habacuque ■l-2Ts 1-2 Tessalonicenses

Sf Sofpnias l-2Tm 1-2 Timóteo

Ag Ageu ' Tt Tito

Zc : Zacarias Fm Filemom

Ml· : Malaquias Hb Hebreus

Mt. ' Mateus Tg Tiago

Mc Marcos l-2Pd. 1-2 Pedro

Lc LucãS l-2-3Jo 1-2-3 João

Jo João ja ׳■ . . ׳ . Judas

At Atos ■ Ap ־■־. Apocalipse

Por que escrever um livro sobre o ponto, de vista bíblico da natureza e

destino ■humanos? N ãoè este -um assunto liquidado, já resolvido por teólogos

há muito tempo? Qual é o objetivo de investigar esta questão novamente? As

pessoas realmente se preocupam.com;o que a Bíblia ensina sob.re a constituição

áe sua natureza e o plano.de Deus para. ri.seu destino?

A verdade é que.a questão da natureza e destino humanos está longe de

ser um tema resolvido'. Em anos recentes, numerosos eruditos bíblicos, filósofos

e cientistas têm reexaminado o ponto de vista dualista tradicional da natureza

humana, que consistiria de um corpo material, mortal, e uma alma espiritual,

imortal. Eles têm constatado que esse ponço de vista é contrário às Escrituras,

à razão e à ciência. ... ' ׳

Um detido, reexame dos termos bíblicos básicos para o homem (corpo, alma,

espírito, carne, mente, coração) tem levado muitos, eruditos a concluir que na

Bíblia hão há dicotomia entre um coroo mortal e uma alma.imortal que.,·‘se

separam” na. morte. Tanto o corpo quanto a alma, a. carne e o espírito são uma

unidade indivisível, parcelas da mésmá pessoa que deixam de existir por ocasião

dá. morte até a ressurreição. Ao .ler, esses estudos fica-se com a impressão de

que o cristianismo está saindo de um estupor e subitamente descobrindo que

por demasiado tempo manteve úma opinião da natureza humana derivada do

dualismo platônico, antes que do holismp bíblico.

O maciço ataque da erudição 'ao ponto de vista dualístico tradicional, sobre

a natureza humana finalmente se infiltrará nas fileiras das denominações cris­

tãs. Quando isso acontecer, causará uma cris,e intelectual e pessoal nos cristãos

acostumados a crer que ·pôr ocasião׳ da'׳ morte suas־ almas libertam-se do corpo

e continuam; a existir,;seja na bem-aventurança do paraíso ou no tormento do.

inferno. Muitos cristãos se desapontarão profundamente aq descobrirem que

suas crénças no além-túmulo são um.equívoco, .

Não há dúvida de que a erudição bíblica haverá de provocar grande an­

siedade sobre milhões de cristãos que crêem que, suas almas desincorporadas

irão para o céu depois da morte.·O propósito deste estudo não ê intensificar tal

ansiedade, mas encorajar todos os cristãos: comprometidos com. a autoridade

normativa das Escrituras a reexaminarem suas crenças tradicionais e rejeitá-

las caso se demonstrarem antibíblicás. A esperança do cristão por um amanhã

melhor deve firmar-se nos inegáveis ensinos da. Palavra de Deus, antes que em

tradições eclesiásticas.

R a z õ e s p a r a e s c r e v e r e st e l iv r o

Duas principais razões motivafam-me a empreender esta pesquisa. A

primeira é estar ciente de que a despeito dos maciços ataques por eruditos

bíblicos contra o dualismo tradicional, a crença na existência consciente apõs

a morte está adquirindo maior aceitação popular. Segundo recente pesquisa

Galíup, 71% dos americanos acreditam numa vida consciente apõs a morte.1

O aumento da aceitação dessa crença pode ser atribuído a fatores como a po­

lida imagem de médiuns e par anormais, às sofisticadas pesquisas “científicas”

sobre experiênciás de quase-morte.e a popular canalização da nova.era.com

supostos espíritos do passado. Métodos como esses são muito bem-sucedidos

em fazer as pessoas crerem na mentira de Satanás de que, não importa o que

façam, “é certo que não morrereis” (Gn 3:4), tornando-se assim como׳ deuses

por viverem para sempre. ׳

A segunda razão para empreender este estudo é a de que a maior parte

dos estudos eruditos nessa área são técnicos era natureza e limitados em es­

copo. São’escritos numa linguagem técnica ■fazendo uso de palavras originais

hebraicas e gregas que a maior parte dos leitores leigos não compreende. O

escopo delas é limitado e muitas vezes tratam exclusivamente da questão da

natureza humana (antropologia bíblica) õu dò destino humano (escatologia.

bíblica). Especialistas bíblicos raramente tentaram mostrar a relação entre o

ensmo bíblico quanto à constituição da natureza humana e seu ensino sobre a

natureza do destino humano.

A percepção da crescente aceitação . popular dá crença na existência

consciente após a morte e á escassez de livros escritos em nível popular abor­

dando a questão de uma perspectiva bíblica conveiiceram-me da necessidade

de escrever este livro. Minha metá e dupla. Por uni lado, tento desmascarar

com raciocínio bíblico a mais antiga è possivelmente maior mentira de todos

os tempos, ou seja, a de que os seres humanos possuem almas imortais que

vivem para sempre. Esse ensino enganoso tem fomentado unia ampla gama de

crenças errôneas que afetam adversaníentc o pensametilO è prática cristãos.

Pór outro lado, esforço-me por demonstrar como o ponto de vista hoEstico

bíblico da natureza humana melhora a hòssá apreciação da vida física deste

mundo presente, dá redenção e de nosso destino final.

I m o r t a l id a d e o u R e s s u r r e iç ã o ?

In tr o d u ç ã o

Procedimento

O procedimento que segui consiste em duas etapas. Primeiro, investiguei

nos capítulos 2 e 3 a compreensão do Antigo e Novo Testamentos sobre na­

tureza humana, examinando o significado e emprego de termos-chave como

alma, corpo, espírito, carne e coração. Este estudo demonstra que tais termos são

freqüentemente utilizados intercambiavelmente porque o ponto de vista bíblico

da natureza humana é holístico, e não dualístico. O corpo e a alma, a carne e o

espírito, são características da mesma pessoa, e não componentes destacáveis

que “se separam” na morte.

Em segundo lugar, demonstrei nos capítulos 4 a 7 como o ponto de vista

holístico da natureza humana relaciona-se com os ensinos bíblicos concernentes

à natureza da morte, ao estado dos mortos até a ressurreição, ao segundo adven­

to, à punição final dos malfeitores e ao mundo por vir. O estudo revela que há

uma clara ligação

,

humana, o que uma pessoa realmente é

no mais íntimo de seu ser. Como declarado em 1 Samuel 16:7, “O homem vê o

exterior, porém o Senhor vê o coração”.

Em muitas maneiras, o coração é o centro unificador da pessoa inte­

gral, corpo e alma. Algumas das funções do coração sobrepõem-se àquelas da

alma, mas isto não surpreende porque, segundo a perspectiva holística bíblica,

não ocorre distinção radical entre a alma e o coração. Jesus disse: “Amaras o

Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma e de todo o teu

entendimento״ (Mt 22:37).

"O coração”, escreve Pedersen, “é a totalidade da alma como um poder de

caráter e operacional (...) Ne^/ies/r é a alma na soma de sua totalidade, tal como se

apresenta; o coração é a alma em seu valor mais íntimo”.53 Q que é dito a respei­

to da alma muitas vezes pode ser aplicado ao coração. A unidade funcional que

encontramos entre o corpo, a alma e o coração nega o ponto de vista dualístico

da natureza humana, que separa a alma do corpo. Apesar de os dualistas verem as

tunções espirituais e morais da natureza humana como uma prerrogativa da alma,

elas são muitas vezes atribuídas ao coração, demonstrando que na Bíblia a alma

não existe e não opera como uma essência distinta, imaterial, à parte do corpo.

A NATUREZA HUMANA COMO ESPÍRITO

Até aqui, temos visto que o Antigo Testamento define a natureza humana

como uma unidade, o homem sendo uma alma (ser vivente) segundo um aspecto,

cume (ser físico) segundo outro aspecto, e coração (ser racional) por outro aspec­

to ainda. Há mais um importante aspecto a ser considerado, qual seja, o homem

como espírito. O termo “espírito” traduz o hebraico ruach e seu equivalente neo-

testamentárío pneuma. Estudaremos este último no capítulo 3, onde examinamos

o ponto de vista do Novo Testamento sobre a natureza humana.

O estudo da presença do espírito de Deus nos seres humanos é importante

porque os dualistas freqüentemente identificam o espírito de Deus numa pessoa

com a alma dada por Deus para cada indivíduo e a Ele retomando quando da morte.

*Assim, nossa preocupação é estabelecer, primeiro, a natureza do espírito de Deus

numa pessoa, e, em segundo lugar, se o espírito nos seres humanos é um componen­

te distinto e separado da natureza humana ou um aspecto indivisível da mesma.

Im ortalidade ou Ressurreição?

Um exame superficial dos dados estatísticos do emprego do termo “espí-

rito-mic/i” no Antigo Testamento demonstra que há pelo menos duas coisas

singulares a respeito deste termo que ocorre num total de 389 vezes. Primeira­

mente, não menos do que 113 vezes rwach-espírito denota o poder natural do

vento. Deste modo, é um termo associado com a manifestação de poder. Em se­

gundo lugar, 35 por cento das vezes (136 vezes) ruach-espírito refere-se a Deus.

Somente 33 por cento das vezes (129 vezes) refere-se aos homens, animais e

falsos deuses. Isso é surpreendente em face do fato de que “carne״bashar” nunca

é aplicado a Deus, e “alma-nepJiesh” somente se aplica a Deus em três por cento

dos casos (21 vezes).54

A base desses dados estatísticos, Hans Walter Wolff corretamente conclui

que iuruach [espírito]’ deve, a panir do próprio início, apropriadamente ser cha­

mado um termo teoantropológico”,55 isto é, um termo com conotações divino-

humanas. A Bíblia aplica raoc/i-espírito tanto a Deus quanto ao homem. Para

entender o conceito bíblico do espírito do homem é importante entender o signi­

ficado bíblico do espírito de Deus. Iremos nos empenhar em fazer isso examinando

especialmente como o espírito de Deus opera dentro da natureza humana.

O SENTIDO DE “ eSPÍRITO-RUACh ”

O termo hebraico geralmente traduzido por “espírito” é ruach, que literal­

mente significa “ar em movimento, vento”. Assim, empênesis 1:2. o espírito-nw-

ch de Deus movia-se sobre as águas e em Isaías 7:2, “como se agitam as árvores do

bosque”. Wolff assinala que ruach não significa o ar estático, mas o “ar em movi­

mento” 56 que gera considerável poder. Não surpreende que o poder formidável do

vento [ruach] é frequentemente visto como uma manifestação do poder de Deus.

O vento oriental [ruach] traz gafanhotos (Ex 1Q:13). Um vento poderoso [ruac/i]

sopra sobre a Terra e faz com que as águas do dilúvio baixem ÍGn 8:1 ).

O poder manifesto pelo vento é associado nas Escrituras ao sopro de Deus,

que é seu poder criativo e sustentador. Encontramos esse uso pela primeira vez em

Gênesis 2:7; “Então formou o Senhor ao homem do pó da terra, e lhe soprou nas

narinas o fôlego [neshamah] de vida, e o homem passou a ser alma vivente”.

Antes examinamos esse grande texto para assegurar-nos da ligação entre

“fôlego de vida” e “alma vivente”. Agora buscamos entender mais plenamente

como o “fôlego de vida” leva o homem a tornar-se uma alma vivente. A palavra

hebraica empregada para fôlego aqui não é ruach-espírito, mas o termo raramen­

te utilizado nes/izzmzzfiTôlego. O significado dos dois termos é semelhante, como

indicado pelo fato de que aparecem em paralelo em cinco passagens (Is 42:5; Jó

27:4; 32:8; 33:4; 34T4, 15). Jó 33:4 declara: “O espírito [ruach] de Deus me fez; e

o sopro do Tòdo-poderoso me dá vida”. Uma vez mais: “se Deus pensasse apenas

Ο ΡΟΝΤΟ DE VISTA BÍBLICO DA NATUREZA HUMANA

em si mesmo, e para si recolhesse o seu espírito [ruach] e o seu sopro [neshamah},

toda a came juntamente expiraria, e o homem voltaria para o dó” (Tó 34:14, 15).

Nestas passagens, neshamah e rwach são utilizadas como sinônimos, contudo

parece haver uma leve diferença entre os dois termos. Nes/Wntfh denota respiração

física calma, pacífica, enquanto ruach descreve uma forma mais ativa e dinâmica

de respiração. Ruach parece também ser o agente que torna a respiração possível.

-Enquanto em mim estiver a minha vida [“fôlego-neshamoh^VKJ] , e o sopro

Iruach] do Todo-poderoso nos meus narizes...” (1ó 27:31. Aqui a respiração-nesha״

mah está na pessoa, enquanto o espírito-ruach está no respirar através das narinas.

-Assim diz Deus, o Senhor (...) que dá fôlego de vida [neshamah] ao povo que nela

está, e o espírito [ruac/i] aos que andam nela” (Is 42:5). Aqui espírito -ruach signi­

fica mais do que respirar porque é dado somente “aos que andam nela”. E como se

a respiração-neshamah fosse uma das manifestações do espírito-ruach de Deus. O

último termo tem significados e funções mais amplos. Uma das funções do espírito

de Deus é conceder a vida e sustêda mediante o processo de respiração. “O fôlego

vital de Deus é dom de Deus; ele respira por cortesia do espírito de Deus”.57

E interessante observar que a leitura marginal de Gênesis 7:22 na Versão

Autorizada (em inglês) verte “o fôlego de vida” como “o fôlego do espírito de

vida", Essa tradução literal do hebraico transmite a idéia de que o fôlego de vida

[neshamah] deriva do espírito [ruach] que concede vida. Comentando este texto,

Basil Atkínson escreve:

Neshcmuih [fôlegol parece ser uma propriedade ou porção da ruach [espírito] e ser

concernente com o que hoje chamaríamos de vida física. Ruach, que também é um

princípio de vida, é muito mais amplo. Produz e sustém a vida interior e exterior do

homem, seu intelecto, pensamentos abstratos, emoções e desejos, bem como cobre

a ação integral da neshamah sobre a vida física,5*

O ESPÍRITO COMO UM PRINCÍPIO DE VIDA

O uso paralelo de neshamah-fôlego de vida e ruach-espírito nos textos citados

demonstra que o “fôlego de vida” é o espírito de Deus que transmite vida, mani­

festo na criação da vida humana e do universo como um todo. “Que variedade,

Senhor, nas tuas obras (...) cheia está a Terra das tuas riquezas. Se ocultas o teu

rosto, eles se perturbam; se lhes corta a respiração [ruach], morrem, e voltam ao

$eu pó. Envias o teu espírito [ruach] e eles são criados, e assim renovas a face da

teira” (SI 104:24, 29, 30). “Fôlego” e “espírito” aqui traduzem ruach, indicando

assim que o “fôlego de vida” é igualado ao espírito de Deus que transmite vida e

que cria e renova “a face da terra”.

Há numerosos

,

textos no Antigo Testamento em que o espírito׳-ruach refere-se

ao princípio de vida presente nos seres humanos. Em Isàías 38:16, encontramos o rei

Im o r ta lid a d e o u R essu r r eiç ã o ?

Ezequias declarando: ',Senhor, por estas disposições tuas vivem os homens, e inteira­

mente delas depende o meu espírito [ruach]”. A cláusula “depende o meu espírito”

muito provavelmente refere-se à recuperação da saúde de Ezequias, uma vez que o

texto prossegue dizendo: “Portanto, restaura-me a saúde e faze-me viver” (Is 38:16),

Aqui, o espírito -ruach é claramente identificado com vida, Nâo há qualquer sugestão

de que o espírito no homem é um componente independente e imortal da natureza

humana. Antes, é o princípio animador de vida visível mediante a respiração.

ídolos que não têm qualquer vida são descritos como sem “fôlego-ruac/i”.

“Todo ourives é envergonhado pela imagem que ele esculpiu; pois as suas ima­

gens são mentira, e nelas não há fôlego [ruach]” (Jr 10:4). “Eis que está coberto

de ouro e de prata, mas no seu interior não há fôlego [ruach] nenhum" ÇHc

y2:19). Em ambos os textos, ruach é vertido como “fôlego" porque o respirar é

uma manifestação do espírito de Deus na natureza humana. E evidente que os

ídolos são destituídos de vida porque nâo contam com ruach, o princípio que

anima a vida que capacita uma pessoa a respirar.

Ao descrever o destino do rei Zedequias às mãos de Nabucodonosor, Jeremias

emprega uma interessante figura de linguagem: “O fôlego [ruach] de nossa vida, o

ungido do Senhor foi preso nos forjes deles” (Lm 4:20). Aqui Zedequias é imaginado

como a própria vida-nwcfi da nação que foi removida quando o rei foi levado em

cativeiro. É onde temos um claro exemplo de ruach denotando o princípio de vida.

Falando de Sansão, Juízes 15:19 declara: “Tendo Sansão bebido, recobrou

alento [ruach]” (Jz 15:19). Esse despertar não é da morte, mas da exaustão. Encon­

tramos exatamente o mesmo emprego em 1 Samuel 30:12 e Daniel 10:17. Em todos

esses casos, o espírito-rwach denota a renovação física da vida. Sendo um agente

transmissor de vida, o espíríto-mich adequadamente pode representar também a

renovação física da vida. A ligação entre espírito-ruach e vida é evidente.

Em sua famosa visão do vale dos ossos secos, Ezequiel propicia um exemplo

muito expressivo do poder vivificador do espírito de Deus-ruac/i:

Assim diz o Senhor Deus a estes ossos: Eis que farei entrar o espírito [ruach] em

vós, e vivereis. (...) E sabereis que Eu sou o Senhor. (...) Vem dos quatro ventos, ó

espírito [ruach], e assopra sobre eles, para que vivam. Então ele me disse: Profetizei

como ele me ordenara, e o espírito [ruach] entrou neles e viveram e se puseram em

pé (Ez 37:5, 6, 9, 10).

Aqui o fôlego de Deus é seu espírito vitalizador, como na criação do ho­

mem. O espírito transmissor de vida é identificado com o fôlego de Deus porque

sua manifestação levou os corpos mortos a tomarem vida e respirarem nova­

mente. O respirar é uma manifestação tangível da vida e assim propicia uma

adequada metáfora para o princípio animador de vida do espírito.

Ο ΡΟΝΤΟ DE VISTA BÍBLICO DA NATUREZA HUMANA

O ESPÍRITO COMO PALAVRA DE D EUS

No Salmo 33:6 encontramos um interessante paralelismo entre o fôlego de

Deus e sua palavra: “Os céus por sua palavra se fizeram, e pelo sopro [ruach] de

sua boca o exército deles”. Aqui, o fôlego-rwach de Deus age como sinônimo para a

palavra de Deus porque ambos procedem de sua boca. O paralelismo sugere que o

tôlego de Deus é mais do que ar que se move. Esse é o poder de vida manifesto me­

diante a palavra falada de Deus.

Outro exemplo em que a palavra de Deus está associada com ruach-espírito

se acha em Salmos! 147:18: “Manda a sua palavra, e o derrete; faz soprar o vento

[ruach] e as águas correm”. Aqui, a palavra de Deus está associada com ruach-fòlè-

20 ou vento, presumivelmente porque a fala é produzida pela respiração e procede

da boca. Deus é descrito analogicamente de acordo com o processo humano de

falar mediante a respiração.

Nunca devemos nos esquecer que os hebreus descreviam as coisas como as viam,

concretamente, não abstratamente. Viam que a fala era causada pelo respirar, assim

era natural associarem o hálito de Deus com sua palavra. Deste modo, o fôlego de

Deus devia ser entendido não como o ar que se move, mas como o poder transmissor

de vida manifesto mediante sua palavra falada. Quando Deus fala as coisas aconte­

cem, porque sua palavra não é um discurso vazio, mas um poder transmissor de vida.

Q ESPÍRITO COM O RENOVAÇÁO M ORAL

A renovação ou recriação empreendida pelo espírito de Deus não é somente

tisica, mas também moral. Davi orou: “Cria em mim, ó Deus, um coração puro,

e renova dentro em mim um espírito [ruach] inabalável Não me repulses da tua

presença, nem me retires o teu santo espírito” (SI 51:10, 1 1 ). O “espírito [ruach]

inabalável” é a correta disposição de uma pessoa para com Deus que é tornado

possível pelo espirito [ruach] santo de Deus”. Assim, o espírito -ruach é tanto o

espírito de Deus quanto o espírito do homem. Deus concede o espírito para criar

e suster a vida. O homem recebe o espírito para viver segundo a vontade de Deus.

Friedrích Baumgarten escreve: “O espírito de Deus é um poder criativo e transfor­

mador, e seu propósito é criar uma esfera de religião e moralidade”.59

Em Ezequiel encontramos o espírito 'ruach empregado três vezes para o novo

princípio regenerado de vida que Deus coloca dentro do crente quando ele se

converte (Ez 11:19; 18:31; 36:26). “Dar-vos-eí coração novo, e porei dentro em

vós espírito [ruach] novo; tirarei de vós o coração de pedra e vos darei coração

de carne . (Ez 36:26). Aqui, o Knovo espírito-ruíic/i” associa-se a um “novo cora­

ção , porque descobrimos que o coração é a mente, ou o centro de raciocínio do

indivíduo. O novo espírito-ruach” é uma atitude de voluntária obediência aos

mandamentos de Deus que procede de uma renovação mental (Rm 12:2). Esse

Im orta lid a d e o u R essu rreiçã o?

significado é esclarecido pelo verso que vem logo a seguir: “Porei dentro em vós

o meu espírito [ruach] e farei que andeis nos meus estatutos, guardeis os meus

juízos e os observeis15 (Ez 36:27b E mediante o poder capacitador do espírito de

Deus que nossa mente e renovada de modo a que possamos viver de acordo com

os princípios morais que Deus revelou para o nosso bem-estar

O ESPÍRITO COMO PODER CAPACITADOR

O espírito de Deus é manifestado somente na criação e sustentação da vida,

mas também em equipar os indivíduos para tarefas específicas. Quando Deus co­

missionou Gideão para livrar os israelitas da tirania de Midiã, "Então o espírito

׳ do Senhor revestiu a Gideão1’ Qz ó;34) e capacitou [ruach]־ o a conduzir os israe­

litas à vitória. Foi o espírito do Senhor que equipou Gideão para a tarefa, porque

ele questionava suas próprias qualificações: “Ai, Senhor meu, com que livrarei a

Israel? Eis que a minha família é a mais pobre em Manassés, e eu o menor da casa

de meu pai11 j]z 6:15).

A mesma coisa ocorreu com Jefté: "Então o espírito [ruach] do Senhor veio

sobre jefté; e atravessando este por Gileade e de Mispa de Gileade contra os filhos

de Amom” (Iz 11; 29, 32). Em tais casos, o espírito de Deus capacitou certos diri­

gentes israelitas a realizar atos sobre-humanos em momentos críticos.

O espírito de Deus também foi concedido a líderes nacionais para levarem a

cabo o plano de Deus para Israel. Quando o ״espírito do Senhor” veio sobre Saul, ele

transformou-se “em outro homem11 (ÍSm 10:6). Semelhantemente, quando Samuel

ungiu a Davi para suceder a Saul como rei, “daquele dia em diante o espírito [ruach]

do Senhor se apossou de Davi’1 (ISm 16:13). Observe-se que Davi foi ungido rei,

tendo-se “retirado de Saul o espírito [ruach] cio Senhor” (ISm 16:14)■ O espírito

que deixou Saul dificilmente poderia ser sua alma que partiu para Deus, uma vez

que ele continuou vivo. A retirada do espírito desqualificou Saul como rei de Israel,

enquanto

,

a concessão do espírito a Davi qualificou-o para reinar sobre o povo.

É evidente que o espírito que Deus concedeu a Gideão e Jefté para julga­

rem e a Davi para reinar não é o mesmo “fôlego de vida” que está presente em

todo ser humano. Este último é o princípio de vida que anima todo ser humano,

enquanto o primeiro é o espírito de Deus concedido à indivíduos escolhidos para

equipá-los para uma missão especial. No caso de Bezazel, por exemplo, o espírito

de Deus equípou-o com talentos especiais para a edificação do santuário. "E o

enchi do espírito de Deus, de habilidade, de inteligência, e de conhecimento, em

todo artifício, para elaborar desenhos e trabalhar em ouro, em prata, em bronze, e

para lapidação de pedras de engaste, para entalho de madeira, para toda sorte de

habilidades” (Êx 31:3-5).

Ο ΡΟΝΤΟ DE VISTA BÍBLICO DA NATUREZA HUMANA

O espírito de Deus comissionava profetas para comunicarem mensagens es­

peciais para o povo. Esequíel declara: ‘1Então entrou em mim o espírito, quando

falava comigo, e me pôs em pé, e ouvi o que me falava”. Repetidamente, os pro­

fetas dizem que o espírito do Senhor veio sobre eles. Zacarias fala da “lei, nem as

palavras que o Senhor dos exércitos enviara pelo seu espírito fruach] mediante os

profetas que nos precederam” (Zc 7:12).

A concessão do espírito de Deus é vista como uma comissão oficial divina.

Em Isaías 61, o Servo do Senhor, o Messias, é ungido pelo espírito para a sua mis­

são: “O espírito [ruach] do Senhor está sobre mim, porque o Senhor me ungiu

para pregar boas-novas aos quebrantados, enviou־־me a curar os quebrantados de

coração, a proclamar libertação aos cativos, e a pôr em liberdade os algemados” JJs

61:1)» Joel profetizou do tempo messiânico quando o espírito de Deu^seria derra­

mado sobre todo crente: “E acontecerá que derramarei o meu espírito sobre toda

a carne; vossos filhos e vossas filhas profetizarão, vossos velhos sonharão, e vossos

jovens terão visões”. Nesses casos, o espírito de Deus opera não como o princípio

animador da vida física, mas como o agente que equipa os crentes para o serviço.

O ESPÍRITO COMO A DISPOSIÇÃO DE UM INDIVÍDUO

A idéia de poder manifesto pelo espírito-ruach é levada ao que chamaría­

mos a disposição ou impulso dominante de um indivíduo. Uma pessoa viva tem

impulsos que o dominam, ou, pelo menos, tentam fazê-lo, e que ele deve vencer.

Isso é freqüentemente expresso no Antigo Testamento pelo termo espírito-ruach,

e caracteriza o espírito humano muitas vezes antagônico a Deus. Oséias queixa-

se de que um “espírito [ruach] de prostituição” iludiu os sacerdotes (Os 4:12).

Ezequiel denunciou os “profetas loucos, que seguem o seu próprio èspírito sem

nada ter visto” (Ez 13:3). Salmos 78:8 fala da geração do deserto “cujo espírito

[ruach] não foi fiel a Deus”. Provérbios 25:28 compara um homem que não “tem

domínio próprio” [“não governa seu próprio espírito-ruach”, VKJ] a uma cidade

sem muros. Eclesiastes diz que “melhor é o paciente [‘em espírito-ruacJT, VKJ] do

que o arrogante [‘orgulhoso em espírito-ruach’, VKJ]”. Em todos esses exemplos,

o espírito denota uma atitude de obediência ou desobediência a Deus. Assim, não

é para ser confundido com a função transmissora de vida do espírito de Deus.

As vezes, o espírito -ruach é a sede da dor, geralmente referido no hebraico

como “amargura do espírito”. E-nos dito que o povo de Israel não atendeu “a

Moisés por causa da ânsia de espírito [ruach] e da dura escravidão” (Ex 6:9).

Ana disse ao sacerdote, “sou mulher atribulada de espírito Iruachj; não bebi

nem vinho nem bebida forte; porém venho derramando a minha alma perante o

Senhor” (ISm 1:15). Aqui o espírito abatido é comparado com o esvaziamento

da alma perante Deus.

Im o rta lid a d e o u R essu r r eiç ã o ?

O espíríco e a alma são mencionados juntos porque ambos representam a

vitalidade da vida afetada pelo sofrimento. ErruProvérbios 15:13. lemos que ‘4com

a tristeza do coração o espírito [ruach] se abate”. Aqui» descobrimos que o coração

é a sede do sofrimento, mas o sofrimento despedaça o espírito ou a vida íntima de

uma pessoa. A interação entre espírito e alma, ou coração e espírito, faz-nos lem­

brar o entendimento holístico bíblico da natureza humana, seus vários aspectos

sendo todos partes de um ser humano indivisível.

Há casos em que o espírito-ruach é a sede das emoções. Provérbios 16:32

declara: “Melhor é o longânimo do que o herói de guerra, e o que domina o seu

espírito [rnach] do que o que toma uma cidade”. Governar o espírito de alguém

significa controlar o temperamento ou ira. Em vários exemplos, ruach é traduzido

como “ira” [Jz 8:3; Ez 3:14; Pv 14:29; 16:32; Ec 7:9; 10:4). Noutros textos, ruach

denota coragem: “Ouvindo isto, desmaiou-nos o coração, e em ninguém mais há

ânimo [ruach] algum” Qs 2 :1 1 ).

Há também passagens em que espírito-nmc/t é empregado com o sentido de

tristeza: “Porque o Senhor te chamou como a mulher desamparada e de espírito

[ruach] abatido” (ls 54:6). “Perto está o Senhor dos que têm o coração quebranta­

do, e salva os de espírito [ruach] oprimido” (SL34:18).60 O espírito-ruach também

pode denotar contrição e humildade. Assim sendo, temos a bela passagem em ba-

ias 57:15: ‘4Habito no alto e santo lugar, mas habito também com o contrito e aba­

tido de espírito [ruach], para vivificar o espírito [ruach] dos abatidos, e vivificar o

coração dos contritos”. Novamente em Isaías 66:2: “O homem para quem olharei é

este: o aflito e abatido de espírito [ruach], e que treme diante da minha palavra”.

Este breve levantamento dos vários empregos de espírito-rtíac/i no Antigo

Testamento demonstrou que o espírito é um princípio vital que deriva de Deus e

mantém a vida humana. Numa maneira figurada, o espírito-ruach é empregado

para referir-se à renovação moral interior, boas ou más disposições, impulsos do­

minantes, dor, coragem, tristeza» contrição e humildade. Nenhum dos empregos

que estudamos sugere que o espírito retém consciência ou personalidade quando

deixa uma pessoa por ocasião da morte. A função do espírito como transmissor de

vida e princípio sustentador cessa quando a pessoa morre.

A PARTIDA DO ESPÍRITO NA MORTE

Onze passagens do Antigo Testamento falam da partida ou remoção do

espírito por ocasião da morte.61 Destas, quatro merecem atenção especial por­

que são freqüentemente utilizadas para apoiar a crença de que por ocasião da

morte o espírito vai para Deus, levando consigo a personalidade e a consciência

do indivíduo que falece.

Ao predizer a morte do Senhor na cruz, o Salmo 31:5 declara: “Nas Tuas

mãos entrego o meu espírito [ruacky\ O “espírito” que Cristo entregou nas mãos

Ο ΡΟΝΤΟ DE VISTA BÍBLICO DA NATUREZA HUMANA

de seu Pai nada mais era do que sua vida humana que estava deixando nas mãos

de seu Pai para aguardar sua ressurreição! Ao dele partir o princípio animador de

vida, o Senhor morreu e mergulhou em inconsciência.

Falando de criaturas marinhas, o salmista declara: uSe lhes cortas a respi­

ração [ruach]} morrem, e voltam ao seu pó” (SI 104:29). Ninguém alegará que

o espírito-mzch dos peixes quando morrem leva consigo consciência e persona­

lidade. Temos razão para crer que o mesmo seja verdade para os seres humanos,

porque a mesma expressão é empregada para ambos. De fato, no verso seguinte

a criação dos animais é descrita por meio do espírito divino transmissor de vida,

como é a criação do homem: “Envias o teu espírito, eles são criados, e assim

renovas ־a face da Terra” (Sl 104:30).

Como a criação da vida é metaforicamente representada por enviar o espí­

rito de Deus, assim a terminação da vida, morte, é descrita como a retirada ou

remoção do fôlego de Deus. A última é claramente expressa em Jó 34:14, 15:

“Se Deus (...) para si recolhesse o seu espírito [ruach] e o seu sopro [neshamah],

toda carne juntamente expiraria, e o homem voltaria para o pó”. Novamente, o

mesmo pensamento é expresso na bem conhecida passagem de Eclesiastes 12:7:

UE o pó volte à

,

terra, como o era, e o espírito volta a Deus, que o deu”.

Estes últimos dois textos são muito importantes, porque são comumente

citados para apoiar a crença de que o “espírito-ruach1’ que retoma para Deus é a

alma que deixa o corpo por ocasião da morte transportando consciência e per­

sonalidade. Esta interpretação carece dfe respaldo bíblico por quatro principais

razões. Primeiramente, em parte alguma na Bíblia é o fôlego de Deus ou espírito

identificado com a alma humana. A existência da alma depende da presença do

fôlego [neshamah] o.u espírito [ruach] transmissor de vida. E quando o espírito

transmissor de vida é retirado, uma pessoa cessa de ser uma alma vivente e tor­

na-se uma alma morta. Assim, o salmista diz: “Sai-lhes o espírito [ruach] e eles

tornam ao pó; nesse mesmo dia perecem todos os seus desígnios” (Sl 146:4).

Em segundo lugar, em parte alguma a Bíblia sugere que o espírito transmis­

sor de vida que retorna para Deus continua a existir como uma alma imaterial

do corpo que morreu. Pelo contrário, a Bíblia ensina que quando Deus retira o

seu fôlego de vida ou espírito de vida, o resultado não é a sobrevivência da alma,

mas a morte da pessoa total, “perecem todos os seus desígnios” [“pensamentos”,

VKJ1 (Sl 146:4), porque não há mais consciência. À morte aplica-se tanto ao

corpo quanto à alma, porque, como vimos, ambos são inseparáveis. O corpo é a

forma exterior da alma e a alma é a forma interior do corpo.

Em terceiro lugar, o espírito que retorna para Deus refere-se a todos os

homens (“toda carne”), não somente o dos bons. Os que alegam que o espírito

de todas as pessoas, salvas e perdidas, vão para Deus para julgamento ignoram

que as Escrituras ensinam que o julgamento tem lugar, não quando da morte,

mas por ocasião da vinda do Senhor no fim do mundo.

Im o r t a l id a d e o u R e ssu r r e iç ã o ?

Em quarto lugar, a Bíblia nunca sugere que o fôlego de vida toma o seu possui­

dor imortal ou isento de morte. Em nenhuma das 389 ocorrências de rwdc/i-espírito

no Antigo Testamento há qualquer sugestão de que ruach-espírito seja uma entidade

inteligente da natureza humana capaz de existência à parte de um corpo físico. Pelo

contrário, a Bíblia fala da morte daqueles que possuem o fôlego de vida: “Porque eis

que estou para derramar águas em dilúvio sobre a Terra para consumir toda carne

em que há fôlego de vida [ruach] debaixo dos céus; tudo o que há na Terra perecerá

[gava-deixa de respirar] ” (Gn 6:17). “Pereceu toda carne que se movia sobre a Terra,

(...) Tudo o que tinha fôlego de vida [ruach] em suas narinas, tudo o que havia em

terra seca, morreu [gm/a-deixou de respirar]” (Gn 7 :2 1 , 22).

E evidente a partir de textos como estes que possuir o fôlego ou o espírito de

vida não significa ter uma alma imortal. O fôlego de vida é simplesmente o dom

de vida dado aos seres humanos e animais pela duração de sua existência terrena.

O espírito ou fôlego de vida que retorna para Deus poT ocasião da morte é sim­

plesmente o princípio de vida concedido por Deus tanto para os seres humanos

quanto para os animais. Este ponto é claramente exposto em Eclesiastes 3:19:

“Porque o que sucede aos filhos dos homens, sucede aos animais; o mesmo lhes

sucede; como morre um, assim morre o outro, todos têm o mesmo fôlego de vida

[ruach], e nenhuma vantagem tem o homem sobre os animais”. Os que alegam

que os animais não possuem o espírito [ruach] de vida, mas somente o fôlego

[neshamah] de vida ignoram o que tanto Eclesiastes 3:21 quanto Gênesis 7:15, 22

claramente expressam ao dizer que os animais possuem o mesmo espírito--ruach de

vida concedido aos seres humanos,

Não há indicação na Bíblia de que o espírito de vida dado ao homem por

ocasião da criação fosse uma entidade consciente antes de ter sido dado. Isso nos

dá razão para crer que o espírito de vida não tem personalidade consciente quan­

do retorna para Deus. O espírito que retorna para Deus é simplesmente o princí­

pio animador de vida concedido por Deus tanto para homens quanto animais pela

duração de sua existência terrestre.

C o n c l u s ã o

Chegamos ao final da nossa investigação de quatro destacados termos em­

pregados no Antigo Testamento para descrever a natureza humana, quais sejam,

alma, corpo, coração e espírito. Constatamos que esses termos não representam

entidades diferentes, cada uma com seu próprio conjunto de funções, mas diferentes

funções que são inter-relacionadas e integradas dentro do mesmo organismo, O Anti­

go Testamento considera a natureza humana como uma unidade, não uma dicotomia.

Não há contraste entre o corpo e a alma, como esses termos nos sugerem.

Ο ΡΟΝΤΟ DE VISTA BÍBLICO DA NATUREZA HUMANA

A alma não é uma parte imaterial, imortal da natureza humana que se con­

trasta com o corpo, mas designa o princípio־ de vitalidade ou vida na natureza

humana. A última é composta de uma forma que consiste do pó e um princípio

vital, chamado ocasionalmente fôlego (neshamah) e geralmente espírito (ruach),

soprado nele por Deus. O corpo e o divino sopro juntamente constituem a alma

vital, ativa-nephesh. A sede da alma é o sangue, porque é visto como a manifesta·'

ção tangível da vitalidade da vida.

Desde o princípio de vida, o termo “alma-nephesh” é estendido para incluir o

sentimento, paixões, vontade, e personalidade de um indivíduo. Pode então ser em­

pregado como sinônimo para o próprio homem. As pessoas são contadas como almas

{Gn 12:5; 46:27). A morte afeta a alma-nephesh (Nm 23:10) bem como o corpo.

O espírito־*ruac/i, que Uteralmente significa ״ar em movimento, vento”, é fre­

quentemente empregado para Deus. O espírito -ruach de Deus é o seu fôlego, ou

seja, o seu poder manifestado em criar e suster a vida (Sl 33:ó; 104:29, 30). A res­

piração humana-rwach deriva do fôlego-ruach de Deus (Is 42:5; Jó 27:3). Em um

sentido figurado, o espírito ■־ruach é expandido para referir-se à renovação moral

interior, boas e más disposições, vida emocional e volitiva, assim sobrepondo-se

um tanto à alma-nephesh. A diferença entre alma-nephesh e espírito-ruach é que

este último designa principalmente uma pessoa vivente em relação com outros

seres humanos, enquanto o último refere-se a uma pessoa em relação com Deus.

Contudo, temos visto que nem a alma nem o espírito são considerados como parte

da natureza humana capaz de sobreviver à morte do corpo.

As referências do Antigo Testamento à carne ou ao corpo nunca sugerem que

as funções corporais sejam puramente biológicas e independentes das funções psi­

cológicas da alma. Não há distinção no Antigo Testamento entre órgãos físicos e

espirituais, porque todo o conjunto de funções humanas mais elevadas tais como

sentimento, pensamento, conhecimento, amor, observância dos mandamentos de

Deus, louvor e oração são igualmente atribuídos aos órgãos “espirituais” da alma (ou

espírito) e ao órgão “físico” do coração e, ocasionalmente, dos rins e intestinos.

Os órgãos corporais realizam funções psíquicas. Assim, o coração pensa, os

rins se regozijam, o fígado lamenta, e os intestinos sentem simpatia^ Isso é possível

pqrque do ponto de vista holístico da natureza humana uma parte da pessoa pode

às vezes representar o organismo integral

As referências à partida (Gn 35:18) e retomo (lRs 17:21, 22) da alma não po­

dem ser legitimamente empregadas para apoiar o ponto de vista de que, por ocasião

da morte, a alma deixa o corpo e retoma a ele por ocasião da ressurreição. Temos visto

que a partida da alma é uma metáfora para a morte, indicando que a pessoa cessou de

respirar. Semelhantemente, o retomo da alma é uma metáfora para a restauração da

vida, indicando que a pessoa começou a respirar novamente. O que é verdadeiro com

relação à alma é também verdadeiro quanto ao fôlego de vida ou espírito que retoma

Im q r ta u d a d e o u R essurreição .7

para Deus por ocasião da morte. O que retoma a Deus não é uma alma imortal, mas

simplesmente o princípio animador da vida concedido por Deus tanto aos seres

,

huma'

nos quanto aos animais pela duração de sua existência terrena.62

Ralph Walter Doermann chega basicamente à mesma conclusão em sua dis­

sertação doutoral “Sheoí no Antigo Testamento”, apresentada em 1961 na Uni­

versidade Duke. Ele escreveu:

É evidente do ponto de vista hebraico da unidade psicossomática do homem que há

pouco espaço para uma crença na ‘1imortalidade da alma”. O u a pessoa inteira viveu

ou a pessoa inteira desce à morte, a forma mais fraca de vida. N ão houve existência

independente para a ntach [espírito] à parte do corpo. Com a morte do corpo, o ruach

' [espírito] impessoal “volta para Deus que o deu” (Ec 12:7) e o nephesh foi destruído,

embora estivesse presente num sentido m uito débil nos ossos e sangue. Q uando esses

foram sepultados ou cobertos, a pouca vitalidade que permaneceu foi anulada.6’

Resumindo nossa conclusão, podemos dizer que o ponto de vista holístico

do Antigo Testamento da natureza humana elimina a distinção entre corpo e

alma como dois campos completamente diferentes da realidade. Ademais, remo­

ve a base para a crença na sobrevivência da alma por ocasião da morte do corpo.

Nosso próximo passo será estabelecer se o Novo Testamento apóia ou modifica a

perspectiva holística do Antigo Testamento a respeito da natureza humana. Esta

questão é abordada no capítulo seguinte.

R e f e r ê n c ia s

1RE, Hughes, Hope/or a Despairing World (Grand Rapids, 1997), 50.

2 Para uma pesquisa das várias interpretações da imagem de Deus no homem, ver H. D. McDo­

nald, The Christian View of Man (Westchester, Illinois, 1981), 33-41.

3 exemplo, C. Ryder Smith afirma que ambas as palavras hebraicas e seus equivalentes no

grego sugerem uma semelhança física entre Deus e o homem (The Bible Doctrine of Man

[Londres, 1951), 29-30). Semelhanremence, H. Gunkel apela ao evidente modo antropo­

mórfico em que Deus é descrito no Antigo Testamento (The Legend of Genesis [Chicago,

1901], 8-1(3). #

4 R. Laird-Harris, Mn?.׳ - God’s Eternal Creation: A Study of Old Testament Culture (Chicago,

־ -24 ,(1971

5 John Calvin, Institutes of the Christian Religion I, XV, 3 (Londres, 1949), Vol. 1, 162, 165.

6 E opinião expressa por Paul Jewett, que segue a Karl Barth em considerar a imagem de Deus

no homem como precisamente o de macho e fêmea. Diz ele “Gênesis 1:27b (‘macho e fêmea

os criou’) é uma exposição de 1:27a (,à imagem de Deus o criou’)” (Man: Mate and Female

[Grand Rapids, 1975], 33).

7 Webster's New Collegiate Dictionary, 1974 ed., s.v. “Soul."

3 Claude Tresmontant, A Study in Hebrew Thought (Nova Iorque, i960), 94. Este é um livro alta­

mente recomendado sobre a diferença entre o pensamento grego e hebraico.

Ο ΡΟΝΤΟ DE VISTA BÍBLICO DA NATUREZA HUMANA

9 Aubrey Johnson, The Vitality of the Individual in the Thought of Ancient Israel (Cardiff, Wales,

1964), 19.

10 Johannes Pedersen, brae/: Its Life and Culture (Londres, 1926), Vol. 1, 99.

11Ibid., 99-100.

13 Hans W alter Wolff, Anthropology o f the Old Testament (Filadélfia, 1974), 10. -

13 Dom Wulstan M ork, The Biblical Meaning of Man (Milwaukee, Wisconsin, 1967), 34.

14 Johannes Pedersen (referenda 10), 171.

b H. W heeler Robinson, The Christian Doctrine of Man (Edimburgo, 1'952), 27.

16 Dom W ulstan Mork (referência 13), 34■

17 Norman Snaith, “Justice and Immortality”, Scottish jounutl ofTheobgy 17, 3 (Setembro 1964),

312-313.

|S Basil E C. Atkinson, Life and Ivtmortality (Londres, n. d.), 1-2.

19Ibid., 2.

30 Ibidem.

21 Tory Hoff, , nephesh and the Fulfillment It Receives as psyche”, em Toward a Biblical View of

Man: Some Readings, eds. A rnold H. De GTaaffe James H. O lthuis (Toronto, 1978), 103.

22 Basil F, C. Atkinson (referência 18), 17■

25 A tabulação é de Basil K C. Atkinson (referência 18), 3.

24 Hans Walter Wolff (referência 12), 10.

23 Tory Hoff (referência 21), 98.

.ibidem ־6

37 ibidem.

28 Hans Walter Wolff (referência 12), 25.

29 Dom W ulstan M ark (referência 13), 40.

30 ibidem.

51 W. David Stacey, The Pauline View■ of Man (Londres, 1,956), 87.

32 Dom Wulstan M ork (referência 13) ,41-

33 Johannes Pedersen (referência 10), 179.

34Ibid., 180.

33 Edmund Jacob, “Nephesh,” Theological Dictionary o f the New Testament, ed. Gerhard Friedrich

(Grand Rapids, 1974), Vol. 9, 621.

36 Johannes Pedersen (referência 10), 171.

37 Robert A. Morey, Death and the Afterlife (Minneapolis, 1984), 49.

38 Hans W alter Wolff (referência 12), 20.

39 Edmund Jacob (referência 35), 619.

40Tory Hoff (referenda 21), 101.

41 Edmund Jacob (referência 35), 618.

42 Basil E C. Atkinson (referência 18), 10.

43 As regras monásticas claram ente revelam quão im portante foi mortificar a carne propiciando

ao corpo som ente o que era indispensável para a sobrevivência, a fim de cultivar o bem-estar

da alma. A regra beneditina, por exemplo, permite o uso de banhos aos doentes, mas res­

tringe-os aos sãos: “O uso de banhos será oferecido ao enfermo tão frequentem ente quanto

necessário; aos sãos, e especialmente aos jovens, muito raram ente” (Henry Bettenson, Docu­

ments of the Christian Church [Oxford, 1967 b 121).

44 D. R. G. Owen, Body and Soul (Filadélfia, 1956), 167.

45 Ibid., 169.

30 Hans Walter Wolff (referência 12), 26-31.

47 Johannes Pedersen (referência 10), 178.

Im ortalidade o u R essurreição?

46, A tabulação é de Hans Walter Wolff (referência 24), 40.

40 Walther Eichrodt, Theology of the OU Testament (Filadélfia, 1967), VoL 2, 143.

50 R. C. Dentan, “Heart,” The Interpreters Dictionary of the Bible (Nashville, 1962), Vol. 2, 549.

51 Hans Walter Wolff (referenda 24), 66.

52 A tabulação é de Hans Walter Wolff (referência 24), 40,

5? Johannes Pedersen (referência 10), 104·

54 A tabulação é de Hans Walter Wolff (referência 24), 32.

:5 Ibidem.

56 Ibtdem.

y< Dom Wulstan Mork (referência 13), 73.

48 Basil F. C. Atkinson (referência 18), 18.

w Friedrich Baunigarten, “Spirit o f God," Bible Key Words (Nova Iorque, 1961), 1.

rC Ver também Ez 21:12; Ex 6:9; Is 61:3; 65:14; Dn 7:15.

:As referências veterotestamentárias à partida ou remoção do espírito por ocasião da morte são ־11

Sí 31:5; 76:12; 104:29-30; 146:4; Jó 34:14-15; Ec 3:19-21; 8:8; 12:7.

bl As referências veterotestamentárias da partida ou remoção do espírito na morte são: Sal. 31:5;

76:12; 104:29, 30; Jó 34:14, 15; Ecl. 3:19-21; 8:8; 12:7.

65 Ralph Walter Doermann, “Sheoí in the Old Testament’ (Dissertação Ph. D. Duke University,

1961), 205.

CAPÍTULO 3

A VISÃO DA NATUREZA DO HOMEM NO

Novo T e s t a m e n t o

Em nossas Bíblias, a primeira página do Novo Testamento segue-se imediata­

mente à última página do Antigo Testamento. Isso pode sugerir a leitores desinfor-

mados que não há um intervalo de tempo entre os dois testamentos. Na realidade,

cerca de quatro séculos os separam. Durante esse período intertestamentário, o

povo judeu esteve exposto, tanto em seu lar, na Palestina, quanto na diãspora (dis­

persão), à cultura e filosofias helenísticas (gregas) de grande influência. O impacto

do helenismo sobre o judaísmo é evidente em muitas áreas, inclusive na adoção do

dualismo grego por algumas obras literárias judaicas produzidas nessa época.

A literatura judaica produzida durante o período intertestamentário é ge­

ralmente conhecida como livros apócrifos ou pseudepígrafosJ A maioria dos

cristãos não considera esses livros não-canônicos como divinamente inspirados

ou com a mesma autoridade dos livros da Bíblia. Mas isso não diminui o valor

histórico dos textos, uma vez que são considerados uma importante fonte de

informação sobre ocorrências históricas e ideológicas da época.

No que diz respeito à natureza e destino humanos, duas principais escolas de

pensamento judaico mantiveram-se leais ao ponto de vista holístico da natureza

humana do Velho Testamento e propiciam um destacado pano de fundo para a

compreensão do Novo Testamento. O judaísmo palestino via a morte como um

sono inconsciente da pessoa inteira e destacava a necessidade da ressurreição final

do corpo. A importância desse ponto de vista para o estudo do Novo

,

Testamento

pode ser ilustrado pelo livro apócrifo A p o c a lip se d e B a m q u e (conhecido como 2

Im ortalidade ou R essurreição?

Baruque), escrito por um judeu palestino na última metade do primeiro século da

era cristã. O autor ensina que os mortos “dormem na terra” e quando o Messias re­

tornar “todos os que adormeceram na esperança dele ressuscitarão novamentè’1.2

Todos os justos serão reunidos num instante e os ímpios lamentarão, pois o tempo

de seu tormento é chegado.3 Tal ponto de vista é impressionante mente semelhan­

te ao ensino neotestamentário da ressurreição do corpo, que é parte do conjunto

de idéias que pareciam “loucura” para os gregos (ICo 1:23).

A segunda escola de pensamento é o judaísmo helenístiçp, grandemente in­

fluenciado pelo dualismo grego. O judaísmo helenístico floresceu especialmente em

Alexandria, o lar de Filo, o bem conhecido filósofo judeu que tentou empreender

uma síntese das idéias hebraicas e gregas. Nos escritos dos judeus helenistas en­

contramos claras referências à sobrevivência e imortalidade da alma, A existência

desincorporada parece ser o destino eterno dos salvos. Por exemplo, o Litro dos Jubi­

leus, apócrifo {cerca de 135 a.C.) ensina que “os ossos” jazem na sepultura enquanto

os “espíritos” vivem independentemente: “E seus ossos repousarão na terra, e os

espíritos deles terão muito gozo, e eles saberão que é o Senhor que executa julga­

mento, e revela misericórdia a[...] todos quantos o amam” (23:31).4

Numa linha semelhante de pensamento.-A^dbedoria de Salomão, escrita por

um judeu helenista entre 50 e 30 a.C., declara que “as almas dos justos estão nas

mãos de Deus, e nenhum tormento jamais os tocará[.·d eles estaò em paz[-.,.] sua

esperança é plena imortalidade” (3:1, 3,'4).5 A mesma visão é encontrada emj}

Macabeus, um tratado filosófico escrito por um judeu helenista pouco antes da era

cristã. Os mortos justos ascendem imediatamente para a ventura eterna,6 enquan­

to os ímpios descem ao tormento eterno, variando em intensidade.7

Em suma, durante o período, intertestamentário, como adequadamente ex­

presso por Wheeler Robinson, wa interpretação dualística da relação do corpo e

alma (ou espírito) é encontrada na linha helenista do judaísmo (Sabedoria 9:15).

Np entanto, é alheio à linha de pensamento palestiniana, que liga o pensamento

do Antigo Testamento com muito do Novo”.*

— Ao lidarmos com o estudo da visão neotestamentária da natureza humana, não

podemos ignorar a possível influência do judaísmo helenista sobre os autores dos livros

do Novo Testamento. Afinal de contas, com a possível exceção de Mateus, todos os

livros do Novo Testamento foram escritos em grego e empregam quatro grandes pa­

lavras gregas antropológicas: pyydié-alma, ímeuma - espírito, somu-corpo e sarç-came.

Estas palavras eram comumente empregadas nos tempos do Novo Testamento com

um sentido grego dualístico. A alma e espírito denotam a parte imaterial e imortal da

natureza humana, enquanto o corpo e a carne descreviam a parte material e mortal

A questão então é: Em que extensão o sentido dualístico dessas importantes

palavras gregas é refletido nos escritos do Novo Testamento? Surpreendentemente,

como veremos neste capítulo, o sentido e uso dualístico desses termos estão ausen-

A VISÃO DA NATUREZA DO HOMEM NO N O V O ' ! ESTAMENTO׳

ces no Novo Testamento- Mesmo aquelas passagens que parecem ser dualísticas em

seu contraste entre carne e espírito revelam, em um exame mais detido, um enten­

dimento holístico da natureza humana. Carne e espírito não se configuram como

duas partes separadas e opostas da natureza humana, mas dois diferentes tipos de

estilo de vida: o centralizado no eu versus o centralizado cm Deus.

A razão para a ausência de influência dualística no Novo Testamento é que

seus autores utilizaram importantes palavras gregas da natureza humana em har­

monia com seus equivalentes originais no Antigo Testamento, onde as idéias se

originaram, e não consoante os sentidos prevalecentes na sociedade helenísta.

Senipre devemos ter em mente que “o elo entre o Antigo Testamento hebrai­

co e o Novo Testamento grego é a grande versão Septuaginta (grega) do Antigo

Testamento realizada em Alexandria no terceiro século a.Q A tradução foi feita

pvr judeus, que obvíamente entendiam o sentido das palavras hebraicas e ten­

cionavam fazer com que os termos gregos que utilizavam lhes correspondessem.

De sse modo, a ,Septuaginta segue o hebraico, e o Novo Testamento segue a Sep-^.

maginta. A versão Septuaginta não foi inspirada, mas na providência divina ela

propiciou este valioso elo lingüístíco entre o Antigo e o Novo Testamentos9.״ A

assimilação do dualismo grego na tradição cristã ocorreu após o Novo Testamento

ter sido escrito. J, Robinson oferece alguns excelentes exemplos de como Paulo

usou palavras gregas segundo o significado de termos hebraicos correspondentes,

€ não segundo o uso grego prevalecente. Por exemplo, a frase de Paulo “a mente

camal״ (Cl 2T8), não fazia sentido à mentalidade grega, porque a mente (nous)

sempre era associada à alma (psychê) e nunca à carne. Semelhantemente, as refe­

rências paulinás ao corpo espiritual (ICo 15:44, 46) e à contaminação da carne e

espínto (2Co 7:1) “teriam parecido um absurdo para os gregos10״ porque, segundo

des. o corpo não era espiritual e o espírito não podia ser contaminado. Indicações

.iesse tipo demonstram que o ponto de vista neotestamentário da natureza huma­

na reflete o pensamento hebraico (Antigo Testamento) e não o grego.

O b je t iv o s d o c a p ít u l o

Este capítulo busca entender a perspectiva da natureza humana no Novo

Testamento pelo exame de quatro destacados termos antropológicos, quais sejam,

espírito, corpo, e coração. Estes são os mesmos quatro termos que examina-

■K3S no capítulo anterior em nosso estudo da visão da natureza humana do Antigo

Testamento. Os vários significados e empregos desses termos são estudados para

dbtenninar se eles seguem os significados e utilizações dos termos hebraicos cor-

*spondentes no Antigo Testamento.

Nosso estudo revela que prevalece uma continuidade definida entre o Anti-

£> e Novo Testamentos no entendimento holístico da natureza humana. A noção

Im orta lid a d e o u Ressu r r eiç ã o ?

de imortalidade da alma, embora popularmente crida por outros ao tempo de

redação do Novo Testamento, está ausente dos׳escritos do Novo Testamento por׳

que seus autores foram fiéis aos ensinos do Antigo Testamento.

O Novo Testamento revela não só continuidade com o Antigo Testa׳

mento no entendimento da natureza e destino humanos, mas também uma

compreensão ampliada à luz da encarnação e ensinos de Cristo. Afinal de

contas, Cristo é a verdadeira cabeça da raça humana, desde que Adão “era

um tipo daquele que havia de vir” (Rm 5:14). Enquanto no Antigo Testamen­

to a natureza humana primariamente se relaciona com Adão por virtude da

criação e queda, no Novo Testamento a natureza humana se relaciona com

Cristo em virtude de sua encarnação e redenção. Cristo é o cumprimento da

revelação sobre a natureza humana, seu significado e destino. Cristo oferece

um significado mais profundo da alma, corpo e espirito humanos porque o

efeito imediato da redenção efetuada por ele foi a dádiva de seu Espírito, que

,'habita convosco e está em vós" Qo 14:17).

A NATUREZA HUMANA COMO A1MA

A palavra grega psyché-alma é empregada no Novo Testamento em har­

monia com os significados básicos do hebraico nepfies/i-alma que encontramos

no Antigo Testamento, Passaremos brevemente em revista o significado básico

de psyc/iê-alma, dando especial atenção ao significado expandido da palavra à

luz dos ensinos e ministério redentor de Cristo.

A l m a c o m o p e s s o a

A alma-frSNcfié no Novo Testamento denota a pessoa integral no mesmo

sentido de nebhesh no Antigo Testamento. Por exemplo, em sua defesa perante

0 sinédrio, Estêvão menciona que ״setenta e cinco almas [ps^cfié]” da família

de Jacó desceram ao Egito, uma

,

forma numérica encontrada no Antigo Testa­

mento fGn 46:26, 27; Êx 1:5: Dt 10:22־). No dia de Pentecostes, “três míl almas

1 frsychê r fAt 2:41) foram batizadas e “em cada alma [ps^chê] havia temor” (At

2:43). Falando da família de Noé, Pedro declara que ״oito almas [ps:ycíiê] foram

salvas pela água” (IPe 3:20). E evidente que em textos como esses a “alma׳

ps^chê” é empregada como um sinônimo para pessoa.

Dentro deste contexto, mencionamos a famosa promessa de Cristo de des­

canso para as ״almas [ps;ycfiê]” daqueles que aceitam o seu jugo (Mt 11:2^). A

expressão “descanso para as vossas almas [ps^ctó]” procede de Jeremias ôTój

onde descanso para a alma é prometido àquele que caminha de acordo com os

A VISÃO DA NATUREZA DO HOMEM N O N O V O Ti ATA MENTO

mandamentos de Deus. O descanso que Cristo concede à alma, como Edward

Schweizer assinala, “difere completamente do que encontramos no mundo gre-

go, onde a alma encontra descanso quando é libertada do corpo, pois aqui a

unidade e totalidade do homem são mantidas. Nos seus atos físicos em obedi­

ência é que o homem encontra o descanso de Deus”. 11 Cristo dá descanso (paz

e harmonia interiores) às almas daqueles que aceitam sua graciosa provisão de

salvação (“vínde a mim”) e vivem em harmonia com os princípios de vida que

ele ensinou e exemplificou (“aprendei de mim”).

A l m a c o m o v i d a

O sentido mais freqüente da palavra alma-psychê no Novo Testamento é o de

“vida”. De acordo com uma contagem, psychê é traduzida 46 vezes como “vida”. 12

Nesses casos, “vida” propicia uma tradução adequada do grego psychê pôrque é em­

pregada com referência à vida física. Para facilitar a identificação da palavra alma-

psychê encontrada no texto grego, psychê será traduzida literalmente como “alma”

em lugares onde a RSV [Revísed Standard Version, em inglês] verte como “vida”.

No auge da tempestade, Paulo dá garantias aos membros da embarcação de

que “nenhuma vida se perderá” jA t 27:22; cf. 27:10). Neste contexto, o termo

grego psychê é corretamente traduzido como “vida” porque Paulo está falando a

respeito da perda de vidas. Um anjo disse a José: “Dispõe-te, toma o menino e sua

mãe, e vai para a terra de Israel; porque já morreram os que atentavam contra a

vida [psychê, “alma”, VKJ] do menino” (Mt 2:20). Hsta é uma das muitas referên­

cias a buscar, matar e salvar a alma-psychê, expressões todas que sugerem que a

alma não é uma parte imortal da natureza humana, mas a própria vida física que

pode estar sob perigo. Segundo o Ancigo Testamento, a alma-psyehê é posta à

morte quando o corpo morre.

Jesus associou a alma com alimento e bebida. Disse ele: “Não andeis^ansiosos

pela vossa vida [“alma” - VKJ], quanto ao que haveis de comer ou beber; nem

pelo vosso corpo quanto ao que haveis de vestir. Não é a vida [“alma” - VKJ]

mais do que o alimento, e o corpo mais do que as vestes?” (Mt 6:25). Aqui a alma-

psychê associa-se a comida e bebida e o corpo (o exterior visível) com roupa. Ao

associar a alma com comida e bebida, Jesus mostra que a alma é o aspecto físico da

vida, embora ele explique que há mais a se cuidar na vida do que comida e bebida.

Os crentes podem elevar seus desejos e pensamentos às coisas celestiais e viver

para Cristo e para a eternidade. Assim, Cristo expandiu o significado de “alma”

por incluir a vida mais elevada, ou vida eterna, que veio oferecer à humanidade.

Permanece o fato, contudo, de que por associar a alma com comida e bebida, Cris­

to revela que a alma é o aspecto físico de nossa existência e não um componente

imaterial de nossa natureza.

Imortalidade ou R essurreição?

S a l v a n d o a a l m a a o pe r d ê - la

r

No Antigo Testamento, descobrimos que a alma-nephesh é empregada fre­

quentemente para denotar a incerteza da vida* constantemente defrontando a

possibilidade de ferir-se ou mesmo de destruição. Por conseguinte, os antigos is­

raelitas preocupavam-se em salvar a alma, livrar a alma, restaurar a alma à se­

gurança e suster a alma mediante provisões, especialmente alimento. Por isso,

nesse contexto, deve ter parecido algo paradoxal para os judeus ouvirem Cristo

dizer: “Quem quiser, pois, salvar a sua vida [psychê], perdê-la-á; e quem perder a

sua vida [psychê] por causa de mim e do evangelho, salva-la-á” (Mc 8:35; cf. Mt

16:25; 10:39; Lc 9:24; 17:33; Jo 12:25).

O impacto da declaração de Cristo sobre os judeus deve ter sido dramático,

porque ele teve a audácia de proclamar que suas almas só poderiam salvar-se por

perdê-las nesse propósito. A noção de salvar almas por perdê-las era desconhecida

para os judeus porque não se acha no Antigo Testamento. Cristo demonstrou o seu

ensino agindo num modo que culminou em sua própria crucifixão. Ele veio “dar a

sua vida [psychê] em resgate por muitos” (Mt 20:28). Como o Bom Pastor, Ele “dá

a vida [psydiê] pelas ovelhas" jjo 10:11). Ao ensinar que a fim de salvar a alma é

necessário que o indivíduo a renuncie e a perca, Cristo ampliou o sentido vetero-

! testamentário de nephesh-alma como vida física tomando-a inclusiva da vida etema

I ' 74 recebida por aqueles desejosos de sacrificar a vida presente (alma) por sua causa.

Encontramos confirmação para o sentido ampliado de alma na redação de

João da mesma declaração de Cristo: “Quem ama a sua vida [psychê], perde-a;

mas aquele que odeia a sua vida [psychê] neste mundo, preserva-la-á para a vida

eterna” (lo 12:25). A correlação entre “este mundo” e “vida eterna” indica que

alma-psychê é empregada para referir-se tanto à vida terrena quanto à vida eterna.

Na versão joanina da declaração de Cristo fica evidente que a alma não é imortal,

porque, como Edward Schweizer assinala,

doutro modo não devíamos ser instados a detestá-la. Psychê é a vida dada ao homem

por Deus e que mediante a atitude do homem para com Deus recebe seu caráter

como mortal ou eterno[...] Daí nunca lermos psychê aiorúos ou athamtos (alma eter­

na ou imortal), somente psychê (alma) que é dada por Deus e mantida por Ele para

zoe aionios [vida eterna].13

O significado de alma como vida etema aparece também em, Lqç^ 21:19..

onde Cristo declara: “E na vossa perseverança que ganhareis as vossas almas”. O

contexto indica que Cristo não fala da preservação da vida terrena, porque Ele

prediz que alguns de seus seguidores serão traídos e postos à morte (v. 16). Aqui

a alma-psychê é claramente entendida como vida eterna conseguida por aqueles

dispostos a fazerem um compromisso total, sacrifical com Cristo.

A VISÁO DA NATUREZA CO HOMEM NO N O V O TESTAMENTO

A promessa de que a alma-vida será salva ao se sacrificar por Cristo demonstra

que o que Cristo tinha em vista é a vida "plena e verdadeira que Ele oferece àqueles

que o aceitam como seu salvador. A vida em Cristo não difere da vida natural por­

que é experimentada por aqueles que estão livres de tentar preservá-la. E uma vida

liberta, aberta, que oferece um senso de cumprimento à vida natural. Cristo atribui

um sentido ampliado à alma que nega a noção de alma como uma entidade imate­

rial ou imortal que coexiste com o corpo.

A igreja apostólica assimilou este sentido ampliado da alma como denotando

uma vida de total comprometimento com o Salvador. Judas e Silas tornaram-se

homens que “têm exposto a vida [psyche] pelo nome de nosso Senhor Jesus Cris­

to” (At 15:26). Epafrodito arriscou “sua vida [psyche]” pela obra de Cristo (Fp

2:30). O próprio apóstolo Paulo testificou: “Em nada considero a vida [f>s)>cJrê]

preciosa para mím mesmo, contanto que complete a minha carreira e o ministé­

rio que recebi do Senhor Jesus para testemunhar o evangelho da graça de Deus”

(At 20:24). Se Paulo cria na imortalidade da almaT é improvável que a teria vistn

como sem valor e digna de ser perdida pela causa do evangelho. Estes textos mos­

tram que a igreja apostólica vivia segundo o novo sentido ampliado da alma por

viver uma vida de total comprometimento sacrifical para com Cristo. Os crentes

compreendiam que suas almas como vida física podiam

,

ser salvas somente se as

consagrassem ao serviço de Cristo.

O erro mais tolo que qualquer um pode cometer é “ganhar o mundo todo e

perder a sua alma (Mc 8:36). Essa alma*psychê é a vida que transcende a

morte, o objeto primário da redenção (Hb 10:39; 13:17; Tg 1:21; IPe 1:9« 22). Apesar

de o termo “alma” ser empregado de modo consideravelmente menos ffeqüente no

Novo Testamento do que no Antigo, essas passagens-chave indicam uma significativa

expansão em seu sentido. O termo chegou a incluir o dom da vida eterna recebido por

aqueles que estão dispostos a sacrificar sua vida presente pela causa de Cristo.

Em bem poucos casos a alma-nepfies/i é empregada no Velho Testamento

para denotar a vida que transcende a morte. Um enemplo disso é o Salmo 49:15:

“Deus remirá a minFS^alma do poder da morte, pois Ele me tomará a si”. Esse

sentido de alma como vida além da morte que chega a ser ampliado no ensino de

Jesus a respeito de perder e achar a alma. A continuidade entre a vida presente e

futura é garantida, não pela residência de uma alma imortal no homem, mas pela

fidelidade de Deus que concederá vida eterna aos crentes.

A vida física e a vida eterna não são duas realidades diferentes, porque am­

bas são concedidas por Deus, A alma abrange ambas porque a vida eterna é a vida

física vivida para Deus, Afinal de contas, a vida física é a única forma de existên­

cia de que temos conhecimento. Mas o sentido ambivalente de alma serve para

nos recordar que a vida humana não é apenas saude e riqueza. Mas uma vida em

relacionamento com Deus.

Im o r ta lid a d e o u R essu rreiçã o?

O duplo sentido bíblico de alma como vida física e eterna nega a distinção

helenista entre corpo e alma, entre a vida do corpo na terra e a vida da alma

no céu. De um ponto de vista bíblico, a vida do corpo é a vida da alma, porque

a forma como uma pessoa vive esta vida presente determina o destino da alma

como sendo vida eterna ou destruição eterna. A alma, pois, não é uma substân­

cia que sobrevive ao corpo por ocasigo da morte, mas a vida que vivemos pela

graça de Deus e que será revelada e consumada por Deus no juízo final.

A ALMA E A CARNE ( ± P € < Z : H )

Um importante texto no Novo Testamento põe a alma-ps^chê em clara

antítese com a carne'Sarx, Acha-se em_l Pedro 2:1L onde o apóstolo declara:

‘Amados, exorto-vos, como peregrinos e forasteiros que sois, a vos absterdes das

paixões carnais [sarxj que fazem guerra contra a alma [ps^c/rc]", Edward Schwi-

zer declara que este é o emprego mais helenístico de alma no Novo Testamento,

uma vez que a clara antítese entre alma-psychê e carne-sarx pode sugerir uma

composição dualística da natureza humana.

Um exame mais detido do texto, contudo, mostra que Pedro foi influenciado

nâo pelo dualismo grego, mas pelo entendimento neotestamentário de alma-nep/iesh.

No Antigo Testafhemo, descobrimos que a alma-nep/iesfi estava constantemente em

perigo e precisava ser protegida. O mesmo é verdade na admoestação de Pedro. A

diferença é que Pedro se refere a um inimigo “interno” que ataca a alma a partir de

dentro. Q inimigo são as paixões carnais que fazem guerra contra a alma levando

uma pessoa a viver somente para satisfazer os apetites físicos.

Pedro vê a alma, não como uma entidade imaterial que sobrevive ao corpo por

ocasião da morte, mas como a vida de fé santificada pela obediência à verdade reve­

lada de Deus. Ele expressa este ponto de vista na mesma epístola ao dizer: “obtendo

o fim da vossa fé, a salvação das vossas almas [ps^cfié]” (IPe 1:9), “tendo purificado

as vossas almas [ps^c/ic], pela vossa obediência à verdade” (IPe 1:22). Uma vez

que a salvação da alma (vida eterna) é o resultado de uma vida de fiel obediência à

verdade, as paixões carnais ameaçam a alma (vida eterna), pois levam uma pessoa

a viver de modo infiel e em desobediência à verdade. Desse modo, a antítese entre

came e alma nesta passagem é ética e não ontológica, ou seja, é entre uma vida de

desobediência (carne) e uma de obediência (alma). Veremos logo mais que Paulo

expressa a mesma antítese contrastando a came com o espírito.

( / n r /0D e u s t e m p o d e r d e d e s t r u ir a a l m a

Esse sentido ampliado do termo alma-psychê nos ajuda a compreender uma

bem-conhecida, porém muito mal-entendida, declaração de Cristo: “Não te­

mais os que matam o corpo e não podem matar a alma; temei antes aquele que

A VISÃO DA NATUREZA DO HOMEM NO NOVO TESTAMENTO

pode fazer perecer no inferno tanto a alma como o corpo” (Mt 10:28; cf. Lc

Os dualistas encontram neste texto apoio para o conceito de que alma é ־(12:4

uma substância imaterial que é mantida em segurança e sobrevive à morte do

corpo. Robert Morey, por exemplo, alega que

Cristo aqui [Mt 10:28] claramente diz que enquanto podemos matar ou eliminar

a vida física de um corpo, não podemos matar ou prejudicar a alma, ou seja, o eu

transcendente e imaterial, a mente ou ego. Ele emprega a dicotomia corpo/alma que

se acha por toda parte nas Escrituras.14

Essa interpretação reflete o entendimento dualístico grego da natureza hu­

mana e não o ponto de vista holístico-biblico. A referência ao poder de Deus de

destruir a alma [foyche] e o corpo no inferno nega a noção de uma alma imortal,

imaterial· Como pode a alma ser imortal se Deus a destrói com o corpo no caso

3os pecadores impenitentes? Oscar Cullmann apropriadamente observa que ״ou­

vimos na declaração de Jesus em Mateus 10:28 que a alma pode ser morta. A alma

não é imortal”.15

Na discussão precedente vimos que Cristo expandiu o sentido da aíma-psychê

para denotar não somente a vida física, mas também a vida eterna recebida por

aqueles que estão dispostos a assumir um compromisso sacrifical com Ele. Se este

texto for lido à luz do sentido ampliado dado por Cristo à alma, o significado da

declaração será: “Não temais aqueles que podem trazer vossa existência terrena

(corpo-soma) a um fim, mas não podem eliminar vossa vida eterna em Deus; mas

temais o Deus que é capaz de destruir vosso ser integral etemamente”.

A MORTE DA ALMA É MORTE ETERNA C l c M : % s )

A advertência de Cristo dificilmente ensina a imortalidade da alma. Antes,

declara que Deus pode destruir a alma bem como o corpo. Edward Fudge acentua

acertadamente que “a menos que Jesus esteja fazendo ameaças à toa, a própria

advertência implica que Deus executará tal sentença sobre aqueles que persisten­

temente se rebelam contra sua autoridade e resistem a toda abertura de misericór­

dia”.16 Fudge prossegue declarando:

A advertência de Nosso Senhor é clara, O poder do homem para matar detém-se

com o corpo e o horizonte da presente era. A morte que o homem inflige não é

final, pois Deus chamará os mortos da Terra e concederá a imortalidade aos justos.

A habilidade de Deus etn matar e destruir não conhece limites. Atinge mais profun­

damente do que o físico e vai além do presente. Deus pode matar o corpo e a alma,

tanto agora quanto no além.17

Lucas reproduz a declaração de Crísto omitindo a referência à alma. “Não

temais os que matam o corpo e, depois disso, nada mais podem fazer. Eu, porém,

Im o r t a l id a d e o u R e s s u r r e iç ã o ?

vos mostrarei a quem deveis temer: Temei aquele que depois de matar, tem poder

para lançar no inferno” (Lc 12r4. 5). Lucas omite a palavra alma-ps)!ché, refe-

rindo-se, em vez disso, à pessoa integral que Deus pode destruir no inferno. E

possível que a omissão do termo “alma-psWtê” fosse intencional para impedir um

mal-entendido na mente de leitores gentios acostumados a pensar na alma como

um componente independente e imortal que sobrevive à morte. Para tomar claro

que nada sobrevive à destruição divina de uma pessoa, Lucas evita empregar o

termo “alma-psyc/iê” que podería ser confuso para seus leitores gentios.

Achamos confirmação para esta interpretação em Lucas 9:25, onde ele no­

vamente omite o termo ps)׳chê-alma: “Que aproveita ao homem ganhar o mundo

inteiro, se vier a perder-se ou a causar dano a si mesmo

,

[eauton]V\ Presumivel­

mente, Lucas empregou aqui o pronome “ele” em lugar de dlma-psychê (também

empregado em Marcos 8:36), porque o ultimo, como Edward Schweízer sugere,

“poderia ser mal-entendido [pelos leitores gentios] como punição da alma após a׳

morte”.18 Em vez disso, *ao empregar o pronome “ele”, Lucas indica que Jesus quis

referir-se à perda da pessoa inteira.

Quando temos em mente o sentido ampliado com que Cristo usa o ter­

mo “alma”, sua declaração torna-se clara. Matar o corpo significa tirar a vida

presente de sobre a Terra. Entretanto isso não mata a alma, ou seja, a vida

eterna recebida por aqueles que aceitaram a provisão da salvação de Cristo.

Tirar a vida presente significa pôr uma pessoa a dormir, porém a destruição final

ftcontecerá apenas na segunda morte, a qual, como veremos, é comparada nas.

Escrituras com o inferno.

O sentido da declaração de Cristo em Mateus 10:28 é ilustrado pelas pala­

vras que usou em relação à fiíha de Jairo quando disse que ela não estava morta,

mas dormia (Mt 9:24). Ela estava de fato morta (“matar o corpo”), mas, uma vez

que iria despertar na ressurreição, podería com justiça ser tida por apenas ador­

mecida, O seu destino final não havia sido ainda decidido. Do mesmo modo, uma

vez que todos os mortos serão ressuscitados no dia final, ao jazerem suas almas nas

sepulturas, ou seja, a vida que vivem por ou contra Jesus Cristo, ainda estão no

aguardo de seu destino final: salvação eterna para os crentes ou destruição eterna

do corpo e alma no inferno para os ímpios. Jesus advertiu sobre isso.

A preservação da alma no ensino de Cristo nãç é um processo automático no

noder da própria alma, mas um dom c}e Deus recebido por aqueles que estão dis­

postos a sacrificarem sua alma (a vida presente) por Ele,Esse sentido expandido

de alma relaciona-se intimamente com o caráter õu personalidade de um crente.

Pessoas ou forças malignas podem matar o corpo, a vida física, mas não podem

destruir a alma, o caráter ou personalidade de um crente. Deus comprometeu-se

a preservar a individualidade, personalidade e caráter de cada crente. Por ocasião

de sua vinda, Cristo ressuscitará aqueles que morreram nele, restaurando-lhes' a

alma, isto é, seu caráter e personalidade distintos.

A VISÃO DA NATUREZA DO HOMEM NO NOVO TESTAMENTO

$ CatA ■*££.#9־ ALMA DE UM CORPO MORTO

. — À luz da discussão precedente, consideraremos agora outra declaração fre-

. A

qüentemente mal-interpre,tada feita por Paulo quanto a ressurreição de Eutico,

Durante uma reunião de despedida em Troas, onde Paulo falou extensamente,

um jovem chamado Êutico, após cair em sono profundo, morreu ao desabar do

terceiro andar. Em Atòs 20:10 lemos: “Descendo, porém, Paulo inclinou-se so­

bre ele e, abraçando ׳ o, disse: Não vos perturbeis, que a vida nele está.”

Este, evento faz paralelo com a ocasião em que Elias (IRs 17:17) e mais

tarde Eliseti (2Rs 4:32-36) deitaram-se sobre lima criança cuja alma [nep/iesh]

a ela retornou. Os dualistas interpretam esses episódios como indicadores de

que a alma é uma entidade independente que pode retornar após deixar o

corpo, Essa interpretação é desacreditada por duas destacadas considerações.

Primeiro, no caso de Êutico, Paulo disse: “sua alma [ps^chê, VKJ] está nele”,

embora seu corpo jazesse morto, Isso significa que Paulo não cria que a alma é-

uma entidade imaterial que deixa o corpo por ocasião da morte. A alma ainda

estava em Êutico, não pelo fato de ainda não haver partido, mas porque, ao

abraçar-se com o jovem, Paulo sentiu que sua respiração estava retornando e

assim ele recobrava a vida. Ele era ainda uma álma vivente.

A

Em segundo lugar, para entender o que ocorreu no caso de Eutico e da

criança ressuscitada por Elias e Eliseu, precisamos nos lembrar de que a Bíblia

vê a morte como uma criação ao reverso. Por ocasião da criação, o homem se

torna alma vivente quando o corpo, feito de pó da terra, começa a respirar

em resultado do soprar do fôlego divino de vida em seu interior. Por ocasião

da morte, uma pessoa cessa de ser alma vivente quando o corpo dá o último

suspiro e retoma ao pó. No caso de Êutico e das crianças, a respiração deles

retornou milagrosamente e assim fizeram-se novamente almas viventes.

oP a u l o e a a l m a . * ) $ \ t õ £ € S

Em comparação com o Antigo Testamento, ou mesmo com os evangelhos, o

emprego do termo alma-psyche nos escritos de Paulo é raro. Ele emprega o termo

qpenas 13 vezes19 (incjjjindo citações do Antigo Testamento), para referir-se ao

corpo físico CRní 11 ;3; Fp 2:30; lTs 2:8). uma pessoa (Rm 2:9; 13:1), e a sede da

vida emocional (Fp 1:27; Cl 3:23; Ef 6:6) . É digno de nota que Paulo nunca em­

prega ps^chê-alma para denotar a vida que sobrevive à morte. A razão poderia ser

o temor de Paulo de que o tetmo psyc/tê-alma pudesse ser entendido erradamente

pelos conversos gentios segundo o ponto de vista grego da imortalidade inata.

Para assegurar que a nova vida em Cristo seria vista inteiramente como um

dom divino, e não como uma posse inata, Paulo emprega o termo pneuma-espírito,

em lugar de psyché-alma. Mais tarde neste capítulo, examinaremos o emprego que

Im o r ta lid a d e ou R e ssu r r e iç ã o ?

Paulo faz do termo “espírito”. O apóstolo certamente reconhece uma continuida­

de entre a vida presente e a ressurreição da vida, mas uma vez que ele a vê como

um dom de Deus e não como algo encontrado na natureza humana, emprega, em

vez disso, pneuma*espírito.20

Na sua famosa passagem sobre a ressurreição em 1 Coríntios 15, Paulo de­

monstra que emprega alma-ps^yefe de acordo com o sentido veterotestamentário

de vida física. Ele explica que o primeiro Adão tomou-se “alma vivente” e o úl­

timo Adão (Cristo) “espírito [pneuma] vivificante”. Ele aplica a mesma distin­

ção à diferença entre o corpo presente e o corpo da ressurreição. Ele escreve:

“Semeía-se corpo natural [ps^cfiiícon, “físico" - VKJ] ressuscita corpo espiritual

[pneumatikon]". O presente corpo é ps^chífeon, literalmente “almoso” derivado de

ps^che-alma, denotando um organismo físico sujeito à lei do pecado e da morte. O

futuro corpo ressurretoépnewmatifcon, literalmente “espiritual”, derivado de pneu-

ma-espírito, com o sentido de um organismo controlado pelo Espírito de Deus.

O corpo ressurreto é chamado “espiritual”, não por ser não-fisíco, mas por ser

governado pelo Espírito Santo, em lugar de impulsos carnais. Isso se toma evidente

quando notamos que Paulo aplica a mesma distinção entre o natural-psycMcos e o es-

pírirua 1 -'pneumatikos para com a vida presente em 1 Coríntios 2:14, 15. Aqui, Paulo

distingue entre o homtm-psychikos natural, que não é guiado pelo Espírito de Deus, e o

homem espiritual \pneurmtikos], que é guiado pelo Espírito de Deus.

N enhuma imortalidade natural ( t co / 5 : 5 3 ' )

E evidente que para Paulo a continuidade entre o corpo atual e o futuro deve

ser encontrado não no sentido ampliado de alma que encontramos nos evange­

lhos, mas no papel do Espírito de Deus, que nos renova em novidade de vida tanto

agora quanto por ocasião da ressurreição. Ao dar enfoque ao papel do Espírito,

Paulo nega a imortalidade da alma. Para ele é muito importante esclarecer que a

nova vida do crente, tanto no presente quanto no futuro, é inteiramente um dom

do Espírito de Deus. Nada há de inerentemente imortal na natureza humana.

A expressão “imortalidade da alma” não ocorre nas Escrituras. A palavra

grega comumente traduzida como “]mortalidade” em nossas versões em inglês

na Bíblia é athanasia. Tal termo ocorre somente duas vezes no Novo Testamen­

to, a primeira vez em ligação com Deus, “o único que possui a imortalidade”

(ITm ,6:161. Obviamente, imortalidade aqui significa mais do que existência

infindável. Significa que Deus é a fonte de vida (]o 5:26) e todos os outros seres

recebem vida eterna dele.

A segunda vez, a palavra “imortalidade*athanasia” ocorre em.l Coríntios 15:53

e 54 em relação com a natureza moftal, que se reveste da imortalidade

,

por ocasião

da ressurreição: 1

A VISÃO DA NATUREZA DO HOMEM NO NOVO I ESTAMENTO

Porque é necessário que este corpo corruptível se revista da incorruptibilidade, e que o ‘

corpo mortal se revista da imortalidade [athuriasúz]. E quando este corpo corruptível se

revestir de incorruptibilidade, e o que é mortal se revestir de imortalidade [athanasiã],

então se cumprirá a palavra que está escrita: Tragada foi a morte pela vitória,

Paulo não está falando da imortalidade natural da alma, mas da transfor-

mação de mortalidade para imortalidade que os crentes experimentarão quando

Cristo retornar. As implicações desta passagem são daras: a natureza humana não

é concedida com qualquer forma de imortalidade natural, porque é perecível e

mortal Á imortalidade não é uma possessão presente. Mas um dom a ser conee-

dido aos crentes por ocasião da vinda de Cristo.

Na filosofia de Platão, a alma é considerada indestrutível poraue partilha

de uma substância eterna incriada que o corpo não possui É lamentável que o

dualismo platônico cegou a mente até mesmo de grandes reformadores como C al

vino, que chegou ao ponto de dizer que ״dificilmente alguém, exceto Platão, cor׳

retamente afirmou a substância imortal [da alma]".21 Ele prossegue;

Na verdade, a partir das Escrituras temos já ensinado que a alma é uma substância in­

corpórea; agora precisamos acrescentar que, embora não seja espacialmente limitada,

mas estabelecida no corpo, ali reside como numa casa; não somente animando todas

as partes e tomando seus órgãos adequados e úteis para suas ações, mas também pode

ocupar o primeiro lugar em governar a vida do homem, não somente com respeito aos

deveres de sua vida terrena, mas ao mesmo tempo despertá-lo a honrar a Deus.22

E difícil crer que um estudante tão dedicado da Bíblia como Calvino poderia

interpretar tão grosseiramente os ensinos bíblicos concernentes à natureza huma­

na. Isso serve para nos lembrar quão facilmente a mente humana pode tomar-se

tão condicionada pelo erro aue deixa de discernir a verdade bíblica. Na Bíblia, a

alma não é uma "substância incorpórea e imortal”, mas vida física e regenerada,

criada e sustida por Deus e dele dependente para sua existência.

Não há qualidade inerente na natureza humana que possa tornar uma pes­

soa indestrutível A esperança cristã é baseada, não na imortalidade da alma,

mas na ressurreição do corpo. Se desejarmos empregar a palavra ״imortalidade”

com referência à natureza humana, falemos não da imortalidade da alma, mas da

imortalidade do corpo (a pessoa integral) por meio da ressurreição. Apenas a res­

surreição pode conceder o dom da imortalidade ao corpo, ou seja, sobre a pessoa

do crente.

A lma como aspecto mortal da natureza humana ( fc/h 5 7 ) â )

A definição paulina do corpo presente como ps^chácon-físico (literalmente “a l

moso”), ou seja, corruptível e mortal, claramente mostra que ele identifica a alma

JM UKlALlJJAUt OU ÍCtSSURREIÇAO׳

com o aspecto tísico e mortal de nossa existência humana. Isto está em harmonia

com a visão veterotestamentária da alma-nef>hesh como o aspecto físico e mortal da

vida. E evidente que a noção de imortalidade da alma acha-se totalmente ausente

dos ensinos de Paulo e da Bíblia como um todo. Mas essa definição de alma oferece

um problema. Como se pode conciliar a noção de que os seres humanos são mortais

por natureza com a declaração de Paulo em Romanos 5:12 de que a morte veio a

este mundo “pelo pecado”, e não por causa da natureza física mortal humana?

A solução para essa aparente contradição se encontra no reconhecimento de

que, como declarado por Wheeler Robinson,

Paulo concebia o homem como sendo mortal por sua natureza original, mas com a

possibilidade de imortalidade. Contudo, isto ele perdeu quando foi expulso do Éden,

e, portanto, da árvore da vida, que nutriria nele a imortalidade. Assim a morte veio

mediante o pecado.23

Paulo não explica como o homem, mediante a desobediência, perdeu a possi­

bilidade de tornar-se imortal. Sua preocupação é mostrar como Cristo nos redimiu

da trágica conseqüência do pecado, a morte'. Os ensinos de Paulo, entretanto,

dão apoio ao que ele pode ter visto como duas verdades complementares: a real

mortalidade da natureza humana, por um lado, e a justiça dessa mortalidade como

penalidade pela desobediência humana, por outro.

A lma E espírito (׳ r T $ 5 : 2 3 ' k : ( *״ )

A distinção entre alma e espírito aparece em duas outras importantes pas­

sagens neotestamentárias que precisamos considerar brevemente. A primeira é 1

,Tessalonicenses 5:23 e a segunda é breus 4:12. Escrevendo aos tessalonícenses,

Paulo declara: “O mesmo Deus de paz vos santifique em tudo; e o vosso espírito,

alma e corpo, sejam conservados íntegros e irrepreensíveis na vipda de nosso Se­

nhor Jesus Cristo” (lTs 5:23).

Alguns apelam a este texto para defender o ponto de vista de que o homem

foi criado como um ser tripartite na criação, consistindo de um corpo, uma alma e

um espírito, cada qual como uma entidade separada. Os católicos reduzem os três

em dois, fundindo o espírito com a alma. O novo Catechism of the Cãthohc Church

[Catecismo da Igreja Católica] refere-se a este texto para explicar que “‘espírito1

significa que desde a criação o homem é disposto a um fim sobrenatural e que sua

alma pode graciosamente ser erguida acima de tudo quanto merece para comunhão

com Çeus”.24 Para os católicos, o espírito e a alma são essencialmente um, porque

é o espírito que cria cada alma como uma entidade espiritual e imortal. Como o

catecismo expõe: “A igreja ensina que toda alma espiritual é criada imediatamente

por Deus - não é ,produzida1 pelos pais - e também é imortal: não perece quando se

separa do corpo por ocasião da morte”.25

A VISÃO DA NATUREZA DO HOMEM NO NOVO TESTAMENTO

Esse ensino católico tradicional ignora o ponto de vista holístíco fundamental

Ja natureza humana. De acordo com a Bíblia, a alma não é uma substância imortal

que se separa do corpo por ocasião morte, mas a vida física e mortal que pode tor­

nar-se imortal para aqueles que aceitam o dom de Deus da vida eterna. Tomar o Es­

pírito subserviente à suposta natureza “espiritual” e imortal da alma significa ignorar

que uma função vital do Espírito de Deus é conceder vida a nossos corpos mortais:

habita em vós o Espírito daquele que ressuscitou a Jesus dentre os mortos, esse

mesmo que ressuscitou a Cristo Jesus dentre os mortos vivificará também os vossos

corpos mortais, por meio de seu Espírito que em vós habita” (Rm 8:11).

Devemos observar, primeiramente, que 1 Tessalonicenses 5:23 não e uma de­

claração doutrinal, mas uma oração. Paulo ora para que os tessalonicenses possam

ser plenamente santificados e preservados irrepreensíveis até a vinda de Cristo. É

evidente que quando o apóstolo ora para que o espírito, alma e corpo dos tessalo­

nicenses sejam preservados irrepreensíveis ele não está tentando dividir a natureza

humana em três partes mais do que Jesus quis dividir a natureza humana em quatro

parres quando declarou: “Amarás, pois, o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de

Gxia a tua alma, de todo o teu entendimento e de toda a tua forca” (Mc 12:30).

*Espírito, alma, e corpo״ X *TS

A chave para entender a referência de Paulo a “espírito, alma, e corpo” em

!Tessalonicenses 5:23 é o fato de que o apóstolo se dirigi a cristãos fiéis que, en­

quanto ainda estão na carne (corpo), possuem duas naturezas: a natureza adâmica

eriginal recebida por ocasião do nascimento (alma) e a nova natureza espiritual

criada dentro deles pelo poder capacitador do Espírito. A natureza adâmica, como

,timos anteriormente, é chamada de “alma-ps^c/ié” e denota os vários aspectos da

vida tísica associados com a alma na Bíblia. A natureza espiritual é chamada “es­

pírito” porque é o Espírito de Deus que renova e transforma a natureza humana.

O corpo é, logicamente, a parte exterior, e, por isso, visível da pessoa.

A oração de Paulo pelos tessalonicenses para manterem sua

,

entre a perspectiva holística bíblica da natureza humana e sua

perspectiva realística da vida e destino humanos. Isso significa que o que cremos a

respeito da constituição de nossa natureza humana determina o que cremos sobre

nossa vida presente e destino futuro.

Os cristãos que se apegam a um ponto de vista dualístico da natureza huma-

na, que consiste de um corpo mortal e uma alma imortal que sobrevive à morte

do corpo, também acatam um tipo dualístico de vida e destino humanos. Definem

dualisticamente a vida presente, a morte, o estado dos mortos, a ressurreição, a

esperança cristã, a punição final e o mundo por vir.

O dualismo vem fomentando uma visão negativa do corpo em contraste

com o papel positivo da alma. “Salvar almas” é mais importante do que preservar

corpos. A vita contemplativa é superior à vita activa. A redenção é uma experiência

interior da alma, antes que uma transformação total da pessoa integral.

O dualismo define a morte como .separação de alma e corpo; o estado dos

mortos como de existência consciente de almas desincorporadas, seja na bem-

aventurança do paraíso ou no tormento do inferno; a ressurreição como a reli-

gação de um corpo material glorificado com uma alma espiritual; a esperança

cristã como a ascensão da alma para a bem-aventurança do paraíso; a punição

final como o tormento eterno do corpo e da alma no fogo do inferno, e o paraíso

como um retiro espiritual, celestial, onde santos espirituais glorificados passam a

eternidade em infinita contemplação e meditação.

Em contraste, os cristãos que aceitam a ponto de vista holístico bíblico da na­

tureza humana, que consiste de uma unidade indivisível de corpo, alma e espírito,

também imaginam um tipo holístico de vida e destino humanos. Definem holistica-

mente a morte como a cessação da vida para a pessoa inteira-, o estado dos mortos

como o descanso da pessoa integral na sepultura até a ressurreição; a esperança

cristã fundamentada na expectativa do retorno de Cristo para ressuscitar a pessoa

inteira‘, ã punição final como o aniquilamento da pessoa completa no fogo do inferno;

o paraíso como este planeta inteiro restaurado à sua perfeição original·, e habitado

por pessoas rèais que se empenharão'em atividades reais. A posição holística bíblica

da natureza humana determina a visão realística desta vida é do mundo por vit'

M é t o d o e .e s t il o ׳; ■ ׳ .. .

. Este livro é escrito a partir de uma׳perspectiva bíblica. A Bíblia é aceita como

normativa para definir crenças e praticas cristãs. Em vista de que a$ palavras da

Bíblia contêm uma mensagem divina escrita por autores humanos que viveram,

em situações históricas específicas, todo esforço deve ser feito para compreender

seu significado em seu contexto histórico. Minhã convicção ■é a de que um: enten­

dimento tanto do contexto histórico quanto literário de textos bíblicos relevantes

é indispensável para estabelecer tanto o seu sentido original quanto a sua relevân­

cia presente, Esta convicção se reflete na metodologia qué segui ao examihar esses

textos bíblicos que se relacionam còm a natureza e destino hümànós.

No que diz respeito ao estilo do livro, tentei escrever numa'linguagem sim­

ples e não-técnica,.Em alguns casos onde.há o emprego de uma palavra técnica,

umi definição è feita entre parênteses. Para facilitar a léitufa, cada capítulo é

dividido em pártes. principais de dèstaque, e subdivididos èm subtítulos apro­

priados, Um breve sumário é dado ao final de cada capítulo. Salvo indicação di-

ferenre, todos os textos bíblicos são extraídos da edição Almeida Revista e Atu­

alizada no Brasil [NiT.: desta tradução ao português!,■ Algumas pàlávras-chave

de um texto bíblico aparecem èm itálico para ênfase sem indicação especial, pois

o leitor deve estar ciente de que em Bíblias comuns não há palavras em itálico?

pREFA CIA D O R " ; ... . ’ · .

Entre os muitos: autores que li ao preparar este livro, o professor Clark H,

Pinnock destaca-se como.o,.que fez a maior contribuição para o desenvolvimento

de meus pensamentos. Pinnock é um erudito evangélico altamente.respeirado.

autot de numerosos livros e ex-presidente da Sociedade Teológica Evangélica. Seu

trabalho é louvável não.só por desafiar com incontestável argúmèntação bíblica o

ponto de vista dualístico tradicional da natureza humana e o tormento consciente

infindável do inferno,, mas também por dispor-se a defrontar Corajosamente o as­

sédio daqueles evangélicos que discordam de sua posição . Há eruditos ·evangélicos

que compartilham das posições de Pinnock. mas preferem mariter suas convicções

em privado para evitar reações negativas desagradáveis. Pinnock mostrou que não

teme o desafio de enfrentar o que considera ensinos bíblicos infundados.

Im o r t a l id a d e o u R e s s u r r e iç ã o ?

­Em vista dâ grande admiração que ■tenho pelo professor Clark.Pinnock, en ׳

viei-lhe um exemplar deste manuscrito em 24 de setembro de 199,7, na esperança

de que ele pudesse encontrar algum tempo para iê-lo־ e sentir-se Inclinado a escre­

ver um prefácio até 30 de outubro do mesmo ano. Francamente, ■ não conservava

muita esperança de que elè atenderá áo meu pedido. Que surpresa agradável, foi

receber em 2 de outubro de 1997 um fax contendo seu gracioso prefácio. Sua

disposição em tomar tempo em sua ocupada agenda para oferecer-me este serviço

em prazo tão curto dã-me razão para ser-lhe eternamente grato.

R e c o n h e c im e n t o s '■ .

É muito difícil reconhecer o meu débito com tantas pessoas que contribu­

íram para a realização deste livro. Indiretàmente, sou devedor aos eruditos que

escreveram artigos, folhetos e livros sobre diferentes aspectos da natureza e des­

tino humanos. Seus escritos estimularam meu pensamento e ampliaram a minha

abordagem do assunto.

. Dire tamen te, desejo. expressar minha gratidão profunda a cerca de vinte eru­

ditos e dirigentes eclesiásticos que tomaram tempo em sua ocupada agenda pára

ler este longo manuscrito, oferecendo-me valiosos comentários. Palavras são ina­

dequadas pata expressar minha gratidão pelo valioso serviço prestado.

Um agradecimento especial é para Joyce Jones, da Universidade Andrews,

Jarod J. WilLiamson, da Universidade, do Sul da Califórnia, e Edwin de Kpck, ori­

ginalmente da África do Sul e atualmente lecionando inglês no Texas. Cada um

deLes ofereceu significativa contribuição para corrigir e melhorar o estilo do ma­

nuscrito. Eles trabalharam muitas horas reformulando sentenças para que o texto

se inclinasse mais para o inglês e menos para: o italiano.

E, por hm, mas não sem destaque, desejo expressar especial gratidão a minha

esposa que tem sido minha constante fonte de encorajamento e inspiração durante

os últimos trinta e seis anos de nossa vida matrimonial. Ela viu-me pouco enquanto

eu pesquisava e redigia este livro. Sem o.seu amor, paciência e incentivo, séria muito

difícil completar este projeto num período de tempo relativamente curto.

E x p e c t a t iv a d o a u t o r . ..

Escrevi estas páginas com o grande anseio de ajudar os cristãos de todas as con­

fissões á recuperarem a perspectiva holística da natureza humana e sua visão realística

da vida e destino humanos. Numa época em que a maioria dos cristãos ainda se apega

ao entendimento tradicional dualtstico da natureza humana, uma crença quê tem

causado sério dano. à vida e pensamento cristãos, é imperativo recuperar o ponto de

vista holístico da natureza humana׳ e sua visão realística do mundo por vir.

In t r o d u ç ã o

Im o r t a l id a d e o u R e s s u r r e iç ã o ?

O holismo bíblico desafia-nos a ver positivamente tanto os aspectos físicos

quanto espirituais de nossa vida porquê nosso corpo e alma são uma unidade

indissolúvel, criados e redimidos por Deus. A forma corno tratamos nosso corpo

reflete a condição espiritual de nossa alma, porque corpo é o “templo do Espírito

Santo” (ICo 6:18). O holismo bíblico nos ensina a preocupar-nos com a pessoa

integral, buscando atender tanto as necessidades

,

“alma-ps^chê” irre­

preensível e íntegra para a vinda de Cristo significa que eles não deviam viver somente

gara a viiJa_fcicaiMt 6:25: At 20:24),,que é ameaçada pela morte, mas também para

îia superior e etema. que transrpnrlp a morre. a oração de Paulo

para que os tessalonicenses mantenham seus corpos saudáveis e irrepreensíveis signi׳

ca que não deviam dar satisfação “à concupiscência da carne” m ־ . 5:16) ou produzir

*as obras da came” tais como fornicação, impureza e laseíviajG l 5:19).

Finalmente, a oração de Paulo para que eles mantenham seu espírito íntegro e

*repreensível significa que seriam conduzidos pelo Espírito (G1 5:18) e produziriam

V m ito do Espírito” como amor, alegria, paz, longanimidade, benignidade, fidelida-

db(G15:22) . Assim, a oração de Paulo para que os tessalonicenses conservem o cor-

Im o r t a l id a d e o u R e ssu r r e iç ã o ?

po, alma e espírito íntegros e irrepreensíveis não íntenciona alistar os componentes

estruturais da natureza humana, mas realçar o estilo de vida integral daqueles que _

aguardam a vinda de Cristo. Ajdistinção entre os três é ética, e não ontológica.

O segundo texto em que o mesmo contraste aparece entre alma e espírito se**

acha em Hebreus 4:12: “Porque a palavra de Deus é viva e eficaz, e mais cortante

do que qualquer espada de dois gumes, e penetra até ao ponto de dividir alma

[psychê] e espírito [pneuma], juntas e medulas, e apta para discernir os pensamen­

tos e propósitos do coração”. A questão aqui é se a Palavra de Deus separa a alma

e espírito ou se penetra ambos. Edward Schweizer acertadamente observa que

“uma vez que é difícil imaginar a divisão de juntas e medulas, o texto está prova­

velmente dizendo que a Palavra penetrou o pneuma [espírito] e a psyche [alma]

como o fez com juntas e medulas”.26

Tendo em mente que a alma e o espírito denotam, respectivamente, os

aspectos físicos e espirituais da vida humana, o texto declara que a Palavra de

Deus penetra e escrutiniza toda a existência humana, mesmo os mais íntimos

recessos de nosso ser. O estudo das Escrituras nos revela se nossos deseios, aspi­

rações, emoções e pensamentos são inspirados pelo Espírito de Deus ou por con­

siderações carnais egoístas. O texto simplesmente diz que a Palavra de Deus pe­

netra-nos o íntimo de modo a trazer à luz os motivos secretos de nossas ações.

De certo modo esta passagem corre paralelamente ao que Paulo declara e m j

(^oríntios 4:5: “O Senhor... não somente trará à plena luz as coisas ocultas das tre­

vas, mas também manifestará os desígnios dos corações”. Portanto, ninguém tem

razão para interpretar Hebreus 4:12 como ensinando uma distinção estrutural na

natureza humana entre a alma e o espírito.

As passagens acima que distinguem entre alma e espírito nada têm a dizer

com respeito à imortalidade da alma. Elas não sugerem que um membro do par

poderia sobreviver separado do outro por ocasião da morte, ou que se refiram a

substâncias diferentes. Pelo contrário, o papel do Esníríto de Deus como o agente

jie renovação moral nesta vida presente e da ressurreição nara a vid^ etema ao.

final nega a noção de imortalidade da alma, pois a unica imortalidade é a □ue nos

é concedida pelo Espírito de Deus ao final.

A ALMA COMO LUGAR DE SENTIMENTO E RACIOCÍNIO

A discussão fjrecedente demonstrou que o termo “alma-£s}chê” é geral­

mente empregado no Novo Testamento para denotar a vida física que pode

tornar-se vida eterna quando vivida pela fé por causa de Cristo. Poucos exem­

plos existem em que o termo dlmfrpsychê é usado como o centro do senti­

mento e a fonte dos pensamentos e ações. Os cristãos de Antioquia estavam

perturbados com falsas instruções procedentes de pessoas que estavam “trans-

A VISÃO DA NATUREZA DO HOMEM NO. NOVO TESTAMENTO

tornando as vossas almas” ,(At 15:24־)» Aqui a “alma-ps^chê” refere ׳׳se à mente

dos crentes que estavam confusos por instruções desorientadoras.

Um uso semelhante do termo se acha ern João 10:24, onde os judeus

perguntam a Jesus: “Até quando nos deixarás a mente [“alma-f>s;ychê” - VKJ]

em suspenso? Se tu és o Cristo, dize ·׳o francamente.” Aqui a “á lm aj^c íiê”

é a mente com que decisões são tomadas em favor ou contra Cristo. A alma

como mente pode ser influenciada para o bem, como também para o mal.

Portanto, lemos que Paulo e Barnabé estavam em Antioquia “fortalecendo

as almas״psychê dos discípulos, exortando-os a permanecer firmes na fé” (At

14:22). Neste caso, as almas são as pessoas que eram influenciadas e movidas

em pensamento e sentimento.

Em Lucas encontramos um exemplo interessante em que “alma” refere-

se tanto, a atividades físicas quanto psíquicas. O homem rico cuja terra ha­

via produzido em abundância, assim se expressou: “Então direi à minha alma

[psychê]: Tens em depósito muitos bens para muitos anos: descansa, come e

bebe, e regala-te” (12:19). Embora aqui a ênfase seja sobre o aspecto físico

da vida, tal como o comer, beber e alegrar-se, o fato de que a alma expressa

satisfação sugere uma função física. No verso seguinte, Deus pronuncia juíz

sobre tal alma satisfeita: “Mas Deus lhe disse: Louco, esta noite te pedirão a

tua alma” .(Lc 1 2 :2 0 ) . O texto sugere que a vida ou morte da alma será, por

fim, o dom ou a punição da parte de Deus.

Todos os evangelhos Sinóticos relatam a famosa declaração de Cristo

onde a alma é empregada como um perfeito paralelo do coração: “Amarás,

pois, o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma, de todo o

teu entendimento e de toda a tua força” (Mc 12:30; cf. Mt 22:37; Lc 10:37). ,

Nessa declaração, citada de Deuteronômio 6:5, cada uma das palavras cora-,.^

ção, alma, mente e força é empregada para expressar o amorável comprometi-.

mento emocional e racional para com Deus. 1 ,

■·.■■.·· . ] (y . . · ־ · *.■ "· :·’ · ’■ ... .

'·v, · . . . · . · ■ . 4 ״.:· ·' . ' ................................’ ....................................·

C o n c l u s ã o J ׳ .; ׳■ ; ■;■ ·

Nossa pesquisa do emprego neotestamentário do termo “alma-f>s;ychê” indica

que não há suporte para a noção da alma como uma entidade imaterial e imortal

que sobrevive à morte do corpo. Nada há na palavra psychê-alma que mesmo re­

motamente deixe implícita uma entidade consciente capaz de sobreviver à morte

do corpo. Não só deixa o Novo Testamento de endossar a noção de imortalidade

da alma, como também claramente mostra que a olm^psyche denotá a vida física,

emocional e espiritual. A alma é a pessoa como um ser vivo, com sua personali­

dade, apetites, emoções e habilidades racionais♦ A alma descreve a pessoa integral

como viva e, assim, inseparável do corpo.

Im ortalidade o u R essurreição?

Descobrimos que apesar de Cristo ter expandido o sentido de alma-J)s;yc/iê

para incluir o dom da vida eterna recebida por aqueles que estão dispostos a sacrí'

ficar sua vida terrena por Ele, nunca sugeriu que a alma é uma entidade imaterial

e imortal Pelo contrário, Jesus ensinou que Deus pode destruir a alma, bem como

o corpo (Mt 10:28) dos pecadores impenitentes.

Paulo jamais emprega o termo “alma-ps^ché” para denotar a vida que so­

brevive à morte. Em vez disso, ele identifica a alma com nosso organismo físico

(psjyc/iikon) que está sujeito à lei do pecado e da morte (ICo 15:44) ■ Para assegurar

que seus conversos gentios entendam que nada é inerentemente imortal na na-

tureza humana, Paulo emprega o termo “espírito-pneuma” rara descrever a nova

vida em Cristo que o crente recebg.intg.ÍTamente como um dom do Espírito de

Deus tanto agora quanto na ressurreição.

A NATUREZA HUMANA COMO ESPÍRITO

O estudo do pomo de vista neotestamentárío sobre a alma-ps^c/ié humana,

visto acima revelou como Cristo expandiu o sentido presente no Antigo Testamen­

to de nephesh como vida física, para incluir também o dom da vida eterna. O que é

verdadeiro para a alma humana o é também em muitas maneiras para o espírito hu­

mano. A vinda de Cristo contribuiu para revelar o sentido, e função mais amplos do

espírito■-ruach

,

na redenção do homem, segundo o Antigo Testamento. O significado

de espírito -pneuma como princípio de vida é ampliado para incluir o princípio de

nova vida de regeneração moral tornada possível mediante a redenção em Cristo.

O espírito-pneuraq é emirande medida sinônimo de pyyche, sendo ambas as

palavras freqü ente mente usadas intercambiavelmente no Novo e Antigo Testamen­

tos. Entretanto, parece haver uma diferença entre ambas. “Espírito” é com freqüên-

cía empregada para Deus, enquanto “alma” nunca é. usada assim. A urilimçãn das

duas palavras no geral sugere que “espírito” representa, sobretudo, a orientação de

uma pessoa no que respeita a Deus, enquanto a “alma■1 constitui a orientação de

uma pessoa para corp ns spik liantes, Definindo de modo diverso, a alma geral-

mente descreve o aspecto físico da existência humana, enquanto o espírito denota o

aspecto espiritual da existência humana (o eu interior) que traduz a relação de uma

pessoa com o mundo da eternidade. Para apreciar o sentido e função neotestamen-

tários do espírito-pneurna na natureza humana, primeiro é importante compreender

o papel do Espírito na vida e ministério de Cristo.

Cristo, o homem do ■Espírito -

O Novo Testamento em algum sentido real identifica Cristo com o Espírito na

obra da salvação. Corho o segundo Adão, Cristo tornou-se um “espírito vivificante”

A VISÃO DA NATUREZA DO HOMEM NO NOVO TESTAMENTO

(lCo 14:45). Portanto, o espírito de Deus toma-se o Espirito de Cristo: “enviou

Deus ao nosso coração o Espírito de seu Filho, que clama: Aba, Pai” (G1 4:6)♦ A

habilitação do “Espírito de Deus” nos crentes é vista intercambia ve Imente com o

“Espírito de Cristo” em Romanos 8:9, 10. O Espírito é tão identificado com a vida e

ministério de Cristo que Paulo pode declarar: uO Senhor é Espírito2) ״Co 3:17) , .

O Espírito que habita em Cristo também habita na pessoa que está “em Cris­

to״ (Rm 8:2) . “O próprio Espírito testifica com o nosso espírito que somos filhos

de Deus״ (Rm 8:16), O efeito imediato da redenção é a concessão do Espírito

que habita convosco e está em vós” {loão 14:17). O Espírito que habita num

crente não é uma alma imortal destacável, mas um poder divino que regenera a

vida presente, tornando a pessoa uma nova criatura (Rm 7:6; G1 6:8).

Cristo é o Homem do Espírito por excelência. Ele foi concebido pelo Espírito

Santo {Mt 1: 18T 20. Lc 1:35)« Em seu batismo, o espírito Santo desceu sobre Ele

na forma de uma pomba (Mc 1:10; At 10:38). Logo depois, Cristo “foi guiado peio

mesmo Espírito, no deserto” (Lc 4: T 2). No Espírito, Ele confrontou o diabo no

deserto (Mt 4:1). Mais tarde “Jesus, no poder do Espírito, regressou para a Gali-

léia״ (Lc 4:14). Em seu discurso inaugural, apresentado na sinagoga de Nazaré,

Cristo aplicou a si a predição de Isaías da unção do Messias pelo Espírito Santo:

“O Espírito do Senhor está sobre mim, porque me ungiu para evangelizar aos

pobres... Hoje se cumpriu a Escritura que acabais de ouvir״ (Lc 4: 18, 21). Capa­

citado pelo Espírito Santo, Cristo “andou por toda parte, fazendo o bem e curando

a todos os oprimidos do diabo״ (At 10:38).

O Espírito de Deus e o espírito humano

Como o Espírito de Deus, mediado por Cristo, se relaciona com o espírito huma­

no.7 Qual é a relação entre o espírito como princípio animador de vida, presente em

toda pessoa vivente, e o Espírito como princípio regenerador da vida moral ativa na

vida dos crentes7 A resposta a estas indagações se encontra no reconhecimento de que

tanto o aspecto físico quanto o moral-espiritual da vida precisam do Espírito para sua

{existência. Pelo fato de o homem ser um ser vivente animado pelo sopro do Espírito <3e

Deus que ele é capaz de receber o Espírito Santo.

No Antigo Testamento encontramos numerosos textos segundo os quais o

espíritornach é o fôlego de Deus que concede e sustém a vida humana. A mesma

função do espírito-pneuma é expressa no Novo Testamento. Por exemplo, Tiago

diz: “Porque assim como o corpo sem espírito é morto, assim também a fé sem

obras é morta״ (Tg 2:26). Semelhantemente, Apocalipse 11:11 fala do espírito-

pneuma de vida que entrou nos corpos mortos e eles reviveram e se ergueram.

Assim, todo ser humano tem o espírito transmissor de vida da patte de Deus em

si. Quando Jesus ressuscitou a filha de Jairo, “voltou-lhe o espírito, ela imediata-

Im o r t a l id a d e o u R e ss u r r e iç ã o ?

mente se levantou״ (Lc 8:55)»_lá fizemos notar que o espírito que retornou era o

fôlego de vida de Deus que fez a garota uma pessoa vivente outra vez.

O espírito como princípio da vida física finalmente chegou a significar a

fonte da vida psíquica, racional Desse modo, o termo “espírito” é empregado para

representar a sede do pensamento, sentimento e raciocínio, disposição interior ou

caráter do crente. Isso dá conta de muitos empregos do termo “espírito” tanto no

Antigo quanto no Novo Testamento.

O espírito do homem é agitado (Ez 2:2), ou perturbado (Gn 41:8); regozijasse (Lc

1:47), ou é quebrantado (Ex 6:9); prontifica ׳׳se (Mt 26:41), ou é endurecido (Dt

2:30). Um homem pode ser paciente em espírito (Ec 7:8), altivo de espírito ou pobre

de espírito (Mt 5:3). A necessidade de governar o espírito é declarada (Pv 25:28).

E o espírito do homem que busca a Deus (Is 26:9), e é ao espírito do homem que o

Espírito de Deus, habitando no íntimo, dá testemunho (Rm 8:ló).27

fs A ATIVIDADE DO ESPÍRITO NA HUMANIDADE

Sendo que o espírito^newrruz e o v e rd ad e iro ^ iy ite rio ^ ^ ^ jg ^ H ^ g ^ , é

com o espírito que um crente serve a Deus (fim 1:9). Uma pessoa com o espírito

é capaz de desfrutar comunhão com Deus (ICo 6:17). A oração e a profecia são

exercícios do espírito humano (ICo 14:32). A graça de Deus é concedida sobre o

crente na esfera do espírito (G\ 6:18). A renovação é experimentada no espírito

(Ef 4:23). Mediante o Espírito, Deus testemunha ao espírito dos crentes de que

são filhos de Deus (Rm 8:16).

Tanto os aspectos físico e psíquico da vída precisam do espírito para sua exis­

tência, e assim o termo razoavelmente pode ser aplicado tanto ao princípio geral

da vida física quanto ao princípio regenerador da vida moral A nova natureza é

certamente um novo princípio de vida, mas é um princípio essencialmente da vida

moral que se manifesta numa santa disposição de caráter. E difícil estabelecer cu

exato relacionamento entre o espírito como princípio de vida e o espírito m m a

princípio regenerador da vida moral

Por exemplo, algumas passagens em Romanos 8 tornam difícil decidir se

o termo “Espírito” deve ser escrito com “E” maiusculo para designar o Espíri­

to Santo, ou com um “e” minusculo quando referindo-se ao espírito humano

redimido e renovado. Talvez Paulo tencionava permítír-nos ler suas palavras

de qualquer desses modos. Os versos 5 a 9 não perdem nada de seu profundo

significado se esse intercâmbio é permitido, “Os que se inclinam para a carne

cogitam das coisas da carne; mas os que se inclinam para o Espírito, das coisas

do Espírito” (v. 5), “Vós, porém, não estais na carne, mas no Espírito, se de fato

o Espírito de Deus habita em vós” (v. 9).

A VISÃO DA NATUREZA DO HOMEM NO NOVO TESTAMENTO

A ligação entre os dois parece ser encontrada no fato de que o espírito que

toda pessoa possui como um princípio transmissor de vida capacita os crentes

a serem receptivos e responsivos à operação do Espírito Santo em sua vida. Em

outras palavras, é o espírito como sede da vida psíquica e racional (g^eujn tgg^ ,

com o qual Deus capacitou cada pessoa, que torna possível ao Espírito de Deus

habitar nos seres humanos. W, D. Stacey destaca este aspecto ao dizer; 'Todos

os homens têm pneuma [o espírito] desde o nascimento, mas o Imeumã [espíritol

cristão, em comunhão com o Espírito de Deus, adauire um novo caráter e uma

nova dignidade (Rm 8:10)2.״a /vASO/nâfiTTO .

O ESPÍRITO HUMANO CAPAZ DE RECEBER O ESPÍRITO DE DEUS

O espírito humano não tem poder para regenerar-׳se. Não é uma faísca di­

vina que pode ser

,

avivada como uma chama de fogo. Antes, é uma capacidade

que Deus concedeu a toda pessoa para experimentar o poder regenerador de seu

Espírito. Quando uma pessoa é nascida de novo pelo Espírito de Deus, sua natu­

reza “natural” (psycfw/cos) torna-se “espiritual” (pneumatikos) (lCo 2:14» 15).

O espírito humano que é obediente a Deus experimenta o poder do Espírito

de Deus que guia e transforma. A comunhão com Deus é alcançada pelo espírito

humano mediante o Espírito de Deus, Claude Tresmontant descreve essa função

do espírito ■־pneuma:

O espírito da homem, seu pneuma, é aquilo que dentro dele lhe permite um encontro

com o Pneuma [Espírito] de Deus. E a parte de um homem que pode entrar em diá­

logo com o Espírito de Deus, não como um estranho, mas como um filho; ‘O próprio

Espírito testifica com o nosso espírito que somos filhos de Deus’ (Rm 8:16).29

O espírito humano capacita uma pessoa a servir a Deus: “Porque Deus, a

quem sirvo em meu espírito-pneuma, no evangelho de seu F i l h o . . (Rm 1:9). A

sentença “sirvo em meu espírito” sugere que o espírito é uma capacidade mental e

volitiva que capacita uma pessoa a servir a Deus. Poderíamos dizer que o espírito

humano foi designado por Deus para unir-se com o Espírito Santo. Em razão de o

homem ser espírito-pneuma, um ser vivo animado pelo fôlego do Espírito de Deus

(ruach'pneuma), que é capaz de receber o Espírito-pneuma Santo e assim chegar a

um relacionamento íntimo e vivo com Deus.

Henry Barclay Swete explica a orientação humana para com o Espírito Santo:

O Espírito Santo não cria o ‘espírito’ no homem; está potencialmente presente em

todo homem, mesmo se mdimentarmente e nãodesenvolvido. Todo ser humano

tem afinidades com o espiritual e eterno. Em cada indivíduo da raça o espírito do

homem que está nele (lCo 2:11) responde ao Espírito de Deus, na medida em que o fi­

nito pode corresponder-se com o infinito... Mas embora o Espírito de Deus encontre

Im o r ta lid a d e o u R essu r r eiç ã o ?

no homem uma natureza espiritual em que pode operar, o espírito humano se acha

numa condição tão imperfeita e ־depravada que uma completa renovação, mesmo

recriação, se faz necessária (2Co 5;17h3Q

Permitir ao Espírito de Deus renovar e transformar nossa vida não é renunciar

à nossa própria personalidade, mas trazê-la submissa. Em harmonia com o Antigo.

Testamento, o Novo Testamento vê a natureza humana holisticamente, onde o cor­

po, alma e espírito são partes integrais do mesmo sej. O espírito é uma força, insepa­

rável do fôlego e da vida (Lc 8:55; 23:46) que renova a mente (Ef 4:23) e capacita

uma pessoa a tornar-se uma nova criatura, “e vos revistais do novo homem, criado

segundo Deus, em justiça e retidão procedentes da verdade ”.(Ef 4:24).

O ESPÍRITO COMO RENASCIMENTO ESPIRITUAL

O Espírito de Deus é o agente ativo da criação e recriação. Vimos que

no Antigo Testamento a criação do homem é atribuída ao Espírito de Deus. O

homem existe como alma vivente por causa do fôlego de Deus (Gn 2:7). A re­

criação na ordem moral é também a obra do Espírito. Somos lembrados da visão

dos ossos secos de Ezequiel que retornaram à existência mediante o Espírito de

Deus. Os ossos secos representam 4*toda a casa de Israel״ (Ez 37:14) que em sua

condição foi trazida de volta à vida, ou seja, ao renascimento espiritual pelo

Espírito de Deus: “Porei em vós o meu Espírito, e vivereis, e vos estabelecerei

na vossa própria terra. Então sabereis que eu, o Senhor, disse isco, e o fiz, diz o

Senhor” (Ez 37:14b

No Novo Testamento, há uma descrição mas completa acerca da trans­

formação morai realizada pelo Espírito Santo do que no Antigo Testamento,

de modo especial nos escritos de João e Paulo. Os dois apóstolos descrevem

este processo em formas diferentes, contudo, complementares. João concebe

a transformação moral interior como renascimento e Paulo como nova criação.

As duas metáforas, como veremos, são complementares, cada uma designada a

ajudar-nos a compreender a nova vida operada pelo Espírito Santo.

No Evangelho de João, Jesus compara a transformação moral realizada pelo

Espírito Santo a um renascimento. Faiando a Nicodemos, Jesus diz: “Em verda­

de, em verdade te digo: Quem não nascer da água e do Espírito, não pode entrar

no reino de Deus” (Jo 3:5). Ser nascido do Espírito é contrastado com ser nasci­

do da carne: “O que é nascido da carne, é carne; e o que é nascido do Espírito, é

espírito” {Jo 3:6). O nascimento físico está de acordo com a carne (Jcata sarfca),

colocando uma pessoa num nível horizontal de existência natural. O nascimen­

to espiritual é “de cima” (Jo 3:3) pelo Espírito, colocando uma pessoa num nível

vertical de existência pelo poder habüitador do Espírito.

A VISÃO DA NATUREZA DO HOMEM N O N O V O TESTAMENTO

Na noite de sua ressurreição Jesus ״soprou sobre eles [os discípulos], e disse׳

lhes: Recebei o Espírito Santo” (Jo 20:22). Essa ação, que assinalou a recriação

dos discípulos, faz paralelo à primeira criação do homem, quando Deus soprou-lhe

o fôlego de vida, A criação e recriação, nascimento e renascimento, são atos do

Espírito, porque, como Jesus explicou, ״espírito é o que vivifica” (Jo 6:63). Isto é

verdade tanto no que tange à vida física quanto espiritual.

O Espírito é a fonte imediata de vida mediada por Cristo.

Se alguém tem sede, venha a mim e beba, Quem crer em mim, como diz a Escritu­

ra, de seu interior fluirão rios de água viva. Isto ele disse com respeito ao Espírito

que haviam de receber os que nele cressem; pois o Espírito até esse momento não

fora dado, porque Jesus não havia sido ainda glorificado (Jo 7:3739״).

Cristo é a fonte meritória do Espírito, pois mediante seu sacrifício expiató­

rio Ele pode conceder seu Espírito transmissor de vida ao crente. E por isso que

Paulo fala do “Espírito da vida em Cristo Jesus te livrou da lei do pecado e da

morte” (Rm 8:2).

Sumariando, podemos dizer que embora João não mencione o espírito do ho­

mem como tal, ele o visualiza como cumprido e realizado pelo Espírito mediante o

qual Cristo concede nova vida, um renascimento espiritual, ao crente. Em certo

sentido, o significado último do íôlego de Deus como fonte de vida física é revelado

e cumprido na nova vida, tornada possível pelo “Espírito de vida em Cristo Jesus”

(Rm 8:2). Em parte alguma João identifica o Espírito transmissor de vida com uma

alma imaterial, imortal, capaz de destacar-se do corpo. A função do espírito é sim­

plesmente operar um renascimento espiritual, isto é, uma transformação moral da

pessoa inteira do crente. Em João não há dualismo entre um corpo material, mortal,

e uma alma espiritual, imortal, porque o Espírito traz vida nova à pessoa integral.

O ESPÍRITO COMO NOVA CRIAÇÃO

Paulo descreve a transformação moral realizada pelo Espírito, não como

um renascimento, mas como uma “nova criação” (2Co 5:17; cf. ICo 6:11; GI

3:27; 6:15; Et 4:24)* As duas metáforas cobrem essencialmente a mesma idéia.

Paulo atribui importância vital ao papel do Espírito na vida do crente. Isto é

indicado pelo fato de que em suas cartas ele se refere ao espírito 146 vezes, em

%1— ־—־ — ‘ — ■ ■ ■» ■ * ■ ■ ■■■*■ ■ ■ ■ I ■ *■ ■ ■ ■■■ 1■ ^

comparação com somente 13 referências à alrna^Wheeler Robinson correta­

mente afirma que pneürna-espírito é “a palavra mais importante no vocabulário

psicológico de Paulo, talvez em seu vocabulário como um todo”,31 A razão é que

Paulo se preocupa em mostrar que salvação é exclusivamente um divino dom de

graça mediado pelo “Espírito de vida em Cristo Jesus” (Rm 8:2), e não a posse

natural de uma alma imortal.

Im oktaudalje o u R essu rreiçã o?

Salvação não é a remoção do espírito ou da alma do corpo ou do mundo em que

o corpo vive, mas uma renovação do corpo mediante o poder capacitador do Espírito.

Portanto, a descrição de Paulo da vida cristã é em grande medida feita em termos

do poder capacitador do Espírito para o crente viver segundo a vontade revelada de

Deus. O apóstolo explica que Cristo veio “a fim

,

de que o preceito da lei se cumprisse

em nós que não andamos segundo a carne, mas segundo o Espírito” ]׳Rn: 8:4).

Andar segundo o Espírito significa pôr a mente nas “coisas do Espírito” {Rm

8:5), ou seja, viver em conformidade com os princípios de vida que Deus revelou, em

vez de sê-lo de acordo com os desejos da carne. “Andai no Espírito, e jamais satisfareis

à concupiscência da carne” (GET 16). Caminhar segundo a came (kata sarka) sigiii-

fica cumprir “as obras da carne” tais como “prostituição, impureza, lascívia, idolatria,

feitiçarias, inimizades, porfias, ciúmes, iras, discórdias, dissensões, facções, invejas, be­

bedices. glutonarias, e cousas semelhantes a estas, a respeito das quais eu vos declaro,

como já ou trota vos preveni, que não herdarão o reino de Deus os que tais cousa prati­

cam” (GL 5 :19. 20). Em contraste, caminhar segundo o espírito (kata fmcumu) signifi­

ca produzir “o fruto do Espírito”, representado por “amor, alegria, paz, longanimidade,

benignidade, bondade, fidelidade, mansidão, domínio próprio” (Cl 5:22, 23).

Os efeitos da nova criação exercidos na vida do crente pelo Espírito Santo são

manifestos especialmente num relacionamento de filiação; numa fé e esperança inaba­

láveis; num ardente amor pelos irmãos; e num ousado testemunho por Cristo. Mediante

o Espírito, tomamo-nos membros da família de Deus. “E porque vós sois filhos, enviou

Deus aos nossos corações o Espírito de seu Filho, que clama: Aba, Pai” (QLi!6).

O Espírito instila no crente fé e esperança em Cristo. “E o Deus da esperança

vos encha de todo o gozo e paz no vosso crer, para que sejais ricos de esperança

no poder do Espírito Santo” (Rm 15:13; cf, G1 3:14; 5:5). A nova vida do Espírito

é manifesta especialmente no espírito de amor fraternal que flui de Cristo para a

vida do crente. “Ora, a esperança não confunde, porque o amor de Deus é der­

ramado em nossos corações pelo Espírito Santo, que nos foi outorgado” ]Rm 5:5;

ct. 15:30; Cl 1 :8 ; 2 Co 6 :6.)., O Espírito comunica força para sofrer por causa de

Cristo. “Se, pelo nome de Cristo, sois injuriados, bem-aventurados sois, porque

sobre vós repousa o Espírito da glória e de Deus” QPe,4;14K

Finalniente, o Espírito é a miraculosa força comunicadora de vida da ter­

ceira pessoa da Divindade, que operará a ressurreição do corpo. “Se habita em

vós o Espírito daquele que ressuscitou a Jesus dentre os mortos, esse mesmo que

ressuscitou a Cristo Jesus dentre os mortos vivificará também os vossos corpos

mortais por meio de seu Espírito que em vós habita” (Rm 8:11; cf. íCo 6:14;

.2Cq.3.í6jl.QJ.6;8). Tal como o Espírito esteve em operação na primeira criação

(Gn 2:7), assim estará na ressurreição final No capítulo 4 veremos que a Bí­

blia em parte alguma sugere que o corpo ressuscitado será religado a uma alma

desincorporada. Em vez disso, a Bíblia ensina que este corpo terreno será res-

A VISÃO DA NATUREZA DO HOMEM NO NOVO TESTAMENTO

suscitado num wcorpo espiritual-bneumatikoC׳ (ICo 15:44), ou seja, uma pessoa

inteiramente dominada pela força-vital do espírito divino.

A CARNE E O ESPÍRITO

O contraste que Paulo faz entre a carne e o Espírito leva muitos a crer que

o apóstolo distingue entre o corpo material, mortal e a alma imortal, espiritu­

al.32 Essa interpretação ignora o fato de que a antítese paulina entre a carne e

o espírito não é uma dualidade de substâncias metafísicas, mas um contraste de

orientação ética-religiosa.

O contraste mais acentuado entre carne e espírito acha-se na primeira parte

de Romanos 8· A q u i Paulo contrasta destacadamente os que vivem “segundo a

carne” com os que vivem “segundo o Espírito״. “Porque os que se inclinam para

a carne cogitam das coisas da carne; mas os que se inclinam para o Espírito, das

coisas do Espírito. Porque o pendor da carne dá para a morte, mas o do Espírito,

para a vida e paz” (Rm 8:5. 6),

A primeira coisa a assinalar nesta e em passagens semelhantes (G1 5:16-26) é

que Paulo nunca emprega as palavras gregas para “corpo״ e “alma” (soma e ps^c/ié).

Em vez disso, ele sempre emprega um conjunto diferente de termos, como sarx e

pneuma, traduzidos como “carne” e “espírito”. Se Paulo tivesse em mente realçar a

distinção entre o corpo mortal e a alma imortal, ele teria usado as palavras gregas

soma (corpo) e psychê (alma) que eram padrão na doutrina dualística grega. Mas o

que Paulo rinha em mente era algo inteiramente diferente, por isso, empregou um

conjunto diferente de palavras para expressá-lo.

Não pode haver dúvida de que para Paulo “a carne” e “o Espírito” represen­

tam, não duas partes separadas e opostas da natureza humana, mas duas diferentes

orientações éticas, Isso se faz claro quando se compara a lista de “obras da came”

(G1 5:19, 20) com o “fruto do Espírito” (G1 5:22, 23). Aqui novamente as duas

listas mostram que “carne” e “Espírito” representam não duas partes separadas e

opostas da natureza humana, mas dois tipos diferentes de estilo de vida. Os peca­

dos atribuídos à carne, tais como “idolatria, feitiçarias, inimizades, porfias, ciúmes,

iras, discórdias, dissensões, facções, invejas” nada têm a ver com impulsos físicos.

“Poderíam muito bem ser praticados por um espírito desíncorporado".33

Charles Davis claramente expõe o significado bíblico de came e espírito, dizendo.

Ele [Paulo] é plenam ente hebreu em sua cosmovisão; ele via o hom em simplesmente

com o uma unidade. Consequentem ente, sua antítese de cam e (sarx) e espírito (pneu­

ma) não constitui uma oposição entre matéria e espírito, entre corpo e alma. Gam e"

não é parte do homem. Mas o hom em integral em sua fraqueza e mortalidade, em seu

distanciam ento de Deus, em sua solidariedade com a criação corrupta e pecaminosa.

‘Espírito' é o hom em como aberto à vida divina e com o pertencendo à esfera do divino,

Im ortalidade o u R essurreição?

ou seja, o homem sob a influência e atividade do Espírito. Carne e espirito são dois

princípios ativos que afetam o homem e estão em luta dentro dele.34

Numa linha semelhante de pensamento, George Eldon Ladd escreve que

׳ carne” refere״ se ao homem

como um todo, visto em suas falhas, oposto a Deus, Esse emprego é um desenvolvi­

mento natural do emprego veterotestamentário de basar [came], que é o homem visto

em sua fragilidade e fraqueza perante Deus. Quando isto é aplicado ao reino ético,

torna׳ se o homem em sua fraqueza ética, isto é, a pecamínosidade perante Deus. Sarx

[carne] representa não uma parte do homem, mas o homem como um todo - não

regenerado, caído, pecaminoso.35

Came e Espírito representam respectivamente o poder da morte e o poder

da vida que podem operar dentro de uma pessoa. Oscar Cullmann oferece esta

ilumínadora comparação entre ambas:

‘C arne’ é o poder do pecado ou o poder da m orte. Abrange o homem exterior e iiv

terior conjuntam ente. Espírito (pneuma) é o seu grande antagonista: carne e espírito

são poderes ativos, e como tal operam dentro de nós. A carne, o poder da morte,

entrou no homem com o pecado de Adão. Entrou no homem, completo, interior

e exterior, de tal modo que está bem intim am ente ligado com o corpo. O homem

interior acha׳ se menos ligado à carne; embora m ediante a culpa este poder da morte

tenha se apossado mais e mais do homem interior. O espirito, por outro lado, é o

grande poder de vida, o elem ento da ressurreição; o poder de Deus da criação nos é

dado mediante o Espírito Santo.30

O poder animador do Espírito Santo é manifesto nesta vida presente em

nosso “homem interior [que] se renova de dia em dia” (2Co 4:16) pelo poder

transformador do Espírito (Ef 4:23, 24).

A CARNE COMO NATUREZA HUMANA PECAMINOSA

A carne -sarx representa a natureza humana não ׳ regenerada, pecaminosa,

mas não porque o pecado reside na natureza humana do corpo, em vez de sê׳ lo

na natureza “espiritual” da alma. Afinal de contas, o corpo de came é o templo

do Espírito (ICo 6;9h um membro de Cristo (ICo 6:1.5)f e um meio de glorificar

a Deus (ICo 6:20j, A razão por que a carne-sarx

,

representa a natureza humana

caída e pecaminosa é que ela representa a fragilidade humana que pode tornar׳ se

um instrumento do pecado.

O sentido de “carne” como significando “mundo” é ambivalente em Paulo

e na Bíblia em geral. A carne e o mundo como criados por Deus para que a

humanidade os desfrute apropriadamente, são bons (Gn 1:18, 2. 2 *>4 ^1)· Mas

A VISÃO DA NATUREZA DO HOMEM NO NOVO TESTAMENTO

quando a carne e o mundo negam sua condição de coisas criadas por Deus e

contra Ele se rebelam reivindicando independência e auto-suficiência, então

tornam-se maus. E nesse sentido que carne (natureza carnal) e mundanismo

são sinônimos de pecaminosidade. Poderíamos dizer que “a carne-sarx” é neutra

quando se refere à vida de uma pessoa no mundo, mas designa a oecamínosi-

dade quando descreve uma pessoa vivendo para o mundo e permitindo que o

mundo governe toda sua vida e conduta.

E evidente, portanto, que a antítese entre “a carne” e “o Espírito” nada tem

a ver com o dualismo corpo-alma. À carne por si mesma não representa a parte

da natureza humana (o corpo) que se alega ser má, e o espírito não representa a

parte da natureza humana que supostamente é boa (a alma). Quando empregadas

numa forma negativa, ila carne” significa o tipo de pessoa em quem a vida inteira,

tanto física quanto psíquica, está fora do rumo, centralizada sobre o eu, antes que

sobre Deus. Semelhantemente, “o espírito” representa não meramente a parte

espiritual da natureza humana, mas o tipo de pessoa em quem a vida integral,

tanto física quanto psíquica, é dirigida a Deus antes que ao eu. O contraste entre

“carne” e ”espírito” é ético, não ontológico.

E lamentável que muitos entendam Paulo de maneira errônea neste ponto.

A razão para isto é a falha em entender que para Paulo, e para a Bíblia como um

todo, o que corrompe uma pessoa não é o corpo ou a carne, mas o pecado. A car­

ne pode tornar-se um instrumento do pecado, e como tal afeta o corpo e a alma,

tal como sua contrapartida, o Espírito, transforma o corpo e a alma.37 “O inimigo

derradeiro do Espírito de Deus não é a carne, mas o pecado, do qual a carne se

tomou o instrumento fraco e corrupto”.38

Conclusão

Nosso estudo do emprego neo testamentario do termo “espírito-pneumfl” re­

velou que o espírito, à semelhança da alma, não é um componente espiritual inde­

pendente da natureza humana que opera à parte do corpo. Pelo contrário, o espíri­

to é o princípio de vida que anima o corpo físico e regenera a pessoa integral.

Descobrimos que o significado e função do Espírito expandem-se com a vinda

de Cristo, que é identificado com o Espírito na obra da salvação. O significado do

espírito-fjneumn como um princípio de vida é expandido para incluir o novo princí­

pio de vida de regeneração moral, tomado possível mediante a redenção de Cristo.

O Espírito sustém tanto os aspectos da vida física quanto moral-espiritual

A transformação moral realizada pelo Espírito Santo é descrita mais plena -

mente no Novo Testamento do que no Antigo Testamento. João e Paulo descrevem

este processo com duas metáforas diferentes, contudo complementares. João conce­

be a transformação moral interior como renascimento; Paulo, como nova criação,

Im ortalidade o u R essurreição?

O “Espírito-jfffieuma” é a palavra mais importante do vocabulário de Paulo por׳

que serve para mostrar que a salvação é exclusivamente um dom divino de graça

mediado pelo “Espírito de vida em Cristo Jesus״ {Rm 8:2), e não a posse natural de

uma alma imortal Em parte alguma o Novo Testamento identifica o Espírito comu­

nicador de vida com uma alma imaterial, imortal, capaz de separar-se do corpo.

A função do Espírito não é suster uma alma imortal, espiritual, mas suster

tanto a vida física quanto espiritual Tanto a criação quanto a recriação, nasci­

mento e renascimento, são ações do Espírito, porque, como Jesus explicou, “é o

Espírito que dá vida’ (Jo 6:63).

A antítese paulina entre “a came״ e “o Espírito” nada tem a ver com o dua­

lismo corpo-alma. Os dois não representam partes separadas e opostas da nature­

za humana, mas duas orientações éticas diferentes de uma pessoa; viver uma vida

centralizada no eu versws viver uma vida centralizada em Deus. ,Em suma, pode­

mos dizer que o espírito, à semelhança da alma, corresponde, não uma entidade

separada da natureza humana, mas um aspecto da totalidade dessa natureza.

A NATUREZA HUMANA COMO CORPO

O sentido de corpo-soma ou de carne-sarx no Novo Testamento é seme­

lhante ao das palavras correspondentes do Antigo Testamento (corpo-geviyyah e

carne-bas/tar), examinadas no capítulo anterior. Em seu emprego literal, o termo

“corpo״ descreve a realidade concreta da vida humana que consiste de carne e

sangue. No Novo Testamento, contudo, “corpo-sorna” é geralmente empregado

num sentido figurado para denotar a pessoa como um todo (Rm 6 ; 12; Hb 10:5),

a natureza humana corrupta (Rm 6:12; 8:11; 2Co 4:11), a igreja como o corpo de

Cristo (Ef 1:23; Ci 1:24), o corpo ressurreto dos remidos (lCo 15:44), e a presen­

ça espiritual de Cristo simbolizada pelo pão e vinho (lCo 11:27). Para o propósito

de nossa investigação, focalizamos primariamente na perspectiva neotestamentá-

ria do corpo humano em relação à pessoa total

Cristo e o corpo humano

Para apreciar a consideração positiva do Novo Testamento acerca do corpo

humano, precisamos refletir sobre sua doutrina central da encarnação. Por exemplo,

o evangelho de João anuncia no início que o eterno Filho de Deus “se fez came e

habitou entre nós” (Jo 1:14). A própria ídéia de que o eterno Filho de Deus entrou

no tempo e espaço humanos e assumiu uma natureza humana plena, incluindo um

corpo, era incompreensível para a mente grega. De fato, o gnosticismo, um influente

movimento sectário cristão, influenciado pelo dualismo grego, rejeitava abertamen-

A VISÃO DA NATUREZA DO HOMEM NO NOVO TESTAMENTO

te a e n ca rn a çã o de C risto . Isso ilu stra v igorosam ente a d ife rença e n tre a visão b íb li­

ca ho lística d a n a tu reza h u m a n a , q u e dá valor ao corpo, e a v isão d ua lís tica grega,

que considera o co rpo co m o a prisão d a a lm a a ser d esca rtad a co m a m orte .

Qualquer pessoa que aceite plenamente a doutrina neotestamentária da en­

carnação nunca pode acusar os escritores do Novo Testamento de denegrir o corpo

humano ou a ordem física. O fato de que o divino Filho de Deus assumiu um corpo

humano a fim de viver sobre a Terra comunica dignidade e importância ao corpo e

a todo o reino físico.

É também significativo observar que o mesmo Verbo eterno mediante o qual

tudo o “que foi feito se fez” (Jo 1:3) por ocasião da criação veio ao mundo para redi­

mir e restaurar não só a “alma”, mas o homem integral e o mundo inteiro.

Este é o significado da estranha doutrina de ressurreição do corpo, a qual, mais do

que qualquer outra coLsa, horrorizava e causava repugnância no m undo grego. Esta

doutrina servia para realçar, na forma mais vigorosa possível, o ponto de vista do Novo

Testam ento de que não é alguma parte do homem (sua “alma1' racional) que se destina

à eternidade, mas a pessoa integral que tem o seu lugar no propósito de DeusV

A doutrina da ressurreição do corpo, que será examinada no capítulo 7, ensina

que nossa natureza física e o mundo material, que desempenham um papel vital

em moldar nossa existência terrena, têm significação eterna no divino esquema de

coisas. Isto nos ensina, como Ronald Hall acertadamente diz, que

mesmo no além -túmulo, o corpo não é um mero adorno do espírito, mas um elem en­

to essencial no ser de uma pessoa. Sena difícil entender por que Paulo centralizava a

fé na crença da ressurreição se ele tivesse outra idéia. Se ele pensasse, por exemplo,

que a salvação tivesse que ver somente com uma alma desincorporada liberta do

corpo, certam ente não teria insistido tan to no tema da ressurreição do corpo; ele

teria se contentado com a noção grega de uma alma im ortal.40

A ressurreição

,

pela encarnação de

Cristo que tomou um corpo humano a fim cumprir Sua missão redentora sobre a Ter­

ra. A encarnação de Cristo num corpo humano e Sua ressurreição num corpo glorifi­

cado (]o 20:27) nos falam que o corpo tem significação eterna no propósito redentor

e criativo de Deus. Isso é confirmado pela ressurreição do corpo, o que nos fala que

mesmo na nova terra, o corpo será uma parte essencial da existência humana.

Figuradamente, o corpo é empregado no Novo Testamento numa fonna ambi­

valente. Por um lado, pode tomar׳se um “corpo do pecado” (Rm 6:6) e o “corpo desta

morte” (Rm 7:24), quando se toma um instrumento do pecado. Por outro lado, pode

tomar-se o templo do Espírito Santo (ICo 6:19) e o meio de glorificar a Deus (ICo

6:20), quando se toma um instrumento no serviço de Cristo. A redenção significa,

não a remoção da alma do corpo, mas a renovação do corpo (a pessoa inteira) nesta

vida presente e a ressurreição do corpo (a pessoa inteira) no mundo por vir.

A NATUREZA HUMANA COMO CORAÇÃO

O coração*■kardia no Novo Testamento é empregado com a mesma ampla

gama de sentidos que encontramos no Antigo Testamento (leb e lebab). Não pre-

A VISÃO DA NATUREZA DO HOMEM NO NOVO TESTAMENTO

cisamos delongar-nos no estudo do significado e empregos do termo coração no

Novo Testamento. Essencialmenté, o coração-kardia representa a vida interior

integral de uma pessoa em seus vários aspectos. Denota, como no caso de espírito,

o centro emocional, intelectual e espiritual de uma pessoa. O fato de que o “cora­

ção’1 e o “espírito” são empregados numa maneira semelhante mostra novamente

o ponto de vista holístico bíblico da natureza humana, onde uma parte da nature­

za humana pode ser empregada com referência à pessoa integral.

O CORAÇÃO É A SEDE DAS EMOÇÕES

Tanto as boas quanto as más emoções brotam do coração. O coração sente

alegria (Jo 16:22; At 2:26; 14:17), temor (Jo 14:1), sofrimento (]o 16:6; 2Co 2:4),

amor (2Co 7:3; 6:11; Fp 1:7), cupidez (Rm 1:24), anseio (Rm 10:1; Lc 24:32), e

desejo (Rm 1:24; Mt 5:28; Tg 3:14). Paulo expressou o desejo de seu coração pela

conversão de seus irmãos judeus (Rm 10:1). Ele escreveu aos coríntios com “an­

gústia de coração” (2Co 2:4). Instou os coríntios a abrir o coração para recebê-lo

e a seus companheiros em amor (2Co 7:2).

O CORAÇÃO É A SEDE DA ATIVIDADE INTELECTUAL

Jesus disse que “Nem todo o que me diz: Senhor, Senhor! entrará no reino

dos céus, mas aquele que faz a vontade de meu Pai que está nos céus” (Mc 7 :2 1 ) e

“Raça de víboras, como podeis falar cousas boas, sendo maus? Porque a boca fala

do que está cheio o coração” (Mt 12:34). Paulo exorta todo homem a dar liberal­

mente “como propôs em seu coração” (2Co 9:7). Os “olhos do coração” devem ser

iluminados (Efé 1:8) para entender a esperança cristã. As decisões têm sua origem

no coração (Lc 21:14; At 11:23).

As vezes, é Deus quem influencia a decisão dos corações humanos: “Porque

em seus corações incutiu Deus que realizem o seu pensamento, o executem à uma

e dêem a esta o reino que possuem, até que se cumpram as palavras de Deus” (Ap

17:17). As vezes, é o diabo quem o faz: “Durante a ceia, tendo já o diabo posto no

coração de judas Iscaríotes, filho de Simão, que traísse a Jesus...” (Jo 13:2). Outras

vezes, o coração é sinônimo de consciência: “Amados, se o coração não nos acusar,

temos confiança diante de Deus” (ljo 3:21). Os gentios possuem uma lei, escrita em

seus corações que os capacita a distinguirem entre o bem e o mal (Rm 2:14, 15).

O CORAÇÃO COMO SEDE DA EXPERIÊNCIA RELIGIOSA

Deus se comunica com uma pessoa no coração. Ele pesquisa o coração hu­

mano e o põe à prova (Lc 16; 15; Rm 8:27; ITs 2:4). Deus escreve a sua lei no

coração humano (Rm 2:15; 2Co 3:2; Hb 8:10). Ele abre o coração humano (Lc

Im ortalidade o u Ressurreição?

24;45; At 16:14). Ele resplandece em nossos corações para nos dar luz do co­

nhecimento de Jesus Cristo (2Co 4:6). A paz de Deus mantém nossos corações e

mentes em Cristo (Fp 4:7). O Espírito de Deus é derramado em nossos cotações

(Rm 5:5; 2Co 1:22; G14:6).

Cristo habita o nosso coração e nele atua por meio da fé (Et 4: 7, 18). O

coração cristão é purificado e santificado mediante a té e o batismo (At 15:9;

Hb 10:22). O coração é purificado (Mt 5:8) e fortalecido por Deus (lTs. 3:13).

A paz de Cristo pode reinar no coração (Cl 3:15). O coração recebe as primícias

do Espírito (2Co 1:22).

Virtudes cristãs são atribuídas ao coração. O amor é associado com o coração

(2Ts 3:5; IPe 1:22). A obediência se liga ao coração (Rm 6:17; Cl 3:22). O perdão

deriva do coração (Mt 18:35). A gratidão reside no coração (Cl 3:16). A paz de

Deus habita no coração (Fp 4:7). Acima de tudo, o amor por Deus e pelo seme­

lhante procede do coração (Mc 12:30 e 31; Lc 10:27; Mt 22:37-39).

Os exemplos de textos há pouco citados indicam claramente que a palavra

coração” é empregada para descrever a vida interior da pessoa total. Isso leva״

Karl Bar th a concluir que ״o coração não é meramente uma parte, mas a realidade

do homem, tanto integralmente da alma, quanto integralmente do corpo”.44 O

fato de que o coração representa a vida interiot total de uma pessoa em grande

parte como também se dá com o espírito, revela novamente a perspectiva holisti־׳

ca bíblica da natureza humana.

A visão dualística que atribuí as funções morais e espirituais da natureza

humana à alma é desacreditada pelo fato de que tais funções são igualmente atri­

buídas ao coração e ao espírito. Isso é possível porque, como vimos, na Bíblia a

natureza é uma unidade indissolúvel e não uma composição de diferentes peças .

A visão holística bíblica da natureza humana nega a possibilidade de que a alma

exista e atue como uma entidade distinta, imaterial à parte do corpo.

Apoio de eruditos para o ponto de vista holístico

Como um breve apêndice à nossa pesquisa do ponto de vista bíblico da

natureza humana, cito, como exemplos, alguns dos numerosos eruditos de

diferentes persuasões que apoiam o ponto de vísta holístico bíblico, que nega

a crença na imortalidade da alma.45

Em vários de seus livros, Wiüiam Temple, arcebispo de Canterbury, afirma

o ponto de vista holísnco-bíblico da natureza humana e declara ser “antibíbli-

ca a noção da indestrutibilidade natural da alma individual46.״ Ele escreveu:

“O homem não é imortal por natureza ou direito, mas é capaz da imortalidade;

a ele é oferecida a ressurreição dos mortos e também a vida eterna, se ele de­

sejar recebê-la de Deus e nos termos de Deus”.47

A VISÃO DA NATUREZA DO HOMEM NO NOVO TESTAMENTO

Na “Conferência Ingersoll sobre a imortalidade do homem”, apresentada

na Capela Andover da Universidade Harvard, o teólogo suíço Oscar Cullmann

acentuou a diferença fundamental entre a doutrina cristã da ressurreição e o

conceito grego da imortalidade da alma. Disse ele: “A alma não é imortal. Deve

haver uma ressurreição para ambos [corpo e alma]; pois desde a queda, o homem

inteiro é 'semeado corruptível’”.4־· Essa famosa conferência, que mais tarde foi

publicada em forma de livro sob o título Immortality of the Sou! or Resurrection of

the Dead! (Imortalidade da alma ou ressurreição dos mortos0, provocou violen­

ta hostilidade da parte de alguns que acusaram Cullmann de ser um “monstro

que se deleita em causar angústia espiritual”.49 Um autor declarou: “O povo

francês, morrendo por falta do Pão da Vída, em vez disso teve oferecidas pedras,

se não serpentes”.50 Tais reações violentas exemplificam quão difícil é para as

pessoas reexaminarem crenças que há muito adotaram.

Em seu livro Basic Christian Teachings (Ensinos cristãos básicos), o teólogo

luterano Martin Heinechen rejeita como “falso dualismo” a noção de que por

ocasião da criação

D eus fez um a alma, que é a pessoa real, e en tão deu a essa alm a um a lar tem porário

num corpo, feito de pó da te rra ״ . O hom em deve ser considerado um a un idade.״

O dualism o cristão não tem que ver com alm a e corpo, m ente e te rn a e coisas

,

que

passam , mas o dualism o de C riador e criatura. O hom em é uma pessoa, um ser

integral, um cen tro de responsabilidade, ap resen tando-se d ian te do C riador e Juiz.

Ele n ão tem vida ou im ortalidade den tro em si m esm o.’1

No The Pocket Commentar}׳ of the Bible [Comentário da Bíblia de Bolso],

Basii F. C. Atkínson, bibliotecário da Universidade Cambridge, escreve, com

relação a Gênesis 2:7;

Às vezes se têm pensado que a concessão do princípio de vida, como nos é apresen­

tado neste verso, implica em imortalidade do espírito ou alma. Têm -se dito que ser

feito à imagem de Deus envolve imortalidade. A Bíblia nunca diz isso, Se envolvesse

imortalidade, por que não envolve igualmente onisciência e onipotência, ou qualquer

outra qualidade ou atributo do Infinito.7״ . Ao longo da Bíblia, o hom em é concebido

com o feito de pó e cinzas, uma criatura física, a quem o princípio de vida é concedido

por empréstimo. O s pensadores gregos tendiam a pensar no hom em como sendo uma

alma imortal aprisionada num corpo. A ênfase é oposta à da Bíblia, mas encontrou um

vasto lugar no pensam ento cristão.’2

Alguns eruditos católicos também reconhecem que o conceito tradicional

da imortalidade natural da alma não é um conceito bíblico. Claude Tresmoiv

tant, um erudito francês católico dominicano, contrasta a “ressurreição” bíblica

da pessoa integral com o ponto de vista dualístico tradicional, Ele escreve:

Im ortalidade o u R essurreição?

Mas o ensino judaico-cristão sobre a ressurreição é uma questão bem diferente. Não sig­

nifica que uma parte do homem - sua alma - será liberada por ter a outra parte - seu cor­

po material - descartada; o ensino bíblico deixa implícito que o homem total é salvo.55

Em The Biblical Meaning of Man (O sentido bíblico do homem), Dom

Wulstan Mork, que é também um erudito católico dominicano, desafia a po­

sição dualística tradicional da natureza humana e insta o leitor a recuperar a

perspectiva holística bíblica. Escreve ele: “O homem bíblico, portanto o homem

como revelado na Bíblia, é uma unidade de carne, alma, e espírito, não uma

tricotomia, nem uma dicotomia de corpo e alma”. Ele prossegue observando que

a Bíblia vê o homem

como um todo, um ponto de vista salutar para descrever um viver integral e balance­

ado, Tadicalmente relacionado com Deus, a humanidade e toda a criação. Precisamos

dessa perspectiva hoje, para contrafazer uma atitude platônica ainda na espreita, e

corrigir uma aceitação da situação humana por demais natural e secularizada.54

Mork acredita que uma recuperação da perspectiva holística bíblica da natu­

reza humana contribuirá para uma “atitude mais salutar para com a pessoa huma­

na, e, de fato, para com a questão em geral”.55

Reínhold Niebuhr, rçnomado teólogo americano e professor por longo tem­

po no Seminário Teológico Union, contrasta o ponto de vista holístico bíblico da

natureza humana com o ponto de vista dualístico clássico. Ele conclui:

Todas as provas plausíveis e não-plausíveis para a imortalidade da alma são esforços

da parte da mente humana para compreender e controlar a consumação da vida. To­

dos tentam provar de um modo ou de outro que um elemento eterno na natureza do

homem é digno e capaz de sobrevivência além da morte. Mas toda técnica mística

ou racional que busca criar o elemento eterno tende a negar o significado histórico

da unidade de corpo e ulmcí; e, com isso, o sentido de todo o processo histórico com

suas infinitas elaborações dessa unidade.56

Em seu livro The Christian Hope (A esperança cristã), o teólogo luterano T

A, Kantonen observa que

tem sido característica do pensamento ocidental desde Platão distinguir radicalmen­

te entre a alma e o corpo. O corpo supostamente é composto de matéria, enquanto

a alma o é de espírito. O corpo é uma prisão da qual a alma é libertada por ocasião

da morte para levar avante sua primeira existência não-física. Daí o tema da vida

após a morte ter sido uma questão de demonstrar a imortalidade, a capacidade desa­

fiadora da morte da alma. O corpo é de pouca consequência. Esse modo de pensar é

inteiramente estranho à Bíblia. Em perfeita harmonia com as Escrituras e rejeitando

decididamente a visão grega, o Credo dos Apóstolos não diz “creio na imortalidade

da alma”, mas “creio na ressurreição do corpo”,57

A VISÃO DA NATUREZA DO HOMEM NO NOVO T rstamfntO

Em seu impressionante estudo sobre o ponto de vista bíblico da natureza hu­

mana, intitulado Bod} and Soul (Corpo e alma), R. G. Owen, ex-reitor do Trinity

Coliege, da Universidade de Toronto, oferece uma penetrante análise do contras­

te entre o ponto de vista dualístico grego e a posição holístíca bíblica da natureza

humana. Owen descobre que o homem na Bíblia é um “todo psicossomático uni­

ficado” e que “não pode haver parte destacável do homem que sobrevive à morte

física58;״ “A Bíblia״, ele escreve, “presume que a natureza humana é uma unidade;

no Novo Testamento ensina que o destino final do homem envolve a ‘ressurreição

do homem״A59 Owen propõe que “a velha doutrina da imortalidade da alma sepa­

rada deve agora ser tranqüílamente posta no lugar dos espíritos que partiram60,״

Emíl Brunner, bem conhecido teólogo suíço, acha o ponto de vista du­

alístico da natureza humana irreconciliável com a perspectiva holística bí­

blica, Ele escreve:

Em alguma parte da fé cristã deve ter havido alguma abertura pela qual essa doutri­

na estranha pôde penetrar. Certamente, segundo a perspectiva bíblica, somente Deus

é quem possui imortalidade. A opinião de que nós homens somos imortais em razão de

nossa alma ser de uma essência indestrutível - por ser divina - é, de uma vez por todas,

irreconciliável com a visão bíblica de Deus e do homemT

Brunner discute várias implicações negativas dessa concepção diialística da

natureza humana. Prímeiramente, ele assinala que o efeito do dualismo

não é meramente tom ar a morte inócua, mas também tirar do mal o seu aguilhão.

Assim como a morte afeta somente a parte inferior do homem, igualmente se dá isso

com o mal. O último consiste apenas no sensual e impulsivo. Eu próprio não sou

verdadeiramente responsável pelo mal, somente m inha parte inferior, que é como se

estivesse ligada a meu melhor, mais elevado e verdadeiro ser O mal, assim, não é ato

do espírito, nem rebeldia do eu contra o Criador, mas m eram ente uma natureza sen­

sual ou impulsiva que não foi amansada pela mente. Em suma, o mal é a ausência de

mente, não o pecado,62

* Uma segunda conclusão a que se chega é que

o hom em em seu ser espiritual e mais elevado é divino, não tem caráter de ser criado.

Deus não é seu criador, Deus é o todo de que o espírito hum ano constitui apenas

uma parte. O hom em é um participante do divino no sentido mais direto e literal.

Daí, uma vez que essa forma de retirar do mal o seu aguilhão corre necessariam ente

paralelo com deixar a m orte inócua m ediante o ensino a respeito da imortalidade,

esta solução ao problema da m orte revela-se em irreconciliável oposição com o pen­

sam ento cristão.63

Em seu livro I Believe in the Second Advent [Creio no segundo advento], Ste­

phen H, Travis, um respeitado teólogo britânico, reconhece que se fosse pressio-

Im orta lid a d e ou R essu r r eiç ã o?

nado a escolher entre ״punição eterna” e “imortalidade condicional”, ele optaria

pela última. A primeira razão que elé dá é que a

imortalidade da alma é uma doutrina não-bíblica derivada da filosofia grega. No ensi­

no bíblico o homem é ‘condicionalmente imortal’ - isto é, ele tem a possibilidade de

tornar-se imortal se receber a ressurreição ou imortalidade como um dom de Deus. Isso

deixaria implícito que Deus concede a ressurreição àqueles que o amam, mas os que a

Ele resistem perdem a existência.04

Travis faz notar que

o velho conceito da alma, que costumava ser a salvaguarda da passagem da pessoa

desta vida para a próxima, tem sido em grande medida abandonada no pensamen­

to moderno. A natureza do homem é tida

,

como uma unidade; ele não consiste de

duas partes, um corpo físico que morre e uma alma que prossegue vivendo para

sempre. Sua ‘1alma” ou “eu” ou “personalidade” é simplesmente uma função do

cérebro. Desse modo, quando o cérebro morre, a pessoa morre, e nada é deixado

para adentrar-se noutra vida.65

Bruce Reichenbach, filósofo americano, examina a natureza humana em seu

livro Is Man the Phoenix? (Seria o homem fênix?). Ele conclui que

a doutrina de que o homem como pessoa [alma] não morre apresenta dificuldades

particulares para o dualista cristão. Um fato é que isso aparentemente contraria os

ensinos das Escrituras... [Ele cita vários textos]. Cada uma destas e de numerosas

outras passagens indicam que cada um de nós, como pessoa, deve morrer. Não há

indício de que a única coisa sobre que se fala a respeito é a destruição do organismo

físico, e que a pessoa real, a alma, não morre mas prossegue vivendo.66

Donald Bloeseh, proeminente erudito evangélico, dá apoio à mesma con­

clusão, dizendo; “Não existe imortalidade inerente da alma. À pessoa que morre,

inclusive aquele que morre em Cristo, defronta a morte tanto do corpo quanto da

alma”.67 Anthony Hoekema, teólogo calvinista, concorda: “Não podemos apontar

a nenhuma qualidade inerente no homem ou a qualquer aspecto do homem que

o torne indestrutível”.68 E F. Bruce, respeitado erudito britânico, especialista em

Novo Testamento, adverte que “nosso pensamento tradicional sobre uma 'alma

que nunca morre’, que tanto deve à herança greco-romana, torna-nos difícil apre­

ciar o ponto de vista [holístico] de Paulo”.69

Murray Harris, erudito bíblico americano, conclui seu artigo sobre “Ressur­

reição e Imortalidade” declarando: “O homem não é imortal porque possui ou é

uma alma. Ele se torna imortal porque Deus o transforma erguendo-o dentre os

mortos”.70 Ele explica que enquanto o pensamento platônico tomou a imortalida­

de “um atributo inalienável da alma, ...a Bíblia não contém nenhuma definição da

constituição da alma que implique sua destrutibilidade”.71

A VISÃO DA NATUREZA DO HOMEM NO NOVO TESTAMENTO

Em sua dissertação doutoral “O Sheol no Antigo Testamento״, Ralph Waltér

Doermann concluí sua análise do ponto de vista veterotestamentário da natureza

humana ao dizer:

É evidente da perspectiva hebraica da unidade psicossomática do homem que havia

pouco espaço para a crença na “imortalidade da alma”. Ou a pessoa completa vivia ou a

pessoa inteira sucumbia à morte. Não havia existência independente para o ruach [espí­

rito] ou para o nephesh [almal à parte do corpo. Com a morte do corpo o ruach [espírito]

impessoal ‘retoma para Deus que o deu' (Ec 12:7) e a nephesh [alma] é destruída, embora

esteja ainda presente, num sentido muito débil, nos ossos e no sangue.72

H. Dooyeweerd, filósofo holandês calvinista, critica agudamente a visão du-

alística da natureza humana. Ele rejeita tal perspectiva não só porque “a idéia de

uma substância centralizada na razão humana {ou seja, a alma) está em conflito

com a confissão de corrupção radical da natureza humana, mas também porque

a separabilidade da alma do corpo suscita vários problemas״. Um dos problemas

que ele menciona é o de que é impossível à “alma”, separada do corpo levar avante

quaisquer atividades, porque as funções psíquicas estão indissoluvelmente ligadas

ao relacionamento temporal total e às funções do corpo.73

Conclusão

Chegamos ao final de nossa pesquisa de quatro palavras proeminentes emprega·׳

das no Antigo Testamento para descrever a natureza humana, a saber alma, espírito,

corpo e coração, Descobrimos que o Novo Testamento expande o sentido veterotesta­

mentário desses termos à luz dos ensinos e do ministério redentor de Cristo,

No Novo Testamento, a “alma-psyché” não é uma entidade imaterial e imor­

tal que sobrevive à morte do corpo, mas a pessoa total como um corpo vivo, com

sua personalidade, apetites, emoções e habilidades de raciocínio. A alma-ps:yc/ié

denota a vida física, emocional e espiritual. Cristo ampliou o sentido de alma-

psychê para incluir o dom da vida eterna recebida por aqueles que estão dispostos

a sacrificar sua vida terrena por Ele, mas nunca sugeriu que a alma seja uma en­

tidade imaterial, imortal. Pelo contjgrio, Jesus ensinava que Deus pode destruir a

alma, tanto quanto o corpo (Mt 10:28) dos pecadores impenitentes,

Paulo nunca emprega o termo “alma-psycfiê” para denotar a vida que sobre­

vive à morte. Em vez disso, ele identifica a alma com nossa natureza física (ps^chí-

Icon), que se sujeita à lei do pecado e da morte (ICo 15:44). Para assegurar que

seus conversos gentios entendiam que nada há de imortal na natureza humana

por si mesma, Paulo empregou o termo “espírko-pnettnuT para descrever a nova

vida em Cristo, a qual o crente recebe integralmente como um dom do Espírito de

Deus tanto agora quanto na ressurreição.

Im ortalidade o u R essurreição?

O “espírito ״pneuma'\ como a alma, não é um componente independente,

espiritual da natureza humana que atua à parte do corpo, mas o princípio de vida

que anima o corpo físico e regenera a pessoa inteira. Descobrimos que o sentido e

função do Espírito são expandidos com a vinda de Cristo, que é identificado com

o Espírito na obra da salvação. O significado do espírito-pneuma como princípio

de vida é ampliado para incluir o principio de nova vida de regeneração moral

tomado possível mediante a redenção de Cristo.

O Espírito sustém tanto os aspectos físicos quanto morais da vida. A transfor­

mação moral realizada pelo Espírito Santo é descrita mais plenamente no Novo Tes­

tamento do que no Antigo Testamento. João e Paulo descrevem este processo com

duas metáforas diferentes, contudo complementares: renascimento e nova criação.

O Espírito-pneutna é a palavra mais importante do vocabulário de Paulo so­

bre este tópico, porque serve para demonstrar que a salvação é exclusivamente

um dom divino de graça mediado pelo “Espírito de vida em Cristo Jesus” (Rm

8:2), e não uma posse natural de uma alma imortal. Em parte alguma o Novo Tes­

tamento identifica o Espírito transmissor de vida com uma alma imaterial, imortal

capaz de desligar-se do corpo,

A função do Espírito não é suster uma alma espiritual, imortal, mas apoiar

tanto nossa vida física quanto espiritual. Tanto a criação quanto a recriação, o

nascimento e o renascimento, são atos do Espírito porque Jesus explicou: “o Es­

pírito é o que vivifica” (Jo 6:63). O espírito, à semelhança da alma, descreve, não

uma entidade separada da natureza humana, mas a pessoa integral como sustida e

transformada pelo Espírito de Deus,

O corpo no Novo Testamento denota a pessoa inteira, tanto literalmente, na

realidade concreta da existência humana, quanto figurativamente, na submissão

da pessoa à influência do pecado ou ao poder do Espírito Santo. O sentido do

corpo humano no Novo Testamento é reforçado pela encarnação de Cristo num

corpo humano e por sua ressurreição num corpo glorificado (fo 20:27).

O corpo tem significação etema no propósito criativo e redentor de Deus. A

redenção não significa a remoção da alma do corpo, mas a renovação do corpo como

a pessoa integral nesta vida presente, e a ressurreição do corpo como a pessoa integral

no mundo por vir. “O corpo não é o túmulo para a alma, mas um templo do Espírito

Santo, À parte do corpo, o homem não é completo”.74 Assim, mesmo na nova terra,

o corpo será parte essencial da existência humana j^rque os remidos existirão, não

como almas desincorporadas, mas como pessoas ressuscitadas em corpo.

O coração no Novo Testamento representa a vida interior integral de uma

pessoa. Denota, a exemplo do Espírito, as funções emocionais, intelectuais e espi­

rituais de alguém. O fato de que tais funções são igualmente atribuíveis ao coração

e ao espírito revela que o Novo Testamento, à semelhança do Antigo, considera

a natureza humana como uma unidade indissolúvel, não como uma composição

de diferentes “peças”.

A VISÃO DA NATUREZA DO HOMEM NO NOVO TESTAMENTO

,

Resumindo nossa pesquisa da perspectiva da natureza humana tanto no Anti­

go quanto no Novo Testamento, podemos dizer que a Bíblia é coerente ao ensinar

que a natureza humana é uma unidade indissolúvel, onde o corpo, alma e espírito

representam diferentes aspectos da mesma pessoa, e não diferentes substâncias ou

entidades atuando independentemente. Esta perspectiva holística humana remove

a base para a crença na sobrevivência da alma por ocasião da morte do corpo.

O ponto de vista holístico da natureza humana que encontramos na Bíblia

levanta muitas indagações importantes: o que acontece quando uma pessoa mor׳

re? Acaso a pessoa completa, corpo, alma, e espírito, perece por ocasião da morte

de modo que nada sobrevive? Se assím é, por que a Bíblia fala da ressurreição dos

mortos? Qual é o estado dos mortos entre a morte e a ressurreição, um período

geralmente conhecido como estado intermediário? Qual é a natureza do corpo

ressurreto? Será semelhante ou diferente do corpo presente? Estas são algumas das

perguntas que devemos responder nos capítulos que se seguem.

R e f e r ê n c ia s ־

1 Uma pesquisa bastante abrangente da literatura intertestamentária que trata da natureza e des׳

tino humanos acha׳ se em H. C. C. Ca vai in, I.ife after Death: Pauls Argument for the Resurrec-

don of the Dead in Í Corinthians; Pan J: An inquiry into the Jewish Background {Lund: Holland

1974). O utro estudo erudito é o de George Nickelsburg jr. em Resurrection, Immortality, anã

Eternal Life in Inter^tesiamentary Judaism (Cambridge, 1972).

1 Baruch 30, citado de R. H. Charles, The Apocryphaand Pseudepigrapha of the Old Testament in En-

glish with Introductory and Critical Explanatory Notes to the Several Books (Oxford, 1913), 498.

I Comentando este texto, R. H. Charles escreveu: “Esta imortalidade condicional do homem

aparece também em 1 Enoque 69:1 1; Sabedoria 1:13, 14; 2 Enoque 30:16, 17; 4 Esdras 3:7”

(Ibid., 477).

4 Ibid., 49. De acordo com R. H, Charles, “Este é o exempla atestado mais antigo desta expecta׳

tiva nos últimos dois séculos a.C.” (Ibid., 10).

5 Ibid, 538.

6 Ver 4 Macabeus 10:15; 13:17; 18:18; 18:23.

7 Ver 4 Macabeus 9:8,32; 10:11,15, 12:19; 13:15.

SR Wheeler Robinson, The Christian Doctrine o/M an (Edimburgo, 1952), 74.

9 Basil F. C. Atkinson, Life and Immortality (Taunton, Inglaterra, S. D.), 12.

10John A. T Robinson, The Body: A Study of Pauline Theology (Londres, 1966), 23.

II Edward Schweizer, "Psyche”, Theological Dictionary of the New Testament, ed., Gerhard Friedri­

ch, (Grand Rapids, 1974), vol. 9, 640.

12 O dado numérico é fornecido por Basil E C. Atkinson (referência 9), 14·

13 Edward Schweizer (referência 11), 644- (Ver também pág. 653).

14 Robert A. Morey, Death and the Afterlife (Mineápolis, 1984), 152,

15 Oscar Cullmann, “Immortality of the Soul or Resurrection of the Dead?” in Immortality and

Resurrection. Death in the Western World: Two Conflicting Currents of Thought, ed. Krister Sten-

dahl (Nova York, 1968), 36-37.

Imortalidade ou R essurreição?

16 Edward William Fudge, The Fire That Consumes (Houston, 1989), 173.

17Ibid., 177·

18 Edward Schweizer (referência 11), 646.

19 O dado numérico é fornecido para Edward Sehweizer (referência 11), 648, n. 188.

20 Este ponro de vista é expresso por Edward Schweizer (referência 11), 650. Semelhantemente,

Tony Hoff observa que ״Paulo nunca emprega psyche para a vida que sobrevive à morte [por­

que] ele estava ciente da possibilidade dessa exata distorção durante esse tempo. Ele sabia que

a presença de uma tradição platônica iria confundir particularmente os conversos gentílicos”

(“NephesJi and the Fulfillment It Receives as Psyche” in Toward a Biblical View of Marv Some

Readings, ed. Arnold H. De Graff e James H. Olthuis [Toronto, 1978], 114).

21 John Calvin, Institutes of the Christian Religion, trad. F. L. Battles (Filadélfia, 1960), vol. 1,

192.

22 Ibidem.

23 H. W heeler Robinson (referência 8), 122.

24 Catechism of the Catholic Church (Roma, 1994) > 93-94.

Ibid., 93.

:<1 Edward Schweizer (referência 11), 651.

27 W. W hite, “Spirit", The Zondervan Pictorial Encyclopedia of the Bible, ed, Merrill C. Tenney

(Grand Rapids, 1978), vol. 5, 505.

28 David W. Stacey, The Pauline, View of Man (Londres, 1956), 135

.Claude Tresmontant, A Study of Hebrew Thought (Nova York, 1960), 107 ״2

20 Henry Barclay Swete, The Hob Spirit in the New 1 estennent (Londres, 1910), 342.

31 Wheeler Robinson (referência 8), 109.

32 Ver por exemplo, Robert A. Morey (referência 14), 62; W. Morgan, The Religion and Theology of

Paw! (Nova York, 1917), 17s$. Uma apresentação clássica da interpretação dualística de carne

e Espírito se encontra em O. Pfleiderer, Primitive Christianity (Nova York, 1906), v o l 1 ,280ss.

Ver também a dissertação de Mary E. W hite, “The Greek and Roman Contribution”, in The

Heritage of Western Culture, ed. R. C. Chalmers (Toronto, 1952), 19-21. Ela argumenta que o

contraste entre carne e espírito deriva do dualismo grego e “tem resultado em muitos séculos

de mortificação da carne antes que o equilíbrio seja restaurado” (21),

;i D. E. H. Whiteley, The Theology of St, Paul (Grand Rapids, 1964), 39.

34 Charles Davis, “The Resurrection of the Body”, Theology Digest (1960), 100.

35 George Eldon Ladd, A Theology of the New Testament (Grand Rapids, 1974), 472.

36 Oscar Cullmann (referenda 15), 25-26.

37 Pata uma iluminadora discussão sobre o entendimento do dualismo de Paulo, ver Ronald L. Hall,

“Dualism and Christianity. A Reconsideration", Center journal (outubro de 1982), 43-55.

36 H. W heeler Robinson (referência 8), 117.

39 D. R. G. Owen, Body and Soul (Filadélfia, 1956), 17 h

40 Ronald Hall (referência 37), 50.

41 D. R. G. Owen (referência 39), 174-

42 Ibid., 174-175,

45 Rudolf Bultmann, Theology o f the New Testament (Nova York, 1951), 194.

Karl Barth, Church Dogmatics (Edimburgo, 1960), v־14 o l 3, parte 2, 436.

43 Para uma pesquisa abrangente de líderes eclesiásticos e eruditos que ao longo da história cristã

têm mantido a visão holística da natureza humana e assim a imortalidade condicional, ver os

monumentais dois volumes de LeRoy Edwin Froom, The Conditiomlist Faith of Our Fathers;

The Conflict of the Ages Over the Nature and Destiny of Man (Washington, D. C., 1965).

46 William Temple, Christian Faith and Life (Londres, 1954), 81.

A visão da natureza do homem no N ovo T estamento

47 William Temple, Man, Nature and Cod (Londres, 1953), 472.

48 Oscar Cullmann (referência 36), 28׳

49 Ibid., 47.

50 Ibidem.

51 Martin J. Heinecken, Basic Christian Teachings (Filadélfia, 1949), 37, 133.

Basil F. C. Atkinson, The Pocket Commentary of the Bible (Londres, 1954), Part 1, 32.

s ■ Claude Tremontant, St. Paul and die Mastery of Christ (Nova York, 1957), 132-133. Os itálicos

foram acrescentados. Numa linha de pensamento semelhante, Y. B. Tremei, erudito dominicano

francês, faz uma notável admissão: “O Novo Testamento obviamente não concebe a vida hu­

mana após a morte filosoficamente ou em termos da imortalidade natural da alma. Os autores

sagrados não pensam na vida por vir como o termo de um processo natural. Pelo contrário, para

eles é sempre o resultado de salvação e redenção; depende da vontade de Deus e da vitória em

Cristo+' (',Man Between Death and Resurrection," Theology Digest [outono de 1957], 151).

74 Dom Wulstan Mork, The Biblical Meaning of Man (Milwaukee, W l, 1967), x.

” Ibid., 49.

46 Reinhold Niebuhr, The Nature arui Destiny’ of Man (Nova York, 1964), 295. Itálicos acrescen­

tados.

57 T A. Kantonen, The Chnstiart Hope (Filadélfia, 1 9 5 4 )2 8 .־

w Derwyn R. G. Owen, Body and Sou/: A Study of the Christian View of Man (Filadélfia, 1956), 27·

w Ibid., 29.

60 Ibid., 98.

61 Emil Brunner, Eternal Hope (Filadélfia, 1954), 106. Itálicos acrescentados.

t2 Ibid., 101.

Ibidem.

64 Stephen H. Travis, I Believe in the Second Coming of Jesus (Grand Rapids, 1982), 198.

Ibid,, 163.

6fl Bruce R. Reichenbach, is Man the Phoenix? A Study of immortality (Grand Rapids, 1978), 54.

,

espirituais da alma quanto as

necessidades físicas do corpo.

O holismo bíblico pressupõe uma visão cósmica da redenção que abrange o

corpo e a alma, o mundo material e espiritual, este mundo e o mundo por vir. Não

contempla um paraíso etéreo habitado por almas glorificadas, mas este planeta

restaurado à sua perfeição original e habitado por pessoas reais que se empenha­

rão em vida e atividades reais. E minha fervorosa esperança que este livro, fruto de

muitos meses de dedicada pesquisa, aumente a apreciação de muitos cristãos pelo

glorioso plano de Deus para nossa vida presente e destino futuro.

R e f e r ê n c ia .v.-: ...·:··'·:··

1Ver Tabela 2.1 “Religious Belief, Europe and the USA", in Tony Walter, The Eclipse o f Etemity

(Londres, 1996), 32.

CAPITULO 1

O DEBATE SOBRE A NATUREZA E O

DESTINO HUMANOS

O que os cristãos creem a respeito da constituição de sua natureza humana

determina em grande medida o que creem a respeito de seu destino final. O s que

crêem que sua natureza é dualística, ou seja, que consiste de um corpo material

e mortal e uma alma espiritual· imortal» geralmente visualizam um destino no

qual suas almas imortais sobreviverão à morte de seus corpos e passarão à eter-

nidade, seja na glória paradisíaca ou no torm ento infernal. Para alguns» com o

os católicos e outros, existe ainda a possibilidade de que almas que podem obter

perdão sejam purificadas no purgatório antes de subirem ao paraíso.

Por outro lado, os que acreditam que sua natureza é holística [ou integral],

consistindo de um todo indivisível onde corpo, alma e espírito são som ente

características da mesma pessoa, geralmente imaginam um destino no qual sua

pessoa mortal integral será ressuscitada, seja para a vida eterna ou morte eterna.

Os dois diferentes destinos imaginados por uma perspectiva dualística ou holís­

tica da natureza humana poderiam ser caracterizados, com o sugerido pelo título

do livro, com o imortalidade da alma ou ressurreição dos monos.

O ponto de vista bíblico da natureza e destino humanos tem atraído consi­

derável atenção escolástica em anos recentes. Eruditos dè vanguarda de diferentes

persuasões religiosas têm abordado esta questão em artigos e livros. Uma pesquisa

de estudos produzidos durante os últimos cinqüenta anos mais ou menos revela que

o ponto de vista tradicional da natureza humana passou a sofrer intenso ataque.

Eruditos parecem superar-se uns aos outros no desafio ao dualismo tradicional

e na afirmação do holism o bíblico. A o examinar-se a literatura erudita nesse׳

campo fica-se quase com a impressão de que o cristianismo está saindo de um

estupor, subitamente passando a descobrir cjue por tempo demasiado conservou

um entendimento da natureza humana derivado do dualismo platônico, antes

que do holísmo bíblico*

O b je t iv o s d este l iv r o ־

Este livro foi construído sobre pesquisas realizadas por numerosos eruditos

em anos recentès e se empenha em demonstrar como o ponto de vista holístico

da natureza humana determina gr.andemente nosso entendimento de nós pró׳

prios, deste mundo atual, da redenção e de nosso destino final.

O objetivo deste estudo é duplo. O primeiro é estabelecer a perspectiva

bíblica da natureza humana. Aprenderemos que a Bíblia vê a natureza humana

comò uma unidade·indivisível. Essa verdade tem sido acatada em anos recentes

por muitos eruditos de todas as confissões. Na Bíblia não há divisão da pessoa

em corpo e alma, ou corpo, alma e espírito. Todos esses são componentes ou ca­

racterísticas do mesmo indivíduo. A dicotomiade corpo e alma deriva do plato­

nismo e não da revelação bíblica. O ponto de vista bíblico da natureza humana

é holístico e monísrico, não dualístico. À perspectiva platônica do corpo como

prisão da alma é estranha à Bíblia e tem causado grande dano à espiritualidade,

soteriologia e escatologia cristãs.

O segundo objetivo deste livro é examinar como o ponto de vista bíblico

da natureza humana tem que ver com nossa vida atual e o seu destino final.

Há uma tendência em estudos eruditos de examinar isoladamente, seja o pon­

to de vista bíblico da natureza humana (antropologia bíblica) ou o do destino

humano (escatologia bíblica). Raramente se fazem tentativas para estudar a

correlação entre ambas. Contudo, aá duas não podem ser estudadas isolada­

mente porque o ponto de vista bíblico da natureza humana determina a visão

que se tem dò destino humano.

Temos uma tendência e habilidade para dividir, analisar, e isolar, mas com

freqüência falhamos em sintetizar e mostrar como as várias partes contribuem

para um quadro mais amplo. Neste estudo tento demonstrar como a posição

holística bíblica da natureza humana pressupõè a visão bíblica realística do des­

tino humano na qual corpo e alma, carne e espírito, os componentes materiais

e espirituais de nossa natureza e de nosso mundo são todos parte da criação,

redenção e restauração final por Deus.

·PROCEDIMENTO'.

O procedimento neste livro é o seguinte; primeiro estudamos a perspectiva

bíblica da natureza humana examinando.algumas das palavras-chave usadas para

íMQRTALIDADE OU RESSURREIÇÃO?

O DEBATE SOBRE A NATUREZA E O DESTINO HUMANOS

“homem״ tanto no Antigo quanto no Novo Testamento. Conquanto à primeira

vista isso pareça uma análise/devemos conservar em mente ao longo de nosso

estudo que sob cada termo estamos considerando a pessoa integral: o indivíduo

como alma, o indivíduo como corpo e o indivíduo como espírito. Assim, con­

quanto consideremos os vários aspectos da natureza humana, estamos sempre

vendo a pessoa como um todo. Devemos também ter em mente que na Bíblia,

como acentua J. A. T. Robinson, “qualquer parte pode apresentar-se em qualquer

momento pelo todo1.״

O segundo passo do procedimento é examinar o ponto de vista bíblico do

destino humano à luz de seu ensino sobre a natureza humana. O estudo reveía

que o ponto de vista holístico-bíblico da natureza humana, em que corpo e alma

são uma unidade indissolúvel, pressupõe também uma perspectiva bíblica do des­

tino humano, segundo a qual a pessoa integral, corpo e alma, é ressuscitada para

receber vida eterna ou morte eterna. Além disso, os que recebem a vida eterna

passarão a eternidade não em um paraíso etéreo, espiritual, mas neste planeta

Terra material, restaurado por Deus à sua perfeição original

O estudo do destino humano requer uma análise das errôneas concepções

populares concernentes ao estado intermediário entre a morte e a ressurreição, o

paraíso e o inferno. Cada um desses tópicos é examinado num capítulo separado à

luz do ensino bíblico. Atenção especial é dada ao estudo do inferno no capítulo 6,

em vista da difundida rejeição do ponto de vista tradicional do inferno como tor­

mento consciente. A meta final deste estudo não é meramente expor as falácias

dos entendimentos prevalecentes, mas basicamente afirmar a perspectiva bíblica

holística e realística da natureza e destino humanos.

Este capítulo introdutório é designado a propiciar uma visão geral dos dois

pontos de vista básicos da natureza humana e seu impacto sobre a fé e prática

cristãs. Seu propósito é ajudar o leitor a entender a importância das questões abor­

dadas nesta obra. Perceberemos que o que os cristãos crêem a respeito da consti­

tuição de sua natureza humana em grande escala determina sua compreensão de

si próprios, deste mundo presente, da redenção e do destino final

Dois pontos de vista básicos da natureza e desuno humanos

Há duas visões cristãs básicas do destino humano que se originam de dois

pontos de vista fundamentalmente diversos da natureza humana. A primeira tem

por base a crença na imortalidade da alma, e a segunda a crença na ressurreição

do corpo. Em seu erudito estudo The Nature and Destiny of Man (A natureza e

destino do homem), Reinhold Niebuhr sugere que as crenças cristas fundamental-

Im o rtalid ad e o u R essu r reiçã o ?

mente diferentes a respeito da natureza e destino humanos derivam de dois pon­

tos de vista

,

h7 Donald G. Bloesch, Essentials of Evangelical Theology׳ (São Francisco, 1979), vol 2, 188.

65 A nthony Hoekema, The Bible and the Future (Grand Raprds, 1979), 90.

69 F. F. Bruce, “Paul on Immortality”, Scottish Journal of Theology 24, 4 (novembro de 1971), 469.

70 Murray Harris, “Resurrection and Immortality: Eight Theses", Themelios 1, no. 2 (primavera

de 1976), 53

71 Ibidem.

72 Ralph Walter Doermann, “Sheol in the Old Testament", (Dissertação doutoral, Duke Univetv.

sin,205 ,(1961 ,׳.

A H. Dooyeweerd, “Kuypers Wetenschapsleer,” Philosophic! Reformata, IV, 199-201, como citado

por G. C. Berkouwer, Man: The Image of God (Grand Rapids, 1972), 255-256.

74, A nthony A. Hoekema, The Bible and the Future (Grand Rapids, 1979), 91.

CAPÍTULO 4

A VISÃO BÍBLICA DA MORTE

Ao longo da história humana, as pessoas têm-se recusado a aceitar a finalização

que a morte traz para a vida. A morte acarreta uma inaceitável e súbita interrupção

de trabalho, planos e relacionamentos de uma pessoa. Embora figure na inscrição

de muitas pedras tumulares de cemitérios a frase ,'descansa em paz”, a verdade é que

a maioria das pessoas não dá boa acolhida ao pacífico repouso da sepultura. Preferi­

riam estar vivas e produzindo. Assim, não é de surpreender que o tema da morte e

do além-túmulo sempre tenha sido uma questão de intensa preocupação e especu­

lação. Afinal de contas, o índice de mortalidade é ainda de um por pessoa: cada um

de nós, no tempo determinado, enfrentará a sombria realidade da morte.

Hoje vivemos numa cultura que nega a morte. As pessoas vivem como se

a morte não existisse. Médicos e pessoas que trabalham em hospitais geralmente

pensam que a morte é algo que não devia acontecer. A despeito de quão mise­

ráveis as pessoas se sintam, geralmente respondem ao cumprimento ״como vai?”

com um sorriso artificial e dizem: “Estou bem!”. Quando não mais conseguimos

manter a fachada, começamos a nos indagar: “O que ocorrerá comigo agora?”

Mesmo no final da vida, tendemos a negar a realidade da morte embalsaman­

do os mortos e empregando cosméticos para restaurar o cadáver e dar-íhe uma apa­

rência natural e saudável Vestimos os mortos em temos e belas vestes como se

estivessem indo para uma festa, em lugar de ser um retomo ao pó da terra.

Em anos recentes, cursos sobre a morte e o morrer têm sido introduzidos em

muitas faculdades e escolas de nível médio. Algumas faculdades e universidades

também oferecem cursos sobre o oculeo e outros fenômenos, tais como experiências

de quase-morte que, segundo se alega, oferecem evidência científica da vida após a

Imortalidade ou Ressurreição?

morte, Todas essas tendências sugerem que há hoje renovado interesse em desfazer

os mistérios da morte e reassegurar-se de alguma forma de vida após a morte.

O bjetivos deste capítulo

Este capítulo persegue dois objetivos principais. Primeiro, passaremos breve­

mente em revista um histórico da crença na sobrevivência da alma, dando espe­

cial enfoque aos recentes acontecimentos que têm revivido a noção de existência

consciente após a morte. Veremos que o espiritualismo, o estudo de experiências

de quase-morte, e a canalização (promovidos pelo movimento Nova Era, espe­

cialmente mediante a influência da atriz Shirley MacLaine) têm contribuído pára

promover o ponto de vista de que a morte não é a cessação da vida, mas uma

transição para uma forma diferente de existência*

Em segundo lugar, examinaremos o entendimento bíblico da natureza da

morte. Acaso a Bíblia ensina que a morte é a separação da alma imortal do corpo

mortal? Ou, na verdade, a Bíblia ensina que a morte é o término da vida para a

pessoa completa, corpo e alma? Noutras palavras, de acordo com a Bíblia, a morte

é a cessação da vida para a pessoa inteira, ou a transição a uma nova forma de vida

para o componente imortal de nosso ser?

Para encontrar respostas a essas indagações, tomaremos as Escrituras a fim

de examinar todas as passagens pertinentes. Temos seguido esse procedimento

nos capítulos anteriores quando estudamos o ponto de vista bíblico da natureza

humana. Deve-se sempre permitir às Escrituras interpretarem as Escrituras. Pas-'

Isagens que apresentam certos problemas devem ser interpretadas à luz daquelas{

ique são claras. Seguindo tal princípio, conhecido como analogia de fé. podemos i

resolver as aparentes contradições que encontramos na Bíblia. J

Esb o ç o h istó r ic o d a c r e n ç a n a so br ev iv ên c ia d a a im a

“É CERTO QUE NÃO MORREREIS”

Como preparação do cenário para a visão bíblica da morte e da condição

dos mortos no capítulo que se segue, pode ser de auxílio considerar brevemente a

história da crença da sobrevivência da alma após a morte. A mentira da serpente

“é certo que não morrereis” (Gn 3:4) tem sobrevivido ao longo da história huma­

na até a nossa época. A crença em alguma forma de vida após a morte tem sido

mantida praticamente por todas as culturas. A necessidade de segurança e certeza

em foce do desafio que a morte representa tem levado pessoas em toda cultura a

formular crenças em alguma forma de vida após a morte.

A VISÃO BÍBLICA DA MORTE

Na história do cristianismo, a morte tem sido definida geralmente como a se­

paração da alma imortal do corpo mortal. Esta crença na sobrevivência da alma por

ocasião da morte tem sido expressa de várias maneiras e dado origem a doutrinas

tais como a oração pelos mortos» indulgências, purgatório, intercessão dos santos, o

tormento eterno do inferno, etc. Desde o tempo de Agostinho (354-430 d.C.), os

cristãos têm sido ensinados que entre a morte e a ressurreição há um período conhe­

cido como “estado intermediário” - as almas estão ou a desfrutar as bem-aventuran­

ças do paraíso, ou sofrendo a aflição do purgatório ou do inferno. Pressupõe-se que

a condição desíncorporada da alma continua até a ressurreição do corpo, que trará

a complementação da salvação dos santos e a perdição dos ímpios.

Durante a Idade Média, o temor da morte e as especulações a respeito do

que acontece com a alma após a morte dominavam a imaginação das pessoas e

inspiraram obras literárias e teológicas. A Divina Comédia de Dante é apenas um

pequeno fragmento da imensa literatura e obras artísticas que descrevem vivida­

mente os tormentos das almas dos pecadores no purgatório ou inferno, e a felici­

dade das almas dos santos no paraíso.

A crença da sobrevivência dá alma tem contribuído para o desenvolvimento

da doutrina do purgatório, um lugar onde as almas dos mortos são purificadas pelo

sofrimento da punição temporal de seus pecados antes de ascenderem ao paraíso.

Essa doutrina vastamente admitida sobrecarregou os vivos com tensão emocional

e financeira. Como Ray Anderson comenta, “não só se tinha que ganhar o sufi­

ciente para viver, mas ainda pagar a ‘hipoteca espiritual* pelos mortos”.1

̂A REJEIÇÃO DO PURGATÓRIO PELOS REFORMADORES ^ P ü EU A T C £· }

A Reforma Protestante começou em grande medida como uma reação con­

tra as crenças supersticiosas medievais a respeito da pós-vida no purgatório. Os

reformadores rejeitaram como antíbíblica e despropositada a prática de comprar e

vender indulgências para reduzir a permanência no purgatório das almas dos pa­

rentes que partiram. Não obstante, continuaram a crer na existência consciente

das almas, fosse no paraíso ou no inferno, durante o estado intermediário. Calvino

expressou essa crença de modo mais contundente do que Lutero.2 Em seu tratado

Psychopannychia^} que redigiu contra os anabatistas que ensinavam que as almas

simplesmente dormem entre a morte e a ressurreição, Calvino argumentava que

durante o estado intermediário as almas dos crentes desfrutam as bem-aventu­

ranças celestiais, enquanto as dos descrentes sofrem as torturas do inferno. Por

ocasião da ressurreição, o corpo é reunido à alma, assim intensificando o prazer

paradísico ou as angústias infernais. Desde esse tempo, esta doutrina do estado

intermediário tem sido aceita pela maioria das igrejas protestantes e se

,

reflete em

várias confissões de fé.4

Im ortalidade o u R essurreição?

A Confissão de Westminster (1646), considerada a declaração definitiva das

crenças presbiterianas no mundo de língua inglesa, afirma:

O corpo dos homens após a morte retoma ao pó e experimenta a corrupção; mas suas

almas (que nem morrem nem dormem), tendo uma subsistência imortal, imediata-

mente retomam a Deus que as deu. As almas dos justos, sendo então tomadas perfei­

tas em santidade, são recebidas nos mais altos Céus, onde contemplam a face de Deus

em lu2 e glória, aguardando a plena redenção de seus corpos; e as almas dos ímpios são

lançadas no inferno, onde jazem em tormento e trevas completas, reservadas para o

juízo do grande dia.5

A confissão prossegue declarando ser antibíblica a crença no purgatório.

Ao rejeitar como antíbíblicas as superstições populares concernentes ao so­

frimento das almas no purgatório, os reformadores prepararam o caminho para

um reexame da natureza humana pelos filósofos racionalistas do Ilumínismo. Es­

ses filósofos não abandonaram de imediato a noção da imortalidade da alma. O

primeiro ataque significativo à crença na sobrevivência da vida após a morte veio

de David Hume (1711-1776 d.C.), um filósofo e historiador inglês. Ele questionou

a imortalidade da alma porque cria que todo conhecimento procede das percep-

ções sensoriais do corpo.6 Uma vez que a morte do corpo assinala o fim de toda

percepção sensoríal, é impossível que a alma tenha existência consciente após a

morte do corpo.

O declínio da crença na pós-vida atingiu seu clímax em meados do século 18,

à medida que o ateísmo, ceticismo e racíonalismo se espalhavam pela França, In­

glaterra e América. A publicação de Origem das Espécies de Darwín (1859) infligiu

outro golpe ao sobrenaturalísmo, especialmente na idéia de imortalidade da alma,

Se a vida humana é produto de geração espontânea, então os seres humanos não

têm um espírito divino ou alma imortal neles. As teorias de Darwín desafiaram as

pessoas a procurarem evidência “científica״ para os fenômenos sobrenaturais tais

como a sobrevivência da alma.

O ESPIRITISMO E O REAVIVAMENTO DO INTERESSE NA ALMA

O interesse do público pela vida da alma após a morte passou por um reaviva-

mento com a publicação de The Corning Roce [A raca futurai (1860), por Bulmer Lvt-

ton. Esse livro influenciou bom número de escritores que contribuíram em tomar prá­

ticas ocultistas algo da moda na sociedade britânica. Na América, o interesse público

na comunicação com as almas dos mortos foi despertado pelas sessões mantidas pelas

irmãs Fox? que viviam em Hydesdale, Nova York. Em 31 de março de 1848, conduzi­

ram uma sessão em que o suposto espírito de um homem assassinado, que a si mesmo

se chamava de William Duesler, as informava de que se cavassem no porão, encontra­

riam o seu cadáver. Isso se demonstrou verdadeiro. Um corpo foi encontrado.

A VISÃO BÍBLICA DA MORTE

Uma vez que os espíritos dos mortos na casa das irmãs Fox se comunicavam

por meio de batidas sobre a mesa, sessões de ״batidas sobre a mesa״ tornaram-se

populares por toda a América e Inglaterra como uma maneira de comunicar-se com

os espíritos dos falecidos. Esse fenômeno atraiu a atenção de numerosas pessoas

de cultura que, em 1882, organizaram a Sociedade para Pesquisa Psíquica. Henry

Sedgwich, notável filósofo de Cambridge, tomou-se a instrumentalidade para atrair

para a sociedade as pessoas mais influentes da época, inclusive William Gladstone

(ex-primeiro ministro britânico) e Arthur Balfour (futuro primeiro-ministro).

Um importante resultado do movimento da SPP é representado pela obra de

Joseph Banks Rhine, que, em ,1930, começou a pesquisar a vida consciente após a

morte. Rhine tinha formação de biólogo pela Universidade de Chicago e, mais tarde,

envolveu-se com a SPP enquanto lecionava na Universidade Harvard. Ele redefiniu

e renomeou os temas que a SPP havia pesquisado por anos, cunhando termos tais

como “percepção extra-sensorial״ (PES), “psicologia paranormal״ ou “parapsicolo­

gia״. Isso tinha o objetivo de dar credibilidade científica ao estudo do além-túmulo.

Posteriormente, Rhine, juntamente com William McDougal que serviu como pre­

sidente tanto para os grupos britânicos como americano da SPP - estabeleceu um

Departamento para Estudos psíquicos na Universidade Duke. Os russos conduziram

suas próprias experiências psíquicas. Suas descobertas foram publicadas em forma

popularizada em Psychic Discoveries Behind the Iron Curtain [Descobertas psíquicas

atrás da cortina de ferro], por Sheila Ostrander e Lynn Schroeder (1970).

Pelo final dos anos 1960, o falecido bispo episcopal James A. Pike concedeu

nova e ampla atenção à idéia de comunicação com os espíritos dos mortos, comu-

nicando-se numa base regular com o filho falecido. Hoje nossa sociedade encon­

tra-se invadida por médiuns e paranormais que fazem publicidade de seus serviços

por todo o país mediante a TV, revistas, rádios e jornais. Em seu livro At The Hour

of Death (Na hora da morte], K. Osis e and E. Haraldson escrevem:

Experiências espontâneas de contato com os mortos são surpreendentemente bas­

tante difundidas. Numa pesquisa nacional de opinião... 27% da população america­

na declarou ter tido encontros com parentes mortos,., viúvas e viúvos... relataram

encontros com seus cônjuges falecidos com o dobro da frequência - 51%!7

A comunicação com os espíritos dos mortos não é um fenômeno apenas

americano. Pesquisas conduzidas em outros países revelam um percentual igual-

mente elevado de pessoas que contratam os serviços de médiuns para se comuni­

carem com o espírito de seus amados falecidos.8

Em sua obra Immortality ôr Extinction? [Imortalidade ou extinção/], Paul e

Linda Badham, ambos professores da Universidade St. David, no País de Gales,

dedicaram um capítulo à “Evidência de Pesquisa Psíquica” para apoiar sua crença

na vida consciente após a morte. Eles escreveram:

Im o r ta lid a d e o u R essu rreiçã o?

Algumas pessoas crêem que o contato direto com os mortos pode ser conseguido por

meio de médiuns que, alegasse, têm a habilidade, enquanto num estado de transe, de

transmitir mensagens entre os mortos e os vivos. A crença na realidade de tais comu­

nicações é o princípio vital de igrejas espiritualistas e os enlutados que consultam os

médiuns muitas vezes se impressionam com as descrições dos queridos mortos feitas

pelos médiuns. Ocasionalmente, um médium pode também demonstrar conhecimen­

to da vida pregressa do falecido.9

Os Badhams reconhecem que em muitos casos os médiuns são charlatães

que baseiam suas comunicações em “arguta observação e pressuposições inteli­

gentes”.10 Contudo, acreditam que há “evidência genuína para a sobrevivência

da personalidade humana sobre a morte corporal”1'. Eles apóiam sua crenÇa re­

latando casos de vários membros da Sociedade para Pesquisa Psíquica que, após

a morte, começaram a enviar mensagens aos membros vivos do SPP para provar

que haviam sobrevivido à morte. 12

Não é nossa intenção debater a habilidade de alguns médiuns receberem

e transmitirem mensagens dos espíritos. A questão é se tais mensagens são de

espírito dos mortos ou dos espírito^satánjcos» Faremos referência a essa ques­

tão no próximo estudo, em conexão com uma análise da consulta do rei Saul

à feiticeira de Endor (ISm 28:7-25). Nesse ponto, é suficiente observar que o

espiritismo ainda desempenha um destacado papel em fomentar a crença da

sobrevivência da alma após a morte. As pessoas que mediante médiuns têm

sido capazes de se comunicar com supostos espíritos de seus amados falecidos

encontram razões para crer na imortalidade da alma.

Experiências de quase-morte

Outro acontecimento significativo de nossa época, que tem contribuído para

promover a crença na sobrevivência da alma, é o estudo de “experiências de qua­

se-morte”. Tais estudos baseiam-se em relatos de pessoas que foram ressuscitadas

de um quase encontro com a morte, e de médicos e enfermeiras

,

que registraram

as experiências do leito de morte de alguns de seus pacientes.

As experiências relatadas por pessoas que tiveram um quase encontro com a

morte muitas vezes correm em paralelo com o que muitos crêem ser a vida dajjma--

QP^pãfaíso. Embora não haja dois relatos iguais, algumas das características comuns

são; a impressão de paz, a sensação de ser atraído rapidamente através de um espaço

sombrio de alguma espécie, flutuar numa condição de ausência de gravidade, corpo

espiritual, consciência de estar na presença de um ser espiritual, um encontro com

uma luz brilhante, muitas vezes identificada com Jesus Cristo ou um anjo, e uma

visão de uma cidade de luz.n Tais experiências são interpretadas como prova de que,

P-QT ocasião da morte, a alma deixa o corpo e vive numa condição desincorporada,

A VISÃO BÍBLICA DA MORTE

Os relatos de experiências de quase ׳morte não são novos. Podem ser en­

contrados na literatura clássica, tais como a História da Igreja e Povo da Inglaterra,

pgjp venerável Beda, o Livro Tibetano dos Mortos, por Sir Edward Burnett Tvlor,

e a República, de Platão.14 Na República, Platão oferece um impressionante relato

de uma experiência de quase ׳morte que ele emprega para substanciar a crença na

imortalidade da alma. Ele escreveu:

Er, filho de A rm ênio... foi m orto em batalha, e quando os cadáveres foram levados

no décim o dia foi enco n trad o in tac to , e, tendo sido levado para casa, no m om ento

de seu funeral, no décim o-segundo dia, ao estar sobre a pira, reviveu, e, após ter re ­

cobrado a vida relatou o que, disse ele, havia visto no m undo do além . Ele disse que

quando sua alm a deixou o corpo ele viajou com um a grande com panhia e chegaram

a um a região m isteriosa onde havia duas aberturas lado a lado na terra, e acim a... no

céu duas outras, e que juízes estavam assentados en tre ambas, e que após cada julga­

m ento eles indicavam aos v iajan tes que seguissem para a d ireita e para cim a pelo céu

com senhas a eles presas d ian te do juízo... e os injustos para tom arem o cam inho à

esquerda e para baixo, tam bém usando senhas sobre tu d o quan to lhes havia pesado

e que quando ele próprio se aproxim ava disseram -lhe que precisava ser m ensageiro

à hum anidade para con tar sobre esse ou tro m undo... C ontudo , com o e de que m odo

ele re to rnou ao corpo, disse que não sabia, mas sub itam en te recuperou a visão e viu-

se no alvorecer deitado sobre a pira funerária .1S

Piarão conclui sua história com este comentário revelador: “Assim o relato

foi conservado... E ele nos salvará se crermos nele... que a alma é imortal e que é

capaz de suportar todos os extremos de bem e mal”,16

Fica-se a imaginar que tipo de salvação a crença na imortalidade da alma

oferecerá a uma pessoa, A sobrevivência como uma alma ou espírito desíncorpo-

rado num mundo etéreo dificilmente se compara com a esperança bíblica da res­

surreição da pessoa integral para uma vida real sobre este planeta restaurado à sua

perfeição original A essa questão retornaremos no capítulo final, que examina a

visão bíblica do mundo vindouro.

Estudos de experiências de quase-morte

Em nossos dias, o estudo de experiências de quase-morte ganhou grande

impulso a partir de quando o psiquiatra americano Raymond A. Moody a ele se

lançou pioneíramente. Seus dois livros motivadores desse impulso, Life After Life

[Vida após a Vida, publicado em português em 1975] e Rejfíecnoíis on Life After Life

[Reflexões sobre a vida após a vida] (1977), geraram uma grande quantidade de

outros livros, artigos e debates focalizados sobre experiências extracorpóreas.17

Mais recentemente, toí publicada grande quantidade de livros e artigos referentes

a experiências de quase-morte, alistando dois mil e quinhentos títulos.18

I m o r t a l id a d e o u R e ss u r r e iç ã o ?

Moody estudou 150 pessoas que tiveram experiências de quase-morte e, em al­

guns casos, clinicamente mortas. A questão é como os dados devem ser interpretados.

O editor de Moody assegura que os relatos são “casos reais que revelam haver vida

após a morte19. 0 ­próprio Moody, contudo, é muito mais cauteloso. Ele explicitamen ״

te nega que tentou “construir uma prova de sobrevivência da morte corporal״ embora

considere os dados “altamente significativos״ para tal crença.20 Ele deixa em aberto a

possibilidade de conceber as experiências de quase-morte como evidências da imorta­

lidade ou meramente o resultado de eventos fisiológicos terminais,

Não é nossa intenção examinar o suposto valor comprobatório de expe­

riências de quase-morte para crer na sobrevivência da alma. Nossa autoridade

normativa para definir a natureza humana não são as experiências subjetivas de

quase-morte das p_essoasr mas a revelação objetiva que Deus nos propiciou em sua

Palavra (2Pe 1:19). Assim, somente três observações básicas sobre experiências de

quase-morte serão aqui consideradas;

Primeiro, há o problema de definir a morte. O editor de Lancet> revista dedi­

cada à pesquisa médica, assinala que

somente um deliberado emprego de definições obsoletas de morte pode capacitar

alguém a reivindicar que algum indivíduo, sob condições clínicas, retornou para

contarmos o que jas além da morte, pois, por definição de trabalho, periodicamente

120 atualizado, a morte está simplesmente além do ponto do qual alguém possa retornar

para nos dizer o que quer que seja.21

Semelhantemente, o professor Paul Kurts comenta:

Não temos evidência real de que os indivíduos [dos relatos de quase-morte] tenham

de fato morrido. Tal prova não é impossível de obter: rigor morjis é um sinal e morte

cerebral é outro. O que os relatos realmente descrevem é um “processo de morte, ou

experiência de quase-morte, não a própria morte22.״

Em segundo lugar, como Paul e Linda Badham observam, precisamos nos

lembrar de que

qualquer pessoa que esteja suspensa entre a vida e a morte deve estar sofrendo

profunda tensão física e psicológica. Um cérebro carente de oxigênio, drogado por

analgésicos alucinógenos, ou excitado por febre, dificilmente tende a funcionar

apropriadamente e quem sabe que visões não poderíam ser atribuídas por essas

condições de perturbação.25

Algumas pesquisas demonstraram a semelhança que existe entre experiên­

cias de quase-morte ç qs çfçitos causados por drogas psicodélicas.

Pesquisas modernas sobre a consciência têm revelado que essas semelhanças

podem ser reproduzidas por drogas em sessões psicodélicas. Essas experiências,

A VISÃO BÍBLICA DA MORTE

portanto, tendem a pertencer à gama de sessões psíquicas, que têm comprovado

não a vida após a morte, mas que a relação entre o “eu” consciente e o “eu" incor­

porado é mais complexo do que se imaginava anteriormente.24

Por fim, como se pode estabelecer que as experiências de quase-morte sejam

“experiências reais” e não o produto da própria mente dos pacientes? E por que

se dá que quase todos os relatos de experiências de quase-morte focalizam experi­

ências de felicidade e alcance do Céu, mas nenhum lampejo dos tormentos cha­

mejantes do inferno? E evidente que quando as pessoas estão morrendo, preferem

sonhar á respeito da glória celestial, e não do sofrimento do inferno. Todavia, mes­

mo as visões do Céu dependem grandemente da formação religiosa da pessoa,

Karlis Osis e Erlendur Haraldsson avaliaram os relatos de mais de 1.000 ex­

periências de quase-morte nos EUA e na índia. Descobriram que a visão dos pa­

cientes hindus era tipicamente indiana, enquanto a dos americanos era ocidental

e cristã. Por exemplo, uma mulher indiana de formação universitária teve a expe­

riência de ser conduzida ao Céu sobre uma vaca, enquanto um paciente america­

no que havia orado a São José encontrou o seu santo padroeiro na experiência.25

Tais relatos sobre experiências de quase-morte refletem as crenças pessoais dos

pacientes. Q que experimentaram no processo de. morrer quase certamente con­

diciona-se às suas crenças pessoais.

Devemos sempre

,

recordar que as experiências de quase-morte ou de leito de

morte são de indivíduos ainda vivos, ou cuja mente readquiriu consciência. Seja quaí

for sua experiência sob tais circunstâncias é parte de sua vida presente, não da vida

após a morte. A Bíblia traz um relatório de sete pessoas que foram levantadas dentre

os mortos (IRs 17:17-24; 2Rs 4:25-37; Lc 7:11-15; 8:41-56; lo 11:1-46; At 9:36-41;

20:9-11 ),,mas nenhuma delas teve uma experiência de pós-morte para compartilhar.

Lázaro, que foi trazido de volta à vida após estar clinicamente morto por

quatro dias, não trouxe qualquer relato de emocionantes experiências fora do

corpo. A razão para isso é simples: a morte, segundo a Bíblia, é a cessação da vida

da pessoa inteira, çorpo e alma. Não existe forma de vida consciente entre a morte

I e a ressurreição. Os mortos repousam inconscientemente em suassepulturas até

\tme Cristo os chame no glorioso dia de sua vinda,

M o v im e n t o N o v a E r a

A crença na vida consciente após a morte é popularizada hoje espedalmente

pelo movimento Nova Era.26 Não é fácil definir esse novo movimento popular

porque representa um complexo de organizações e indivíduos que compartilham

valores comuns e uma visão comum. Esses valores derivam do misticismo e ocul­

tismo orientais e uma cosmovísão panteísta segundo a qual todos compartilham

daquele que é Deus, Eles prevêem uma “nova era” vindoura de paz e iluminação

maciça, conhecida como “Era de Aquário".

Im ortalidade o u R essurreição '

Os adeptos da Nova Era podem divergir sobre quando ou como começa a

Nova Era, mas todos concordam que podem apressar a nova ordem envolven­

do-se na vida política, econômica, social e espiritual. De acordo com alguns

analistas sociais, o movimento Nova Era tornou-se uma destacada tendência

cultural de nosso tempo. Elliot Miller o define como wuma terceira proeminente

força social, competindo por domínio cultural com a religião judaico-cristã e o

humanismo secular27״.

Para os seguidores da Nova Era, a realidade última é um Deus panteístico

manifesto com consciência e força infinitas, impessoais. Os seres humanos são

parte da consciência divina e são separados de Deus somente em sua própria cons­

ciência. Mediante técnicas específicas, como meditação, canto, dança e privações

sensoriais, os adeptos da Nova Era buscam experimentar a unidade com Deus.

Assim, a salvação para os adeptos é igualada à auto-realização mediante técnicas

espirituais especiais.

A LOUCURA DA CANALIZAÇÃO

Um aspecto importante do movimento Nova Era é a alegação de comunica­

ção com inteligências humanas e extra-humanas que se foram. Este fenômeno é

chamado de “canalização”, mas tem corretamente sido chamado de “espiritismo

ao estilo da Nova Era”28. Miller acertadamente afirma que

o espiritismo desem penhou na história um papel im portante em virtualm ente todas

as formas de paganismo. O s que permitiram que espíritos empregassem seus corpos

dessa forma têm sido chamados por uma variedade de nomes, inclusive “vidente”,

“feiticeiro”, “curandeiro”, “oráculo”. Em nossa cultura, o termo comum tem sido

“médium”, mas em anos recentes d e tem sido abandonado em grande medida em

favor de “canal” ou “canalizador”, refletindo em parte, um desejo de romper com

estereótipos negativos que se têm associado com médiuns ao longo dos anos.29

Um “canalizador” é essencialmente uma pessoa que alega ser receptora dos

ensinos e sabedoria dos grandes espíritos do passado. O negócio de canalizar está

em expansão em todas as principais cidades americanas. Segundo o Los Angeles

Times, o número de conhecidos canalizadores profissionais aumentou de dois para

mais de mil numa década.50 Isso está obrigando os canalizadores a utilizarem psi­

cologia da Avenida Madison [N.T.: centro novaiorquino de publicidade de grande

prestígio internacional] para vender seus serviços.

Uma propaganda de Taryn Krive, um canalizador popular, dá boa idéia dos

serviços oferecidos:

M ediante Taryin, espíritos-guia trazem seus ensinos e mensagens. Eles responderão a

suas perguntas sobre esta vida ou outras vidas, e ajudarão você a identificar as lições

A VISÃO BÍBLICA DA MORTE

de sua vida e desbloquear seus mais elevados potenciais para viver e amar... C onheça

seus espíritos-guia, A prenda a relem brar suas vidas passadas e libertar a influên­

cia delas de seu presente. D esenvolva suas habilidades de canalização (canalização

consciente, escrita autom ática, canalização com transe ) .31

A pessoa que tem desempenhado um papel destacado na promoção do

movimento Nova Era, especialmente quanto à canalização, é a famosa atriz

Shirley MacLaine. Seus livros venderam mais de cinco milhões de exemplares,

A mini-série “Out on a Limb” [Suspenso em suspense (numa tradução livre)]

despertou interesse sem precedentes em canalização. MacLaine leva bastante

a sério o seu papel como principal evangelista da Nova Era, Seguindo-se à sua

mini-série para a TV, ela conduziu seminários de dois dias por toda a nação,

intitulados “Ligando-se com o Eu Superior”. Depois, empregou a receita dos se­

minários para estabelecer um centro espiritual de 120 hectares perto de Pueblo,

Colorado. O objetivo do centro é propiciar um lugar confiável para as pessoas se

comunicarem com espíritos superiores.32

Um fator importante que tem contribuído para o êxito da Nova Era é sua

alegação de ligar as pessoas não só com os seus queridos que morreram, mas

também com os grandes espíritos do passado. Como destaca o parapsicólogo e

canalizador Alan Vaughan; “A emoção, o imediatismo desse contato com outra

consciência pode ser a força impulsora por detrás do fenomenal crescimento da

prática de canalização”.33

^ Morte como transição para uma existência superior

A comunicação com os espíritos dos mortos tem por base a crença de que

a morte não é o fim da vida, mas meramente uma transição para um plano de

çxistência superior que torna possível no devido tempo reencarnar-se, seja sobre

a terra ou outra parte. Virgínia Essene, que reivindica estar falando como um

canal para Jesus, declara: “A morte é uma entrada automática e quase imediata

na grande esfera do crescimento de aprendizagem e serviço a que já está bem

acostumado. Você simplesmente vive nesse nível superior de propósito, alegria

e entendimento”.34

Em muitas maneiras, o ponto de vista da Nova Era como entrada imediata

numa esfera mais elevada de viver reflete a crença tradicional cristã na sobre­

vivência consciente da alma por ocasião da morte. Ambas as crenças podem

remontar à primeira mentira proferida pela serpente no Jardim do Éden: “E

certo que não morrereis” (Gn 3:4). Essa mentira tem atravessado os séculos com

efeitos devastadores sobre religiões tanto cristãs quanto não-cristãs.

Nesta análise penetrante do movimento da Nova Era, Elliot Miller observa

com perspicácia:

Im o rta lid a d e o u R e ssu r r e iç ã o ?

Tem sido feito notar corretamente por muitos observadores cristãos que o cerne'das

doutrinas de Nova Era/canalização, "sereis como Deus” e “não morrereis” foram as

primeiras proferidas pela serpente no jardim do Éden (Gn 3:4, 5). Acatado, então,

esse "evangelho”, produziu toda a miséria do mundo. Acatado agora, tornará sem

efeito tudo quanto Deus realizou em Cristo para remediar a situação do indivíduo

em questão.35

Miller está certo em destacar que a crença na imortalidade inerente pro­

movida pela Nova Era hoje torna de nenhum efeito à provisão de salvação em

Cristo, uma vez que as pessoas pensam que já dispõem dos recursos para entrar

num nível mais elevado de existência após a morte. Desafortunadamente, Miller

deixa de reconhecer que o êxito da Nova Era em promover tal crença deve-se em

grande medida à crença tradicional cristã dualística quanto à natureza humana.״

Os cristãos que crêèm que o corpo é mortal e a alma imortal não têrcfmãiores

dificuldades em aceitar o ponto de vista da Nova Era quanto à transição para uma

esfera superior de existência das almas dos santos

,

na glória paradisíaca.

C o n c l u s ã o

A pesquisa acima mostra como a mentira de Satanás “é certo que não morre­

reis" (Gn 3:4) tem prevalecido em diferentes formas ao longo da história humana

até nossos dias. Enquanto durante a Idade Média a crença na pós-vida era pro­

movida mediante representações literárias e artísticas da bem-aventurança dos

santos e do tormento dos pecadores, hoje tal crença é propagada numa forma mais

sofisticada por médiuns, paranormais, pesquisa “científica" em experiências de

qu ase-morte, e pela Nova Era e sua canalização com espíritos do passado.

Os métodos satânicos mudaram, mas seus objetivos são ainda os mesmos: fazer

as pessoas crerem na mçntíra de quer não, impor m o que façam, não morrerão^mas

se tornarão como deuses, vivendo,para sempre. Nossa únicaj)roteção contra tal

engano é um claro entendimento do que, a Bíblia ensina a respeito da natureza da

morte e o estado dos mortos1 A essas questões agora dedicaremos nossa atenção.

A NATUREZA DA MORTE

A m o r t e d e S ó c r a t e s e a d e C r is t o

Para ilustrar o ponto de vista bíblico da morte, Oscar Cullmann contrasta

a morte de Sócrates com a de Jesus. 36 Em seu livro Phaeào, Platão oferece uma

impressionante descrição da morte de Sócrates. No dia de sua morte, Sócrates

ensinou a seus discípulos a doutrina da imortalidade da alma e mostrou-lhes

A VISÃO BÍBLICA DA MORTE

como demonstrar tal crença por ocasião da morte. Ele explicou aos discípulos

como libertar a alma da prisão do corpo ocupando-se com as verdades eternas

da filosofia. Uma vez que a morte completa o processo de libertação da alma,

Platão nos diz que Sócrates defrontou a morte bebendo a cicuta em perfeita paz

e compostura, Para Sócrates, a morte era o maior amigo da alma porque a põe

em liberdade das cadeias do corpo.

Quão diferente foi a atitude de Jesus para com a morte! Na véspera de sua

morte, Jesus achava-se no Getsêmani “tomado de pavor e de angústia” (Mc 14:33)

e disse a seus discípulos: “A minha alma está profundamente triste até à morte” (Mc

14:34). Para Jesus, a morte não era um grande amigo, mas um temível inimigo, por­

que o separaria de seu Pai. Ele não encarou a morte com a compostura de Sócrates,

que a defendeu pacificamente como uma amiga. Quando confrontado com a reali­

dade da morte, Jesus clamou ao Pai dizendo; ״Pai, tudo te é possível; passa de mim

este cálice; contudo, não seja o que eu quero, e, sim, o que Tu queres” (Mc 14:36).

Jesus sabia que morrer significa separar-se de Deus. Assim, Ele clamou a

Deus porque não desejava ser abandonado pelo Pai, ou mesmo por seus discípu­

los. Que contraste entre Sócrates e Jesus em seu entendimento e experiência da

morte! Cullmann observa que

o autor da Epístola aos Hebreus... descreve a paixão de Jesus “com forte clamor e

lágrimas, orações e súplicas a quem o podia livrar da morte” (Hb 5:7). Assim, de

acordo com a epístola aos Hebreus, Jesus chorou e clamou em face da morte. Aqui

está SócTates, calmamente e em boa compostura falando da imortalidade da alma;

alí está Jesus, chorando e clamando.37

O contraste é evidente, especialmente no cenário da morte. Sócrates bebeu

a cicuta com sublime calma. Jesus clamou: ״Deus meu, Deus meu, por que me

desamparaste?” (Mc 15:34). Isso não representa ter a “morte como amiga”, mas

como inimiga. Paulo acertadamente a chama de “último inimigo” ÇlCo 15:26),

que ao final será lançado no lago de fogo (Ap 20:14).

Se a morte libertasse a alma do corpo e assim tornasse possível que esta

desfrutasse comunhão com Deus, então Cristo a teria acolhido muito bem por

lhe oferecer a oportunidade de reunir-se com o Pai. Mas Jesus viu a morte como

separação de Deus, que é a vida e o Criador de toda vida. Ele sentiu essa separação

mais do que qualquer outro ser humano, porque Ele é e ainda está intimamente

ligado com Deus. Ele experimentou a morte em todo o seu horror, não somente

no corpo, mas também em sua alma. E por isso que exclamou: “Deus meu, Deus

meu, por que me desamparaste?” (Mt 27:46) .

O contraste entre a morte de Sócrates e a morte de Jesus nos ajuda a

apreciar a visão bíblica da morte. No pensamento grego, a morte do corpo

não era em sentido algum a destruição da vida real. No pensamento bíblico, a

Imortalidade ou Ressurreição?

morte é a destruição da vida toda criada por Deus. “Portanto, é a morte e não

o corpo que precisa ser vencida pela ressurreição".33 E por tal razão que a res­

surreição de Jesus é tão fundamental para a fé cristã. Ela propicia a necessária

garantia de que a morte foi vencida para aqueles que aceitam a provisão de

salvação em Cristo.

Cullmann assinala que

a crença na imortalidade da alma não é crença num evento revolucionário. A imor­

talidade, de fato, é somente uma asserção negativa: a alma náo morre, simplesmente

prossegue vivendo. A ressurreição é uma asserção positiva: o homem completo, que

realmente veio a morrer, é chamado de volta à vida por um novo ato de criação de

Deus. Algo aconteceu - um milagre da criação! Pois algo também aconteceu ante­

riormente, algo temeroso: a vida formada por Deus foi destruída.39

Pecado e morte

Para entender a visão bíblica da morte precisamos remontar ao relato da

criação, onde a morte não é apresentada como um processo natural desejado por

Deus, mas como algo antinatural, oposto a Deus. A narrativa do Gênesis nos

ensina que a morte veio ao mundo como resultado do pecado. Deus ordenou a

Adão para não comer da árvore do conhecimento do bem e do mal e acrescentou

a advertência: “Mo dia em que dela comerdes, certamente morrereis” (Gn 2:17).

O fato de que Adão e Eva não morreram no dia de sua transgressão tem levado

alguns a concluir que os seres humanos não morrem de fato porque possuem uma

alma consciente que sobrevive à morte do corpo.

Essa interpretação figurativa dificilmente pode ser defendida pelo texto, que

literalmente traduzido diz assim: “morrendo morrereis". O que Deus quis dizer,

simplesmente, é que no dia em que desobedecessem, o processo de morte começa­

ria. De um estado em □ue lhes era possível não morrer (imortalidade condicionalL

passaram a uma condição ,gm que lhes era impossível não morrer (mortalidade

incondicional). Antes da queda, a garantia de imortalidade configurava-se pela

árvore da vida (Gn 3:22-23) e, em consequência, começaram a experimentar a

realidade do processo de mortalidade. Na visão profética da nova Terra, a árvore

da vida se acha em ambos os lados do rio como um símbolo do dom da vida eterna

concedido aos remidos (Ap 21:2),

O pronunciamento divino encontrado em Gênesis 2:17 estabelece uma clara

ligação entre a morte humana na Bíblia e a transgressão do mandamento de Deus.

Assim, a vida ou morte humana são dependentes da obediência ou desobediência

humanas a Deus. Este é um ensino fundamental da Bíblia, ou seja, 3e que a mor׳

te veio a este mundo em resultado da desobediência do homem (Rm 5:12; ICo

15:21h Isso não diminui a responsabilidade do indivíduo por sua participação

A VISÃO BÍBLICA DA MORTE

no pecado (Ez 18:4* 20). A Bíblia, contudo, faz uma distinção entre a primeira

morte, que todo ser humano experimenta em resultado do pecado de Adão (Rm

5:12; ICo 15:21), e a segunda morte experimentada após a ressurreição (Ap 20:6)

como salário pelos pecados pessoalmente cometidos (Rm 6:23).

A MORTE COMO SEPARAÇÃO DA ALMA DO CORPO

Uma questão importante que precisamos levantar a esta altura é o ponto de

vista bíblico da natureza da morte. Para ser específico: a morte é a separação da

alma do corpo mortal, de modo que quando o corpo morre, a alma sobrevive? Qu

a morte é a cessação da existência da pessoa integral, corpo e alma?

Ao longo da história tem-se ensinado aos cristãos que a morte é a separa­

ção da alma imortal do corpo mortal, de modo que a alma sobrevive ao corpo

num estado desincorporado. Por exemplo, o Ntwo Catecismo da Igreja Católica

declara: “Pela morte a alma é separada do corpo, mas na ressurreição Deus con­

cederá vida incorruptível

,

ao nosso corpo, transformado pela reunião com nossa

alma”40. Augustus Strong define a morte em sua bem conhecida obra Systemanc

Theology [Teologia Sistemátical: *‘A morte física é a separação da alma do corpo.

Distinguimo-la da morte espiritual, ou a separação da alma de Deus”41.

Em sua Lectures in Systematic Theologe [Conferências em teologia siste­

mática] (vastamente utilizada como livro de texto), o teólogo calvinista Henry 127

Clarence Thiessen se expressa de modo semelhante: *A morte física cem relação

com o corpo físico, a alma é imortal e como tal não morre”42. Em sua obra C/iris-

tian Dogmtítics [Dogmática cristã], Francis Pieper, um teólogo luterano conser­

vador, afirma de modo muito claro o ponto de vista histórico da morte: UA morte

temporal não é nada mais do que uma separação profunda do homem, a divisão

da alma do corpo, o antinatural rompimento da união de alma e corpo criados

por Deus para serem um”.43 Declarações como essas poderia m ŝ y !mil tipi iradas.

uma vez que se encontram na maioria dos livros de texto de teologia sistemática

e em todos os mais destacados documentos confessionais..

O ponto de vista histórico acima quanto à natureza da morte como separa­

ção da alma do corpo tem sido submetido a intenso ataque por muitos eruditos

modernos. Alguns exemplos são suficientes para ilustrar esse ponto. O teólogo

luterano Paul Althaus escreve:

A m o rte é m ais do q u e um p a rtir da a lm a do corpo . A pessoa, co rp o e alm a, é

en v o lv id a n a m o rte ... A fé c r is tã n ad a sabe sobre um a im o rta lid ad e d a p e rso n a ­

lid ad e ... A p en as sabe de um d e sp e rta r d a m orte rea l m e d ia n te o p o d e r de D eus,

H á ex is tên c ia após a m o rte so m e n te p o r um d e sp e rta m e n to d a re ssu rre ição da

pessoa in te g ra l.44

Althaus argumenta que a doutrina da imoitalidade da alma não faz justiça

à seriedade da morte, uma vez que a alma passa pela morte sem ser afetada.45

Ademais, a noção de que uma pessoa pode ser totalmente feliz e abençoada sem

o corpo nega a significação do corpo e esvazia a ressurreição de seu significado.46

Se os crentes já são abençoados no Céu e os ímpios jã estão sob tormentos no

inferno, por que o juízo final se faz ainda necessário?47 Althaus conclui que a

doutrina da imortalidade da alma divide o que deve permanecer junto: o corpo

e a alma, o destino do indivíduo e o do mundo.48

Em seu livro The Body [O Corpo}, John A. T. Robinson afirma: “A alma

não sobrevive ao homem - apenas se esvai, escorrendo com o sangue”49. Em sua

monografia Life After Death [Vida após a morte], Taito Kantonen faz esta aguda

observação: ״A noção cristã da morte está em pleno acordo com o ponto de

vista da ciência natural em toda sua extensão. O homem não difere do resto da

criação pOT ter uma alma que não pode morrer”50.

Até mesmo o Interpreter’s Dictionary of the Bible [Dicionário bíblico do intér­

prete], de concepção liberal, em seu verbete sobre a morte declara explicitamente:

A partida da nejjíiesfi [alma] deve ser vista como uma figura de linguagem, pois não

continua a existir independentemente do corpo, mas morre com ele (Nnt 31:19;

Jz 16:30; Ez 13:19). Nenhum texto bíblico autoriza a declaração de que a "alma” é

separada do corpo no momento da morte. O ruach, "espírito”, que faz do homem

um ser vivente (cf. Gn 2:7), e que ele perde por ocasião da morte, não é, falandose

apropriadamente, uma realidade antropológica, mas um dom de Deus que retoma a

Ele ao tempo da morte (Ec 12:7).5i

O The International Standard Bible Enciclopédia [Enciclopédia Internacional

Padrão da Bíblia] reconhece que

sempre somos influenciados, em maior ou menor grau, pela idéia grega, platônica, de

que o corpo morre, mas a alma é imortal. Tal idéia é inteiramente contrária à consci­

ência israelita e em parte alguma se acha no Antigo Testamento. O homem completo

morre quando na morte o espírito (SI 146:4; Ec 12:7), ou a alma (Gn 35:18; 2Sm 1:9;

lRs 17:21: ín 4:3E saí do homem. Não somente o seu corpo, mas sua alma também

retoma a uma condição de morte e pertence ao mundo invisível; portanto, o Antigo

‘ Testamento fala da morte da alma de uma pessoa (Gn 37:21; Nm 13:10; Du 22:21 \Jz

16:30; ló 36:14: SI 78:50).s;

Esse desafio da erudição moderna quanto ao ponto de vísta tradicional da

morte como separação da alma do corpo tem sido passado por alto há longo tem­

po. E difícil crer que ao longo da maior parte de sua história, o cristianismo em

grande medida haja sustentado um ponto de vísta da morte e destino humanos tão

vastamente influenciado pelo pensamento grego, em lugar de sê-lo pelos ensinos

Imortalidade ou R essurreição?

A VISÃO BÍBLICA DA MORTE

das Escrituras. O que surpreende ainda mais é que nenhum montante de erudição

bíblica mudará a crença tradicional mantida pela maioria das igrejas quanto ao es­

tado intermediário. A razão disso é simples. Conquanto eruditos individualmente

possam alterar seus pontos de vista doutrinários sem sofrerem consequências de­

vastadoras, o mesmo não é verdade para com igrejas bem estabelecidas.

Uma igreja que introduzir uma mudança radical em suas posições doutriná­

rias históricas solapa a fé de seus membros e assim a estabilidade da instituição.

Um exemplo disso é a Worldwide Church of God [Igreja de Deus Universal!, que

perdeu mais da metade de seus membros quando mudanças doutrinárias foram

introduzidas por seus dirigentes no princípio de 1995. O elevado custo de retificar

crenças religiosas denominacionais não deveria deter cristãos crentes na Bíblia

que estão comprometidos não em preservar crenças tradicionais por causa da tra­

dição, mas em buscar constantemente um entendimento mais pleno dos ensinos

da Palavra de Deus em questões relevantes para sua vida.

Morte como cessação da vida

Quando pesquisamos a Bíblia em busca de uma descrição da natureza da

morte, encontramos muitas referências claras que não carecem praticamente de

interpretação. Em primeiro lugar, as Escrituras descrevem a morte como um re­

tomo aos elementos dos quais o homem foi originalmente feito. Ao pronunciar a

sentença sobre Adão após sua desobediência, Deus disse: “No suor do teu rosto

comerás o teu pão, até que tornes à terra, pois dela foste formado: porque tu és pó

e ao pó tomarás” íGn 3:19h Essa vívida declaração nos diz que a morte não é a

separação da alma do corpo, mas o término da vida de um indivíduo, que resulta

na decadência e decomposição de seu corpo. “Uma vez que o homem é criado de

matéria perecível, sua condição natural é a mortalidade (Gn 3:19)53.״

Um estudo das palavras “morrer”, “morte” e “morto” no grego e hebraico

revela que a morte é percebida na Bíblia como a privação ou cessação da vida.

A palavra comum hebraica com o significado de “morrer” é mutíi, que ocorre

no Antigo Testamento mais de 800 vezes. Na vasta maioria dos casos, mutíi é

empregada no sentido simples de morte de homens e animais. Não há qual­

quer indício em seu emprego de qualquer distinção entre as duas. Um exemplo

claro disso se acha em Edesiastes 3:19, que diz assim: “Porque o que sucede

aos filhos dos homens, sucede aos animais; o mesmo lhes sucede: como morre

um, assim morre o outro”.

O termo hebraico muth (“morrer”), às vezes, é empregado como em por­

tuguês, num sentido figurado, para denotar a destruição.ou eliminação de uma

nação (Is 65:15; Os 2:3; Am 2:2), uma tribo (Dt 33:6: Qs 13:11 ou uma cidade

(2Sm 20:19). Nenhum desses usos figurados sustenta a idéia de sobrevivência do

Imortalidade ou R essurreição?

indivíduo. Pelo contrário, descobrimos que a palavra muth é utilizada em Deu-

teronômio 2:16 num paralelo com tamam, que significa “ser consumido” ou “ser

terminado”. O paralelismo sugere que a morte é vista como o fim da vida.

A palavra grega comum correspondente a “morrer” é abothanem, usada

vezes no Novo Testamento. Com poucas exceções, o verbo denota a cessação de

vida. As exceções são príncipalmente usos figurativos

,

que dependem do sentido

literal. Por exemplo, Paulo declara: “Pois o amor de Cristo nos constrange, julgam

do nós isto: um morreu por todos, logo todos morreram2) ״Co 5:14). E evidente

que isso não se refere à morte física, mas aos efeitos da morte de Cristo sobre a

posição do crente perante Deus. Poderíamos traduzir “portanto, todos morreram”

como “portanto, todos são contados como tendo morrido”. Nenhuma das utili'

zações literais ou figurativas valendo-se do hebraico muth ou do grego apothanein

sugere que a “alma” ou o “espírito” sobreviva à morte de um indivíduo.

Descrições da morte no Antigo Testamento

Acabamos de ver que os verbos em hebraico e grego para “morrer” não ex­

plicam realmente o significado e natureza da morte, exceto para nos dizer que a

morte cios homens e animais é idêntica. Mais revelador é o uso do substantivo he-.

braico maveth empregado cerca de 150 vezes e geralmente traduzido por “morte”.

Do emprego de maveth no Antigo Testamento aprendemos três coisas importantes

a respeito da natureza da morte.

Em primeiro lugar, não há lembrança do Senhor na morte: “Pois na morte

Jímwth) não há recordação de Ti; no sepulcro quem te dará louvor?” ffiLfoS) · A

razão de não haver lembrança na morte é tão somente porque o processo de pen­

samento cessa quando o corpo morre com o seu cérebro. “Sai-lhes o espírito e eles

tornam ao pó, nesse mesmo dia perecem todos os seus desígnios” (SI 146:4). Sendo

que na morte os “pensamentos perecem”, é evidente que não há alma consciente

que sobreviva à morte do corpo. Se o processo de pensamento que geralmente se

associa à alma sobrevivesse à morte do corpo, então os pensamentos dos santos não

pereceríam. Seriam capazes de se lembrar de Deus.. Mas o fato é que “os vivos sabem

que hão de morrer, mas os mortos não sabem coisa nenhuma, nem tampouco terão

eles recompensa, porque sua memória jaz no esquecimento” (Ec9:5).

Em segundo lugar, nenhum louvor a Deus é possível na morte ou sepultura.

“Que proveito obterás no meu sangue [mavedi] quando baixo à cova? Louvar-

te-á, porventura, o pó? Declarará ele a tua verdade?” (SI 30:9). Ao comparar a

morte com o pó, o salmista claramente mostra que não há consciência na morte

porque o pó não pode pensar. O mesmo pensamento é expresso no Salmo 115:17:

“Os mortos não louvam o Senhor, nem os que descem à região do silêncio". Aqui

o salmista descreve a morte como um estado de “silêncio”. Que contraste com a

A V1SÂO BÍBLICA DA MORTI־:

visão popular “barulhenta" da vida após a morte, onde os santos louvam a Deus

no Céu e os ímpios clamam em agonia no inferno!

Em terceiro lugar, a morte é descrita como um “sono". “Ilumina-me os olhos,

para que eu não durma o sono da morte” (SI 13:3). Essa caracterização da morte

como um “sono" ocorre freqüentemente no Antigo e Novo Testamentos porque

representa adequadamente o estado de inconsciência na morte. Brevemente exami­

namos o significado da metáfora do “sono" para compreender a natureza da morte.

Alguns argumentam que a intenção das passagens que acabamos de citar e

que descrevem a morte como um estado de inconsciência “não é ensinar que a

alma do homem é inconsciente quando ele morre", e sim de que “no estado de

morte o homem não mais pode participar nas atividades do mundo presente”.51־

Em outras palavras, uma pessoa morta é inconsciente no que concerne a este

mundo, mas sua alma é consciente no que concerne ao mundo dos espíritos. O

problema com essa interpretação é que tem por base o pressuposto gratuito de que

a alma sobrevive à morte do corpo, um pressuposto que é claramente negado no

Antigo Testamento. Descobrimos que no Antigo Testamento a morte do corpo é

a morte da alma porque o corpo é a forma exterior da alma.

Em vários lugares, maveth [morte] é empregada com referência à segunda

morte. “Dize-lhes: Tão certo como eu vivo, diz o Senhor Deus, não tenho prazer

na morte do perverso, mas em que o perverso se converta do seu caminho, e

viva. Convertei-vos, convertei-vos dos vossos maus caminhos; pois, por que ha­

veis de morrer, ó casa de Israel" (Ez 33:11; cf. 18:23, 32). Aqui a “morte do ímpio"

evidentemente não se refere à niorte natural que toda pessoa experimenta, mas

à morte infligida por Deus sobre os pecadores impenitentes no fim dos tempos.

Nenhuma das descrições literais ou referências figuradas à morte no Antigo Tes­

tamento sugere a sobrevivência consciente da alma ou espírito à parte do corpo.

A morte é a cessação da vida para a pessoa integral.

Referências neotestamentárlas à morte

As referências do Novo Testamento à “morte”, termo traduzido do grego

thanatos, não são tão informativas com respeito à natureza da morte quanto as

encontradas no Antigo Testamento. A razão deve-se parcialmente ao fato de que

no Antigo Testamento muitas referências à morte são encontradas nos livros po­

éticos ou de sabedoria, como Salmos, Jó e Eclesíastes. Esse tipo de literatura não

ocorre no Novo Testamento. Mais importante é o fato de que a morte é vista no )

Novo Testamento na perspectiva da vitória de Cristo sobre a morte. Esse é o tema f

dominante no Novo Testamento que condiciona a perspectiva cristã da morte. J

Mediante sua vitória sobre a morte, Cristo neutralizou o aguilhão da morte

(ICo 15:55): Ele aboliu a morte (2Tm 1:10); venceu o diabo que tinha o poder

Imortalidade o u R essurreição?

sobre a morte (Hb 2:14); tem nas mãos as chaves do reino da morte (Ap 1:18);

é o cabeça da nova humanidade como primícias dentre os mortos (Cl 1;18V. faz

com que os crentes sejam novas criaturas para uma viva esperança mediante sua

ressurreição dos mortos (IPe 1:3).

A vitória de Cristo sobre a morte afeta o entendimento do crente quanto

à morte física, espiritual e eterna. O crente pode defrontar a morte física com a

confiança de que a moTte foi tragada pela vitória de Cristo, o qual despertará os

santos adormecidos por ocasião de sua vinda (ICo 15:51-56L

Os crentes que estavam espiritualmente “mortos nos vossos delitos e pe­

cados” (Ef 2:1; cf. 4:17-19: Mt 8:22) foram regenerados para uma nova vida em

Cristo (Ef 4:24). Os descrentes que permanecem espiritualmente mortos por toda

a sua existência e não aceitam a provisão de Cristo para sua salvação (Jo 8:21, 24),

no dia do juízo experimentarão a segunda morte (Ao 20:6: 21:8). Essa é a morte

eterna final da qual não há retomo.

Os sentidos figurados da palavra thanatos-morte dependem inteiramente

do significado literal como cessação da vida. Argumentar em favor da existência

consciente da alma à base do sentido figurado da morte é atribuir à palavra um

significado a ela estranho. ]$sq contraria regras literárias e gramaticais e destrói as

̂ ligações entre a morte física, espiritual e eterna.

A MORTE COMO UM SONO NO ANTIGO TESTAMENTO

132

Tanto no Antigo quanto no Novo Testamento a morte é muitas vezes descrita

como um ״sono״. Antes de tentar explicar a razão para o emprego bíblico da metáfora

do “sono״ para a morte, consideremos alguns exemplos. No Antigo Testamento, três

palavras hebraicas com o sentido de “sono” são empregadas para descrever a morte.

A palavra mais comum, shachav, é empregada na expressão que ocorre com

frequência ·de que fulano de tal “dormiu com os seus pais” (Gn 28:11; Dt 31:1&i2

Sm 7:12; lRs 2:1Q). Começando com sua aplicação inicial a Moisés (“Eis que estás

para dormir com teus pais”, Dt 31:16), e depois com Davi (“Quando teus dias se

cumprirem, e descansares com teus pais\2S m 7:12). e Jó (“Agora me deitarei no

pó”, ló 7:2 1 ), encontramos este belo eufemismo para a morte atravessando qual

fio ininterrupto por toda a extensão do Antigo e Novo Testamentos, findando

com a declaração de Pedro de que “os pais dormem” (2Pe 3:■4). Comentando sobre

essas referências, Basil Atkinson faz uma observação perspicaz: “Assim, os reis e

outros, que morreram, são tidos como dormindo com seus pais. Se seus espíritos

estivessem vivos noutro mundo, poderia ser dito de forma regular, sem qualquer

pista, que a pessoa real

,

não estava de modo algum dormindo.7”55

Outra palavra hebraica para “dormir” é yashen. Essa palavra ocorre tanto

como um verbo no sentido de “dormir” Qr 51:39, 57; Sí 13:3) quanto como um

er

r/

fZ

tT

z/

A

i^

A VISÃO BÍBLICA DA MORTE

substantivo, “sono”. O último emprego é encontrado no bem conhecido verso de

Daniel 12:2: “Muitos dos que dormem no pó da terra ressuscitarão, uns para a

vida eterna, e outros para vergonha e horror eternos.” Note-se que nessa passa­

gem tanto os ímpios quanto os santos estão no pó da terra e ambos os grupos serão

ressuscitados no final.

Uma terceira palavra hebraica empregada para o sono da morte é shenafi. Jó faz

sua pergunta retórica: “O homem, porém, morre e fica prostrado; expira o homem,

e onde está?” Qó 14:10)· Sua resposta é: “Como as águas do lago se evaporam, e o

rio se esgota e seca, assim o homem se deita, e não se levanta: enquanto existirem

os Céus não acordará, nem será despertado do seu sono [sfienaM” (ló 14:11 e 12; cf.

Sa l 76:5; 90:5j. Aqui está uma descrição bem vívida da morte. Quando uma pessoa

exala o seu último suspiro, “o que é ele?”, ou seja, “o que é deixado dele?״ Nada. Ele

não mais existe. Toma-se como um lago ou rio cujas águas se secaram. Ele dorme na

sepultura e "não despertará” até o fim do mundo.

Ficamos a pensar: iria Jó apresentar uma descrição tão negativa da morte se

cresse que sua alma sobreviveria à morte? Se a morte introduzisse a alma de Jó

na presença imediata de Deus no Céu, por que ele fala de esperar até não mais

“existirem os Céus” Qó 14:11) e até ser “substituído” (ló 14:14)? E evidente que

nem Jó nem qualquer outro crente no Antigo Testamento sabia de uma existência

consciente após a morte.

A MORTE COMO UM SONO NO N O V O TESTAMENTO

A morte é descrita como um sono no Novo Testamento mais freqüente-

mente do que no Antigo. A razão pode ser que a esperança da ressurreição, que é

esclarecida e fortalecida pela ressurreição de Cristo, dá novo significado ao sono

da morte do qual os crentes despertarão por ocasião da segunda vinda de Cristo.

Assim como Cristo dormiu na sepultura antes de sua ressurreição, igualmente os

crentes dormem em suas tumbas enquanto esperam por sua ressurreição.

Há duas palavras gregas com o sentido de “sono” empregadas no Novo Tes­

tamento. A primeira é koimao, empregada quatorze vezes para falar do sono da

morte. Um derivado desse substantivo grego é koimeeteerion, do qual deriva nossa

palavra “cemitério”. Incidentemente, a raiz dessa palavra é também a do termo

“lar-oi/tos”. Destarte, o lar e o cemitério estão ligados porque ambos são lugares

de dormida. A segunda palavra grega é katheudein, geralmente empregada para o

sono ordinário. No Novo Testamento é usada quatro vezes para o sono da morte

(Ml&24; M c 5:39: Lc 8:52: Ef 5:14; ITs 4 :1 4 ) .

Ao tempo da crucifixão de Cristo, “abriram-se os sepulcros e muitos corpos

de santos, que dormiam, [ícelcotmemenon] ressuscitaram” (Mt 27:52). No texto

original consta: “Muitos corpos dos santos adormecidos foram ressuscitados”. E

Im o r ta lid a d e o u R essu r r eiç ã o ?

óbvio que o que foi ressuscitado foi a pessoa integral, não só os corpos. Não en­

contramos qualquer referência quanto a suas almas serem reunidas com seus cor­

pos, certamence porque esse conceito é estranho à Bíblia .

Falando figuradamente da morte de Lázaro, Jesus declarou: “Nosso amigo ador­

meceu, mas vou para despertá-lo” (To 1 1 :1 1 ). Quando Jesus percebeu que não tinha

sido compreendido, disse-lhes claramente: “Lázaro morreu” (lo 11:14). A seguir,

Jesus apressou-se a reassegurar a Marta: “Teu irmão há de ressurgir” (jo 11:23). ,

Esse episódio é significativo, em primeiro lugar, porque Jesus claramente

descreve a morte como um “sono” do qual os mortos despertarão ao som de sua

vo2. A condição de Lázaro na morte foi semelhante a um sono do qual alguém

desperta. Cristo disse: “Vou despertá-lo do sono” (Jo 11:11). O Senhor levou

a efeito sua promessa indo até a sepultura para despertar a Lázaro chamando:

“Lázaro, vem para fora. Saiu aquele que estivera morto tendo os pés e as mãos

ligados com ataduras e o rosto envolto num lençol” (Jo 11:43-44).

Esse despertar de Lázaro do sono da morte pelo som da voz de Cristo faz

paralelo com o despertar dos santos adormecidos no dia de sua gloriosa vinda,

Eles também ouvirão a voz de Cristo e sairão para a vida novamente. “Vem a

hora em que todos os que se acham nos túmulos ouvirão a sua voz e sairão”56

(Io 5:28; cf. 5:25), “Porquanto o Senhor mesmo, dada a sua palavra de ordem,

ouvida a voz do arcanjo e ressoada a trombeta de Deus, descerá dos Céus, e os

mortos em Cristo ressuscitarão primeiro” 57 .(lTs 4:16). Há harmonia e simetria

nas expressões “dormir” e “despertar” como empregadas na Bíblia, no sentido

de entrar e sair da condição da morte. As duas expressões corroboram a noção

de que a morte é um estado de inconsciência, do qual os crentes despertarão no

dia da vinda de Cristo.

L á z a r o não teve experiência de pós-vida

A experiência de Lázaro é também significativa porque ele passou quatro

dias na sepultura. Essa não foi uma experiência de quase-morte, mas uma ex­

periência de morte real. Se, como popularmente se crê, a alma por ocasião da

morte deixa o corpo e vai para o Céu, então Lázaro teria tido uma experiência

impressionante para compartilhar a respeito dos quatro dias que teria passado

no paraíso. Os líderes religiosos e as pessoas teriam feito tudo ao seu alcance

para extrair de Lázaro tanta informação quanto possível sobre o mundo invisí­

vel. Como Robertson Nichol assinala, “tivesse ele [Lázaro] aprendido alguma

coisa do mundo dos espíritos, isso teria sido expressado por ele”58. Tal infor­

mação teria propiciado valiosas respostas às indagações da vida após a morte

sobre as quaís se debatia tão acaloradamente entre os saduceus e os fariseus (M.L

22:23, 28; Mc 12:18, 23; Lc 20:27 e 33).

A VISÃO BÍBLICA DA MORTE

Lázaro, contudo, nada tinha para compartilhar a respeito da vida após a

morte, porque durante os quatro dias que passou na sepultura, dormiu o sono

inconsciente da morte. O que é verdadeiro a respeito de Lázaro é também verda­

deiro quanto a seis outras pessoas que foram levantadas da morte: o filho da viúva

(lRs 17:17-24): o filho da sunamita, (2Rs 4:18-37); o filho da viúva de Naim (Lç

7:11-15); a filha de ]airo(Lc 8:4 h 42. 49-56): Ta bit a (At 9:36-41); e Êutíco (At

20:9-11?). Cada uma dessas pessoas veio da morte como se tivesse estado num

profundo sono, com o mesmo sentimento e individualidade, mas sem qualquer

experiência de pós-vida para compartilhar.

Não há qualquer indicação de que a alma de Lázaro ou a das demais seis pes­

soas trazidas da morte tenha ido para o Céu. Nenhuma delas teve uma "experiência

celestial" para narrar. A razão disso é que nenhuma delas ascendeu ao Céu. Isso é

confirmado pela referência de Pedro a Davi em seu discurso no dia de Pentecos­

tes: "Irmãos, seja-me permitido dizer-vos claramente, a respeito do patriarca Davi,

que ele morreu e foi sepultado e o seu túmulo permanece entre nós até hoje” (At

2:29)- Alguns poderiam argumentar que o que estava na sepultura era o corpo de

Davi, não sua alma que havia ido para o Céu. Essa interpretação, porém, é negada

pelas explícitas palavras de Pedro: "Porque Davi não subiu aos Céus”71* (At 2:34). A

tradução de Knox diz assim; “Davi nunca subiu para o Céu”. A Bíblia de Cambridge

traz a seguinte nota: “Pois Davinão ascendeu... Ele desceu à sepultura e ‘dormiu com

seus pais.'"60 O que dorme na sepultura, de acordo com a Bíblia, não é meramente o

corpo, mas a pessoa integral que aguarda o despertar da ressurreição.

Paulo e os santos adormecidos

Nos dois grandes capítulos sobre a ressurreição em 1 Tessalonicenses 4 e 1

Coríntios 15, Paulo repetidamente fala daqueles que "dormiram” em Cristo (lTs

^ 4:13, 14, 15; ICo 15:6, 18, 20). Um exame de algumas das declarações de Paulo

lança luz sobre o que ele quis dizer ao caracterizar a morte

,

como um sono.

Escrevendo aos tessalonicenses, que estavam lamentando o passamento de

alguns de seus entes queridos por terem adormecido antes de experimentar a

vinda de Cristo, Paulo lhes reassegura que assim como Deus ressuscitou a Jesus

dentre os mortos, Ele, mediante Cristo, "trará juntamente em sua companhia

os que dormem” (lTs 4:14). Alguns sustentam que Paulo está falando de almas

desincorporadas, que supostamente ascenderam ao Céu por ocasião da morte e

que retornarão com Cristo quando Ele descer à Terra em sua segunda vinda.

Tal interpretação ignora três coisas principais. Primeiro, nosso estudo

mostra que a Bíblia em parte alguma ensina que a alma ascende ao Céu por

ocasião da morte. Em segundo lugar, no contexto, Paulo não está falando de

almas imortais, mas sobre os "que dormem" (lTs 4:13: cf. v. 14) e dos "mortos

Im ortalidade ou Ressu rreiçã o?

em Cristo״ (lTs 4:16), “Os mortos em Cristo ressuscitarão primeiro” de suas

tumbas (lTs 4:16) e não descerão do Céu. Não há indício de que os corpos

subam das sepulturas e as almas desçam do Céu para se reunirem aos corpos.

Tal noção dualística é estranha à Bíblia. O comentário de Leon Morris de que

“Paulo declara trará e não ‘levantará’”61 é inexato porque Paulo diz: Cristo

tanto levantará os mortos quanto os trará com Ele. Assim, o contexto sugere

que Cristo traz consigo os mortos que são primeiramente levantados, ou seja,

antes da trasladação dos crente vivos.

Em terceiro lugar, se Paulo realmente cresse que “os mortos em Cristo” não

estavam de fato mortos em suas sepulturas, mas vivos no Céu como almas desin-

corporadas, teria se aproveitado de sua bendita condição no Céu para explicar aos

tessalonicenses que a lamentação deles era sem sentido. Por que deviam lamentar

pelos seus amados, se estavam já desfrutando as bênçãos celestiais? A razão por

que Paulo não lhes deu tal encorajamento é, obviamente, o fato de que sabia que

os santos adormecidos não estavam no Céu, mas em suas sepulturas.

Tal conclusão apóia-se na garantia que Paulo dá a seus leitores de que os

cristãos vivos não se encontrariam com Cristo, por ocasião de sua vinda, antes

dos que haviam dormido. “Nós os vivos, os que ficarmos até à vinda do Senhor,

de modo algum precederemos os que dormem” (lTs 4:15). A razão é que “os

mortos em Cristo ressuscitarão primeiro, depois nós, os vivos, os que ficarmos,

seremos arrebatados juntamente com Ele entre nuvens, para o encontro do Se-

nhor nos ares, e assim estaremos para sempre com o Senhor” (lTs 4:16-17).

O fato de que os santos vivos se encontrarão com Cristo ao mesmo tempo

que os santos adormecidos indica que os últimos ainda não foram reunidos

com Cristo no Céu. Se as almas dos santos adormecidos já estivessem des׳

frutando comunhão com Cristo no Céu e devessem descer com Cristo para

a Terra por ocasião de seu segundo advento, então obviamente teriam uma

indiscutível prioridade sobre os santos vivos. Mas a verdade é que tanto os

crentes vivos quanto os adormecidos estão aguardando sua tão ansiada união

com o Salvador; uma união que ambos os grupos experimentarão ao mesmo

tempo, no dia da vinda de Cristo.

A discussão de Paulo sobre os santos ■adormecidos em í Corindos 15 con­

firma muito do que já temos descoberto em 1 Tessalonicenses 4· Após afirmar a

importância fundamental da ressurreição de Cristo para a fé e esperança crista,

Paulo explica que “se Cristo não ressuscitou... os que dormiram em Cristo pe­

receram” (ICo 15:18-19). Paulo dificilmente poderia dizer que os santos ador­

mecidos teriam perecido sem a garantia da ressurreição de Cristo se cresse que

suas almas eram imortais e já estavam a desfrutar das bênçãos paradisíacas.

Se Paulo cresse assim, ele provavelmente teria dito que, sem a ressurreição de

Cristo, as almas dos santos adormecidos permaneceriam desincorporadas por

A VISÃO BÍBLICA DA MORTE

toda a eternidade. Paulo, porém, não faz tal alusão quanto a essa possibilidade,

porque cria que a pessoa integral, corpo e alma, teria “perecido” sem a garantia

da ressurreição de Cristo.

É significativo que no capítulo inteiro, dedicado à importância e dinâmica

da ressurreição, Paulo nunca dá indício de alguma suposta reunificação do corpo

com a alma por ocasião da ressurreição.

Se Paulo tivesse tal crença, dificilmente poderia ter evitado fazer algumas

alusões da reconexão de corpo e alma, especialmente em suas discussões da

transformação dos crentes de uma condição mortal para uma imoTtal na volta

do Senhor. Mas o único “mistério” que Paulo revela é que “nem todos dormi׳

remos, mas transformados seremos todos” (ICo 15:51). Essa transformação de

uma natureza perecível para uma imperecível ocorre para todos, mortos e vivos,

e ao mesmo tempo, ou seja, ao som da “última trombeta” (ICo 15:52). A trans­

formação nada tem a ver com almas desincorporadas reconquistando a posse de

seus corpos ressurretos. Antes, é uma mudança da vida mortal para a imortal,

tanto para vivos como para mortos em Cristo, quando “o mortal se revestir da

imortalidade” (ICo 15:54)*

5 O SIGNIFICADO DA METÁFORA DO “ SON O״

O uso popular da metáfora do “sono” para descrever o estado dos mortos em

Cristo suscita a questão de suas implicações para a natureza da morte. Especiíica-

mente, por que é essa metáfora empregada e que lampejos podemos legitimamen-

te extrair dela a respeito da natureza da morte? Há três principais razões para o

uso da metáfora do “sono” na Bíblia. Primeiramente, há uma semelhança entre o

“sono” dos mortos e o “sono” dos vivos. Ambos são caracterizados por uma con­

dição de inconsciência e inatividade que é interrompida por um despertar. Assim,

a metáfora do “sono” representa adequadamente o estado de inconsciência dos

mortos e seu despertar no dia do retorno de Cristo.

Uma segunda razão para o emprego da metáfora do “sono” i..&ügeii,da pelo

fato de tratar-se de uma figura de linguagem para representar a morte que inspira

esperança. Deixa implícita a segurança de um despertar posterior. Como vai uma

pessoa dormir à noite na esperança de despertar pela manhã, também o crente

adormece no Senhor com a garantia de ser despertado por Cristo na manhã da

ressurreição. Albert Bames assinala de modo adequado;

Nas Escrituras o sono é empregado para sugerir que a morte não será final: haverá

um despertar desse sono, ou uma ressurreição. E uma expressão bela e tema, remo­

vendo tudo quanto é sombrio na morte, e enchendo a mente com a idéia de tran­

quilo repouso após uma vida de lutas, com uma referência a uma futura ressurreição

com faculdades renovadas e aumentadas.62

Imortalidade ou Ressurreição?

Quando ouvimos ou dizemos que uma pessoa morreu, automaticamente

pensamos que não há mais esperança de trazer esse alguém à vida. Mas quando

dizemos que uma pessoa está dormindo no Senhor, expressamos a esperança de

sua restauração à vida no dia da ressurreição. Bruce Reichenbach observa que a

metáfora do “sono” não é somente uma bela maneira de falar sobre a morte, mas,

mais importante que isso,

sueere vigorosamente que a morte não é o fim da existência humana« Assim como

uma pessoa que está dormindo pode ser acordada, também os mortos, como ador­

mecidos”, têm a possibilidade de serem recriados e viver novamente. Este é, talvez,

o significado do difícil relato de^dateilá&láss, no qual Jesus declara que a menina

não morreu, mas estava apenas dormindo. As pessoas que a consideravam morta

não tinham esperança para ela. Contudo, em vista de que Jesus a considerou ador­

mecida, Ele viu que havia de fato esperança de que ela pudesse ser ressuscitada

para viver novamente. Ele viu uma potencialidade nela que outros, inconscientes

do poder de Deus, não podiam ver. A metáfora do "sono”, portanto, não descreve

o estado ontológico dos mortos [isto é, a condição do sono], mas, refere-se muito

mais à possibilidade dos falecidos; de que embora agora não mais existam, pelo

poder de Deus podem ser recriados para viver novamente.^

O SO N O DA M ORTE COM

,

O INCONSCIÊNCIA

Uma terceira razão para o uso dajnetáfora do “sono” é sugerida pelo fato de

que não há consciência do lapso de tempo no sono. Assim, a metáfora propicia

uma representação adequada do estado de inconsciência dos falecidos entre a

morte e a ressurreição. Eles não têm consciência da passagem do tempo. Em seus

primeiros escritos, Lutero expressou o seu pensamento de uma forma bem vívida:

­Assim como alguém que caí no sono e atinge a manhã sem esperar quando des״

perta, sem saber o que lhe ocorreu, de igual modo subitamente despertaremos no

ultimo dia sem saber como chegamos à morte e por ela passamos”64. Novamente

Lutero escreveu: ״Dormiremos até que Ele venha e bata na pequena tumba e diga:

Doutor Martinho, erga-se! Então me levantarei num momento e serei feliz com

Ele para sempre”65.

Para efeito de precisão, deve-se assinalar que mais tarde Lutero rejeitou em

grande escala a noção de sono inconsciente na morte, supostamente devido ao

vigoroso ataque de Calvino a essa doutrina. Em seu Commenuxry on Genesis [Co­

mentário sobre Gênesis], que redigiu em 1537, Lutero comenta: “A alma que par­

tiu não dorme nessa maneira [sono regular]; é, falando-se mais apropriadamente,

desperta e tem visão e conversação com os anjos e com Deus”60. A mudança de

posição de Lutero do estado inconsciente para consciente na morte apenas seiyg_

para mostrar que mesmo reformadores influentes não estavam isentos de pressões

, teológicas de seu tempo.

i i . V l o r v w u i u L i v ^ n l / / i «-

A semelhança de Lutero, a maioria dos cristãos hoje crê que a metáfora do 41sono”

não é empregada na Bíblia para ensinar o estado inconsciente, mas que “haverá uma

ressurreição, um despertar67״. Alguns eruditos alegam que a morte é comparada a um

sono “não porque a pessoa esteja inconsciente, mas porque os mortos não retomam

à Terra nem estão cônscios do que se passa onde outrora viveram’1.08 Em outras pala­

vras, os mortos estão inconscientes no que tange ao que acontece sobre a Terra, mas

bastante conscientes quanto a sua vida no Céu ou inferno.

Essa conclusão não tem por base as Escrituras, mas o emprego da metáfora

de ,*sono’1 na literatura intertestamentária. Por exemplo, Enoque, datado de cerca

do ano 200 a.G, tala dos justos como tendo “um longo sono11 (100:5), mas suas

almas estando conscientes e ativas no Céu (102:4, 5; c í 2 Baruque 36:11; 2 Esdras

7:2). Após examinar essa literatura, John Cooper conclui: “As metáforas de sono

e descanso são empregadas quanto a pessoas no estado intermediário que estão

conscientes e ativas, mas não em formas corporais, terrenas”69.

O significado bíblico da metáfora do “sono״ não pode ser decidido com

base em seu emprego na literatura intertestamentária, porque, como vimos,

durante esse período os judeus helenistas tentaram harmonizar os ensinos do

Antigo Testamento com a filosofia dualística grega de seu tempo. O resultado

foi a adoção de crenças tais como a imortalidade da alma, a recompensa ou

punição dadas imediatamente após a morte e orações pelos mortos. Taís crenças

são estranhas à Bíblia.

Nosso estudo da metáfora de “sono" no Antigo e no Novo Testamento

demonstrou que a metáfora deixa implícito um estado de inconsciência que

perdurará até o despertar da ressurreição. É digno de nota que em 1 Coríntios

15, Paulo emprega 16 vezes o verbo egetro, que literalmente significa “despertar”

do sono.'0 O reiterado contraste entre o dormir e o acordar é impressionante.

À Bíblia emprega o termo “sono” com frequência porque envolve uma verdade

vital: a de que os mortos que dormem em Cristo estão inconscientes de qualquer

lapso de tempo até sua ressurreição. O crente que morre em Cristo adormece

e descansa inconsciente até ser despertado quando Cristo o chamar de volta à

vida por ocasião de sua vinda,

O SENTIDO E FUNDAMENTO DA IMORTALIDADE

A imortalidade na Bíblia não é uma posse humana inata, mas um a tribu to

divino. O termo “imortalidade” deriva do grego athanasia, que significa “ausêiv

cia de morte”, e, portanto, existência infindável. Esse termo ocorre somente

duas vezes; primeiro com relação a Deus, “o único que possui imortalidade”

(lTm 6:16) e, em segundo lugar, com relação à mortalidade humana que deve

revestir-se da imortalidade_£iCo !5;.53J por ocasião de sua ressurreição. A últi׳

Im o r ta lid a d e o u R essurreição?

ma referência nega a noção de uma imortalidade natural da alma, porque decla-

ra que a imortalidade é algo de que os santos ressuscitados se ״revestirão״. Não

é algo de que já sejam possuidores,

base da imortalidade’1, como declara Vem Hannah, “é soteriológica e não

an tropologica”. 71*Q que isso significa é que a imortalidade é um dom divino aos

salvos e não uma possessão humana natural. Como R T. Forsyth declarou, “uma

segura crença na imortalidade não se assenta onde a filosofia a coloca, mas onde a

religião a situa, Não se fundamenta sobre a natureza do organismo psíquico, mas

sobre sua relação com Outro”,72 Este “Outro” é Jesus Cristo, que “não só destruiu

a morte, como trouxe à luz a vida e a imortal idade” (2Tm

Em parte alguma a Bíblia sugere que a imortalidade é uma qualidade na­

tural ou direito dos seres humanos. A presença da “árvore da vida” no jardim

do Eden indica que a imortalidade era condicional à participação do fruto de

tal árvore. As Escrituras ensinam que a imortalidade deve ser “buscada” (Rm

2:7) e “revestida” (ICo É, como a “vida eterna״, um dom de Deus (Rm

6:23) a ser herdado (Mt 19:29) por conhecer a Deus ()o 17:3) através de Cristo

(Jo 14:19; 17:2; Rm 6:23). A perspectiva de Paulo da imortalidade está liga­

da unicamente à ressurreição de Jesus (ICo 15) como fundamento e penhor

da esperança do crente.75 Os que insistem em encontrar a idéia filosófica de

imortalidade da alma na Bíblia ignoram a revelação de Deus e inserem idéias

*40 do dualismo grego na fé bíblica.

C onclusão

A crença tradicional e popular de que a morte não é a cessação da vida

para a pessoa integral, mas a separação da alma imortal do corpo mortal, pode

ser identificada com a mentira de Satanás “E certo que não morrereis” (Gn 3:4).

Essa mentira persiste em diferentes formas ao longo da história humana até" o

presente. Hoje, a crença da sobrevivência da alma, seja no paraíso ou no infer­

no, é promovida não por meio das toscas representações literárias e artísticas

da Idade Média, mas por meio da polida imagem de médiuns, paranormais, de

sofisticadas pesquisas “científicas” em experiências de quase-morte, e da popu­

lar canalização da Nova Era com espíritos do passado. Os métodos de Satanás

mudaram, mas seu objetivo é o mesmo: fazer as pessoas crerem na mentira de

que não importa o que façam, não morrerão, mas se tornarão como deuses para

viver para sempre.

O ponto de vista tradicional da morte limita a experiência da morte ao cor­

po, uma vez que a alma continua sua existência. Vem Hannah apropriadamente

declara que “tal redefinição radical da morte é, de fato, uma negação da morte

- uma definição, sem duvida, que a ‘sutil serpente’ de Gênesis 3 acharia muito

A VISÃO BÍBLICA DA MORTE

atraente”74. A Bíblia leva a morte muito mais a sério. A morte é o último inimigo

(lCo 15:26) e não o libertador da alma imortal. Como Oscar Cullmann destaca

que “a morte é a destruição de toda a vida criada por Deus. Portanto, é a morte, e

não o corpo, que deve ser vencida pela ressurreição”/ 5

Helmut Thielicke fez a profunda observação de que a idéia de imortalidade

da alma é uma forma de escapismo que permite à pessoa “real” evadir-se da morte.

É uma tentativa de desarmar a morte. Ele prossegue explicando que

podemos apegar-nos ídealisticamente a alguma “região inviolável do ego”, mas a

morte não é um "passar adiante”, e sim um "descer", e não deixa qualquer espa­

ço para o romanticismo ou idealismo. Não devemos desvalorizar nem obscurecer

a realidade da sepultura mediante a idéia da imortalidade. A perspectiva cristã é a

ressurreição, não a imortalidade da alma/

,

básicos: (1) o cíássico e (2) o cristão} O primeiro procede da filosofia

grega e o segundo do ensíno da Bíblia. O termo "cristão” para o último ponto de

vista pode ser enganoso, porque, como veremos, a vasta maioria dos cristãos ao

longo dos séculos tem sido grandemente influenciada pela visão clássica da natu­

reza humana, que consiste de um corpo mortal e de uma alma imortal. Portanto,

prefiro chamar ao segundo ponto de vista “bíblico”, porque, como este estudo

demonstra, reflete os ensinos da Bíblia.

O DUALISMO CLÁSSICO

O ponto de vista clássico da natureza humana deriva grandemente dos escritos

de Platão, Aristóteles e dos estóicos. A ênfase dessas filosofias recai sobre a distinção

entre os componentes material e espiritual da natureza humana. No pensamento

platônico, a natureza humana é tanto um componente material quanto espiritual.

O componente material é o corpo, temporário e essencialmente mau; e o compo­

nente espiritual é a alma (psyc/iê) ou a mente (nous)> que é eterna e boa. O corpo

humano é transitório e mortal enquanto a alma humana é permanente e imortal.

Por ocasião da morte, a alma é liberada da prisão corporal onde esteve sepultada por

um tempo. Historicamente o pensamento cristão popular tem sido profundamente

influenciado por esse entendimento dualístico, anribíblico, da natureza humana. As

implicações de longo alcance da visão clássica da natureza humana para crenças e

práticas cristãs são incalculáveis. Vamos refletir a respeito delas brevemente.

H o u s m o B íblico

O ponto de vista bíbtico da natureza humana é essencialmente holístico [in­

tegral] ou monístico. A ênfase bíblica é sobre a unidade do corpo, alma, e espírito,

cada um sendo parte de um organismo indivisível. Sendo intenção deste livro no

seu todo articular a visão holística da natureza humana, faço aqui apenas refe­

rência a duas diferenças significativas com o ponto de vista clássico. A primeira

é a de que o ponto de vista holístico da natureza humana tem por base a crença

de que o ato de criação material deste mundo, inclusive a do corpo humano, é

“muito bom” (Gn 1:31). Não há dualismo nem contradição entre o material e o

espiritual, o corpo e a alma, a carne e o espírito, porque fazem todos parte da boa

criação de Deus. A redenção é a restauração da pessoa integral, corpo e alma, e

não a salvação da alma à parte do corpo.

Um segundo contraste com o ponto de vísta clássico é o de que a natureza

humana não foi criada inatamente imortal, mas com a capacidade de tomar-se

imortal. Os seres humanos não possuem um corpo mortal e uma alma imortal;

possuem um corpo mortal holístico e alma que pode tornar-se imortal. A imor־

O DEBATE SOBRE A NATUREZA E O DESTINO HUMANOS

talidade ou vida eterna é o dom de Deus àqueles que aceitam sua provisão de

salvação. Os que rejeitam o plano de'Deus para sua salvação por fim experimen­

tarão a destruição eterna, não o tormento eterno num inferno de fogo a queimar

infindavelmente. A razão é simples; a imortalidade é concedida como recompensa

aos salvos, não como uma retribuição aos não-salvos.

Aqui estão as boas-novas. Embora Adão e Eva fossem criados mortais (com

a possibilidade de se tornarem imortais por partilharem da árvore da vida) e hoje

sejamos nascidos como mortais, podemos receber a imortalidade se aceitarmos o

dom divino da vida eterna. A imortalidade é um dom divino e não uma possessão

inata do homem. E condicional a nossa disposição de aceitar a graciosa provisão

para a salvação de nossa natureza total, corpo e alma. Assim, o ponto de vista bí­

blico é também referido como imortalidade condicionaly porque é oferecida segundo

os termos e condições de Deus.

O DEBATE CORPO*׳ ALMA

Alguns leitores podem pensar que a questão corpo-alma é um tema supe­

rado e que ninguém se interessa mais por isso hoje. Escrever um livro sobre tal

tópico pode ser visto como uma perda de tempo. O fato é que a questão cor­

po-alma está longe de ser um tema irrelevante e morto. O recente suicídio em

massa numa mansão em San Diego, de 39 pessoas que desejavam deixar para

trás o “container” de seus corpos a fim de alcançar com suas almas o cometa

Hale-Bopp faz-nos lembrar quão atual é a questão alma-corpo. O interesse na

vida por vir parece ser maior hoje do que em qualquer época anterior.

Durante a Idade Média, a crença na vida após a morte era promovida mediante

representações supersticiosas literárias e artísticas da bem-aventurada condição dos

santos, e tormento dos pecadores. Hoje tal crença é propagada em formas mais sofis­

ticadas por meio de médiuns, paranormais, pesquisas “científicas” com experiências

de quase-morte e contatos da Nova Era com os espíritos do passado. O resultado

de tudo isso é que a questão corpo-alma está atraindo atenção sem precedentes,

mesmo na comunidade acadêmica. Uma pesquisa da literatura erudita produzida

em anos recentes claramente demonstra que esta questão está sendo calidamente

debatida por eruditos destacados de diferentes confissões religiosas.

A questão central é se a alma pode sobreviver e funcionar à parte do corpo. Em

oitiras palavras, é a natureza humana constituída de modo tal que, por ocasião da

macte, a alma, isto é, a parte consciente, deixa o corpo e continua a existir enquan­

to o ״Container” se desintegra? Tradicionalmente, os cristãos em sua vasta maioria

têm respondido afirma ti vamente a esta indagação. Têm crido que entre a morte e a

ressurreição final do corpo, Deus preserva a existência de suas almas humanas de-

sãncorporadas. Por ocasião da ressurreição, seus corpos materiais são juntados a seus

espíritos, assim intensificando o prazer do paraíso ou a dor do inferno.

Im o r t a l id a d e o u R e s s u r r e iç ã o ?

' A Esse ponto de vista tradicional e popular tem defrontado intenso ataque em anos״־

recentes. Um crescente número de proeminentes eruditos evangélicos está abando­

nando a visão clássica, dualística, da natureza humana, que vê o corpo como mortal,

pertencendo ao mundo inferior da natureza, e a alma como imortal, pertencendo ao

reino espiritual e sobrevivendo à morte do corpo. Em lugar disso, estão acatando a

perspectiva holística bíblica da natureza humana pela qual a pessoa integral, corpo e

alma, experimenta a morte e a ressurreição.

Vários fatores têm contribuído para o abandono do dualismo clássico por parte

de muitos eruditos. Um deles é um renovado estudo do ponto de vista bíblico da na­

tureza humana. Um detido exame dos termos bíblicos básicos usados para o homem

(corpo, alma, espírito, carne, mente e coração) tem levado muitos eruditos a reconhecer

que não indicam componentes independentes, mas a pessoa integral vista de.diferen­

tes pontos de vista. “A erudição recente tem reconhecido”, escreve Eldon Ladd, “que

termos tais como corpo, alma e espírito não são faculdades distintas, separáveis, do

homem, mas diferéntes modos de ver o homem integral.”3

Virtualmente, qualquer parte do corpo pode ser usada na Bíblia para representar

o ser humano completo. Não há dicotomia entre um corpo mortal e uma alma imortal

que sobrevive e funciona à parte do corpo, Tanto o corpo como a alma, a carne e o

espirito na Bíblia são partes da mesma pessoa e não “se separam1' na morte.

O DUALISMO SOB ATAQUE

Numerosos estudiosos da Bíblia em tempos recentes têm argumentado que

os escritores do Antigo e Novo Testamentos não operam sob uma ótica dualís­

tica da natureza humana, mas segundo uma visão monística e holística. Seus

estudos são discutidos nos capítulos seguintes. O resultado desses estudos é que

muitos hoje estão questionando ou mesmo rejeitando a noção de que as Escri­

turas ensinam a existência de almas à parte do corpo após a morte.

Historiadores eclesiásticos apóiam essas conclusões alegando que uma perspec­

tiva dualística da natureza humana e a crença na sobrevivência de almas desincorpo-

radas foram introduzidas no cristianismo pelos pais da igreja, que eram influenciados

pela filosofia dualística de Platão. Isso explica

,

por que essas crenças tomaram-se am­

plamente aceitas na igreja cristã, apesar de serem estranhas aos ensinos bíblicos.

Filósofos e cientistas também têm contribuído para o ataque maciço contra

o tradicional ponto de vista dualístico da natureza humana. Filósofos têm atacado

os argumentos tradicionais de que a alma é uma substância imortal que sobrevive

à morte do corpo. Eles têm proposto teorias alternativas segundo as quais a alma

é um aspecto do corpo humano, e não um componente separado.

Os cientistas também têm desafiado a crença na existência independente

da alma demonstrando que a consciência humana é dependente do cérebro e por

esse influenciada. Por ocasião da triorte, o cérebro cessa de funcionar e todas as

formas de consciência detêm-se. Para os cientistas, a cessação de codas as funções

mentais por ocasião da morte sugere ser altamente improvável,que as funções

mentais atribuídas à alma possam· sér executadas depois da morte.

Esses ataques concentrados sobre o dualismo por eruditos bíblicos, Historia-

dores eclesiásticos, filósofos e cientistas têm levado cristãos liberais e mesmo con­

servadores a rejeitarem a perspectiva duaJística da natureza humana. Em seu livrò

Body, Soul and Life Everlasting (Corpo, alma e vida eterna), John W. Cooper, re­

sume o resultado desse desenvolvimento, declarando: “Os liberais rejeitam-no lo

dualismo] como fora de moda é não mais sustentável intelectualmente. E alguns

protestantes conservadores alegaram que uma vez que podemos seguir somente

as Escrituras, e não as tradições humanas, se o dualismo antropológico é uma tra­

dição humana não-baseáda nas Escrituras, devemos reformular nossas confissões

e expurgá-las de tais excrescências da mentálidade grega. A distinção corpo *׳alma

tem sofrido severo ataque de diversas tendências.”4

O DEBATE SOBRE A NATUREZA E O DESTINO HUMANOS

Os DUALISTAS ESTÃO PREOCUPADOS

Essas ocorrências têm despertado sérias preocupações de parte daqueles que

sentem que o seu entendimento dualístico tradicional da natureza humana está sen- ,

dose veramente ameaçado ou solapado. O livro de Cooper representa uma das mui­

tas tentativas de reafirmar b tradicional ponto de vista dualístico em resposta aos

ataques contra o dualismo. A razão para essa reação é bem expressa por Cooper:

. Se o que eles [os eruditos] estão dizendo é verdade, então duas conclusões pertur­

badoras se seguem de imediato: primeiro, a doutrina afirmada pela maior parte da

igreja cristã desde os seus primórdios é falsa; Uma segunda consequência è mais

pessoal e existencial - o que milhões de cristãos crêent que se dará quando morrerem

é também um engano.5

Cooper está profundamente preocupado com o custo de abandonar o enten­

dimento dualístico tradicional da natureza humana. Ele escreve:

O mais óbvio é que as crenças que virtualmente todos os cristãos comuns man­

têm sobre o além-túmulo devem ser também descartadas. Se a alma não é o ttpò

de coisa que pode ser desligada de seus cotpos, então na realidade não existímos

entre a morte e a ressurreição, seja com Cristo ou em alguma parte, seja cons-

. ciente ou ínconscientemente. Essa conclusão transmitirá a muitos cristão? um

Im o r t a l id a d e o u R e s s u r r e iç ã o ?

nível de ansiedade existencial. Um custo mais geral é a perda de outra tábua na

plataforma da crença cristã tradicional, arrancada e lançada no picotador da

erudição moderna.6

Não há dúvida de que a moderna erudição bíblica está causando grande

ansiedade existencial” a milhões de sinceros cristãos que crêem em suas almas״

desincorporadas indo para o céu por ocasião da morte. Qualquer desafio a crenças

tradicionalmente acariciadas pode ser desvastador. Contudo, os cristãos compro״

metidos com a autoridade normativa das Escrituras devem dispor״se a reexaminar

as crenças tradicionais, e mudá-las caso se revelem antibíblicas.

Fortes reações emocionais são de se esperar de parte daqueles cujas crenças

são desafiadas pela erudição bíblica. Oscar Cullmann, por exemplo, viu ״se ferre״

nhamente atacado por muitos que faziam fortes objeções a seu livro hnmortality

of the Soul or Resurrcction of the Dead? (Imortalidade da alma ou ressurreição dos

mortos?) Ele escreveu: “Nenhuma de minhas publicações provocou tal entu״

siasmo ou tão violenta hostilidade."7 De fato, a crítica tornou״se tão intensa e

tantos revelaram׳ se ofendidos com suas declarações que ele decidiu manter-se

de liberadamente em silêncio por um tempo. Devo acrescentar que Cullmann

não se deixou impressionar pelos ataques contra o seu livro porque entende

serem baseados não em argumentos exegéticos, mas em considerações de ordem

emocional, psicológica e sentimental.

T áticas de pressão

Em alguns casos, a reação tem tomado a forma de pressão. O respeitado teó­

logo canadense Clark Pínnock menciona algumas das “táticas de pressão” usadas

para desacreditar aqueles eruditos evangélicos que abandonaram o ponto de vista

dualístico tradicional da natureza humana e sua relacionada doutrina de tormen­

to eterno num inferno de fogo. Uma das táticas tem sido associar tais teólogos

com liberais ou com denominações tidas por sectárias, como a dos adventistas.

Escreve Pínock;

Parece que um novo critério para a verdade foi descoberto, segundo o qual, se os

adventistas ou os liberais mantêm algum ponto de vista, esse deve estar errado.

Aparentemente, a defesa de uma verdade pode ser decidida por sua associação e não

precisa ser testada por critérios públicos em debate aberto. Tal argumento, embora

inútil em discussão inteligente, pode surtir efeito com os ignorantes que sâo ludibria­

dos por tal retórica.8

A despeito das táticas de pressão, o ponto de vista holístico da natureza

humana que nega a imortalidade da alma e, em conseqüência, o tormento eterno

dos perdidos no inferno, ganha espaço entre os evangélicos. Seu endosso público

U DEBATE SOBRE A NATUREZA E O DESTINO HUMANOS

por íohn R. W, Stott. pregador popular e teólogo britânico altamente respeitado,

está decerto encorajando tal tendência. Escreve Pinnock:

Numa deliciosa peça de ironia, isto vem criando utna medida de crédito por asso­

ciação, contrariando as táticas mesmas usadas contra ela. Tem-se tornado quase

impossível alegar que somente heréticos e quase-heréticos mantêm essa posição,

embora esteja seguro de que alguns descartarão a ortodoxia de Stott precisamente

sobre esse terreno.9

O próprio Stott expressa ansiedade quanto às consequências divisivas de

seus novos pontos de vista na comunidade evangélica onde é um renomado líder.

Ele escreve:

—á Sinto-me hesitante em ter escrito essas coisas, em parte porque tenho grande respei­

to pela longa tradição que reivindica ser uma correta interpretação das Escrituras,

e nâo a ponho de parte levianamente, e em parte porque a unidade da comunidade

evangélica mundial sempre significou muito para mim. Contudo, o assunto é por

demais importante para ser suprimido, e estou-lhe grato (a Davíd Edwards) por de­

safiar-me a declarar meu atual modo de pensar. fJâo dogmatizo a respeito da posição

a que cheguei. Eu a mantenho tentativamente. Mas eu apelo a diálogo franco entre

O S evangélicos com base nas Escrituras.10

O apelo de Stott por um “diálogo franco entre evangélicos com base nas Es­

crituras” pode ser muito difícil, se não impossível, de materializar-se. A razão é sim­

ples: os evangélicos condicionam-se a seus ensinos denominacionais tradicionais,

assim como os católicos-romanos e ortodoxos orientais. Em teoria, os evangélicos

apelam à sola scriptura, mas na prática muitas vezes interpretam as Escrituras de

acordo com seus ensinos denominacionais tradicionais. Se novas pesquisas bíblicas

desafiam suas doutrinas tradicionais, na maioria dos casos as igrejas evangélicas

preferirão apegar-se à tradição antes que à sola scriptura. A diferença real entre

evangélicos e católicos romanos é que os últimos são pelo menos honestos quanto

à autoridade normativa.

Ser um “evangélico״ significa sustentar certas

,

doutrinas tradicionais funda­

mentais sem questionamento. Quem quer que questione a validade bíblica de uma

doutrina tradicional pode tomar-se suspeito de ser um “herege”. Numa importante

conferência em 1989 para discutir o que significa ser um evangélico, sérias questões

foram suscitadas quanto a se indivíduos como john Stott ou Philip Hughes deve-

riam ser considerados tais, uma vez que adotaram o ponto de vista da imortalidade

condicional e do aniquilamento dos que não se salvarão, O voto para excluir tais

teólogos não se confirmou por pouco.11

Por que os evangélicos são tão teimosos em recusar reconsiderar os ensi­

nos bíblicos sobre a natureza e destino humanos? Afinal de contas, eles toma­

ram a liberdade de mudàr outros ensinos tradicionais. Talvez uma razão de sua

insistência em conservar o ponto de vista dualístíco é que. iss!o causa impacto

sobre muitas outras doutrinas. Fizemos notar no inicio deste capítulo que ò

que os cristãos crêem sobre a composição da natureza humana determina em

grande médida o que crêem sobre o destino humano. Abandonar o dualismo

também provoca o abandono de todo ,um conjunto de doutrinas que resultam

disso, especiàlmente á acariciada crença na consciência da vida após a morte.

Isso pode se chamar ‘4efeito dominó”. Se uma doutrina cai, várias cairão jun­

tamente. Para esclarecer este ponto, consideraremos brevemente algumas das

implicações ■práticas e doutrinárias do entendimento dualístico clássico. Isso

deve alertar o leitor qiianto à complexidade de suas ramificações.

Im o r t a lid a d e o u R e s s u r r e iç ã o ?

Implicações doduallsmo

Im pl ic a ç õ e s d o u t r in á r ia s

׳ ־ v

O ponto de vista do dualismo clássico dá natureza humana tem enormes

implicações doutrinárias e práticas.. Dou trinar iamente, uma série de crenças

deriva do dualismo clássico ou são disso.dependentes em grande medida. Por

exemplo, a crença na transição da alma, por ocasião da morte, para o paraíso,

inferno ou purgatório repousa sobre a crença de que a alma é imortal por na­

tureza e sobrevive ao corpo por ocasião da morte. Isso significa que, se a imor­

talidade iníererite da alma se demonstra um conceito antibíblico, então crenças

populares a respeito do paraíso, purgatório e inferno têm que ser radicalmente,

• modificadas ou mesmo rejeitadas. .

A crença de qué por ocasião da morte as almas dos santos ascendem para

á beatitude do Paraíso tem fomentado a crença· de católicos e ortodoxos no

papel intercessório de Maria e dos santos. Se as almas dos santos estão no céu,

é passível de se presumir que podem interceder em favor dos pecadores neces­

sitados sobre a Terra. Assim, cristãos devotos rezam a Maria e aos santos para

intercederem em seu favor Tal prática é contrária ao ensino bíblico de que “há

um só mediador entre Deus e os homens; Jesus Cristo., homem” (lTm 2:5). Ain­

da mais importante, se a alma hão sobrevive e não pode agir à parte do corpo,

então o ensino todò do papel intercessório de Maria e dos santos deve ser rejei­

tado como uma invenção eclesiástica. Verdadeiramente, um reexame do ponto

de vista bíblico da natureza humana pode ter conseqüências assustadoras para

crenças cristãs há muito acatadas.

Semelhantemente, a crença de que por ocasião da morte as almas daqueles

que são. aptos ao perdão transitam no purgatório, tem levado ao ensino dé que a

O DEBATE SOBRE A NATUREZA E O DESTINO HUMANOS

igreja sobre a Terra tem jurisdição para aplicar os méritos de Cristo e dos santos às

almas que ali sofrem. Isso é realizado mediante a concessão de indulgências, ou sejá,

ã remissão da punição temporária devido ao perdão dos pecados. Tal crença condu-

riu à escandalosa venda de indulgências que detonou a Reforma ·Protestante.

Os reformadores eliminaram a doutrina do purgatório como antibíblica, mas

retiveram a doutrina do trânsito imediato após a morte de almas individuais para

um estado de perfeita bênção (Céu) ou para um estado de contínua punição (zn-

/emo). Uma vez mais, se a crença na sobrevivência e funcionamento da alma à

parte do corpo se demonstrar antibíblica, então crenças, populares a respeito do

purgatório, indulgências, e ida das almas para o céu ou inferno devem ser rejeita-

das também como criações eclesiásticas.

A obra que os reformadores começaram eliminando o purgatório devia ser

completada com a redefinição do paraíso e do inferno segundo as Escrituras, e

não segundo as tradições eclesiásticas. E improvável que essa monumental tare­

fo seja empreendida por qualquer igreja protestante hoje. Qualquer tentativa de

modificar ou rejeitar doutrinas tradicionais é muitas vezes interpretada como uma

traição da fé e pode causar divisão e fragmentação. Este é um preço muito elevado

que a maioria das igrejas não se dispõe a pagar.

A IMORTALIDADE DA ALMA DEBILITA O SEGUNDO ADVENTO ־

O dualismo tradicional também tem contribuído para enfraquecer a espe­

rança do advento. A crença na ascensão das almas para. o Céu pode obsciirècer e

eclipsar a expectativa do segundo advento. Se por ocasião da morte o crente sobe

imediatamente para a beatitude do paraíso para estar com o Senhor, dificilmente

se terá qualquer real senso de expectação para que Cristo desça para ressuscitar os

santos adormecidos. À preocupação primária desses cristãos é alcançar o paraíso

ãmediatamente, mesmo que nã formá de uma alma desincorporáda, Essa preo­

cupação dificilmente dá margem a qualquer interesse na vinda do Senhor e na

ressurreição do corpo.

Crer na imortalidade da alma significa considerar-se, pelo menos em parte,

como um indivíduo imortal no sentido de ser incapaz de deixar a existência. Tal

crença encoraja confiança em, si mesmo e na possibilidade de a alma subir ao

Senhor. Por outro lado, crer na ressurreição do corpo significa que a pessoa não

crê em si mesma ou em almas desincorporadas indo para o Senhor; antes, crê em

Cristo, que retornara para erguer os mortos e transformar os vivos. Isso significa

crer na descida do Senhor à Terra para encontrar crentes incorporados, em vez de

na suínda de almas desincorporadas para encontrar o Senhor.

No Novo Testamento a parousia ressalta uma consumação final realizada

por um movimento de descida de Cristo à humanidade, antes que de almas irtdi-

Im o r t a lid a d e o u R e s s u r r e iç ã o ?

viduais subindo até Ele. A esperança do advento não é uma vaga expectativa sem

nexo, mas um encontro verdadeiro sobfe a Terra entre os crentes incorporados e

Cristo no glorioso dia do seu retomo. Por ocasião dessa reunião real ocorrerá uma

transformação que afetará a humanidade e a natureza. Essa grande expectativa é

obscurecida e eliminada com a crença da imortalidade individual e ventura ceies-

tial imediatamente após a morte.

Outra implicação significativa da esperança individualista de imortalidade

imediata é que eia supera a esperança bíblica corporativa de restauração derradei­

ra desta criação e de suas criaturas (Rm 8:19*23; ICo 15:24-28). Quando o único

futuro que realmente interessa é a sobrevivência individual da alma após a morte,

a angústia da humanidade pode ter somente interesse periférico e o valor da re­

denção divina para este mundo inteiro é ignorado em grande medida. O resultado

final dessa crença é, como fez notar Abraham Kuyper, que ״os cristãos, em sua

maioria, não pensam muito além de sua própria morte”.12

F a l sa s c o n c e p ç õ e s so b r e o m u n d o p o r v ir

O dualismo clássico também tem fomentado idéias errôneas a respeito do

mundo vindouro. O conceito popularizado de paraíso como um retiro espiritual

em alguma parte do espaço sideral onde almas glorificadas passam a eternidade em

eterna contemplação, tem sido mais inspirado pelo dualismo platônico do que pelo

realismo bíblico. Para Platão, os componentes materiais deste mundo eram maus e,

eonseqüentemente, indignos de sobreviver. A meta seria atingir o reino espiritual

onde almas libertas da prisão corporal desfrutam a bem-aventurança eterna.

No decurso

,

de nosso estudo, veremos que tanto o Antigo quanto o Novo

Testamento rejeitam o dualismo entre o mundo material embaixo e o reino es­

piritual acima. À salvação final inaugurada pela vinda do Senhor é considerada

nas Escrituras não como um escape deste mundo, mas uma transformação do mes­

mo. O ponto de vista bíblico do mundo por vir não é um retiro espiritual celeste,

habitado por almas glorificadas, mas este planeta Terra físico, habitado por santos

ressuscitados (Is 66:22; Ap 21:1).

I m p l ic a ç õ e s p r á t ic a s

Num nível mais prático, o ponto de vista dualístíco clássico tem fomentado

o cultivo da alma à parte do corpo e a supressão de apetites físicos e impulsos

salutares naturais. Contrariamente à perspectiva bíblica da bondade da criação di­

vina, inclusive os prazeres físicos do corpo, a espiritualidade medieval promovia a

mortificação da carne como um meio de alcançar a divina meta da santidade. Os

santos são retratados como pessoas que se dedicam primariamente à vita contem­

O DEBATE SOBRE A NATUREZA E O DESTINO HUMANOS

plativa (vida contemplativa), desligando-se da vita activa (vida secular). Uma vez

que a salvação da alma tem sido vista como mais importante do que a preservação

do corpo, as necessidades físicas do corpo muitas vezes têm sido íntencionalmente

ignoradas ou até suprimidas.

~4> A dicotomia entre corpo e alma, o físico e o espiritual, está ainda presente no

pensamento de muitos cristãos hoje. Muitos ainda associam redenção com a alma

humana, antes que com o corpo humano. Descrevemos a atividade missionária da

Igreja como a de ״salvar almas”. Isso deixa implícito que as almas são mais impor­

tantes do que os corpos. Conrad Bergendoff faz a observação precisa de que

os evangelhos não fornecem base para uma teoria de redenção que salve almas à

parte dos corpos aos quais pertencem. O que Deus ajuntou, filósofos e teólogos

não deviam separar. Mas estes têm sido culpados de divorciar os corpos e almas

dos homens que Deus criou como um por ocasião da criação, e a culpa deles não

é diminuída por seu apelo de que assim a salvação seria facilitada. Até termos

uma teoria de redenção que atenda toda a necessidade do homem falhamos em

compreender o propósito daquele que se fez carne para que pudesse ser capaz de

salvar a humanidade.13

O SURGIMENTO DO MODERNO SECULAR1SMO

Alguns eruditos mantêm que o dualismo clássico tem sido a instrumentalída-

de no surgimento do secularismo moderno e na progressiva erosão da influência

cristã sobre a sociedade e a cultura.H Acham uma relação entre o secularismo

moderno que exclui a religião da vida, e a distinção corpo-alma da cristandade

(tradicional. Também vêem uma relação entre o secularismo e a distinção natu­

reza-graça articulada especialmente por Tomás de Aquino. Segundo este último,

a razão natural é suficiente para viver a vida natural deste mundo, enquanto a

graça se faz necessária para viver a vida espiritual e alcançar a meta da salvação.

Assim, a distinção escolástica corpo-alma permitiu que a vida fosse dividida em

dois compartimentos estanques: vita activa e vita contemplativat ou, poderíamos

dizer, vida secular e vida espiritual

Essa distinção fínalmente conduziu à crença de que o cristianismo devia

preocupar-se basicamente com a salvação das almas das pessoas, enquanto o

estado devia ser responsável pelo cuidado do corpo. Isso significa que o estado,

e não a igreja, deve preocupar-se com educação, ciência, tecnologia, sistemas

econômicos, questões sociais e políticas, ou cultura geral e valores públicos.

O resultado da distinção corpo-alma é que os cristãos têm submetido

vastas áreas da vida, valores morais e conhecimento, às forças do secularismo

e humanismo. Os métodos de ensino e os compêndios escolares, mesmo nas

escolas cristãs da nação, refletem mais filosofias humanísticas do que pontos

de vista bíblicos O impacto total do dualismo corpo ־■alma é impossível de

avaliar. Dividir os seres humanos em cor£o e alma tem promovido toda sorte

de falsas dicotomias na vida humana.

O DUALISMO NA LITURGIA .

A influência do dualismo pode ser vista até mais frequentemente em mui­

tos hinos, orações e poemas cristãos. A sentença de abertura da oração fúnebre

que se acha no The Book ofCommon Prayer [Livro de oração comum] da Igreja

da Inglaterra é nitidamente dualística: “Em face de que agradou ao Deus Todo-

Poderoso por sua grande misericórdia tomar para si a alma de nosso querido

irmão que aqui parte, portanto confiamos o seu corpo ao solo.15״ Declaração

noutra prece ressalta novamente uma clara concepção dualística para a exis-

têncià física: “Cóm quem as almas dos fiéis, após terem sido libertas do peso da

carne, estão em gozo e felicidade.״

A noção platônica da libertação da alma da prisão corporal é claramente

estabelecida nas linhas do poeta cristão John Donne: “Quando os corpos a suas

tumbas; almas das tumbas removem.16״ Muitos de nossos hinos são poemas dua-

lísticos mal-diifarçados, Quão frequentemente nos é pedido para considerar esta

vida presente como urna “cansativa peregrinação״ e esperar o escape final aos

céus, “nas maiores alturas”.

Exemplos de hinos que manifestam hostilidade para com esta vida terreal,

escapismo religioso, e visão doutro-mundo podem ser facilmente encontrados nos

hinários da maioria das denominações cristãs. Alguns hinos retratam a Terra como

uma prisão da qual o crente e liberto para ascender ao lar celestial: “A casa de meu

Pai está edificada no alto, bem no além, acima do céu estrelado. Quando liberto

desta prisão terreal, aquela mansão celeste será minha.” Outros hinos descrevem

o cristão como um forasteiro que mal pode esperar para deixar este mundo: “Aqui

neste país tão escuro e triste, por muito tempo tenho vagueado solitário e cansa­

do.״ “Sou apenas um estranho aqui, o céu é o meu lar; a Terra é um deserto triste,

o céu é-o mèu lar.” “Desejo viver acima.do mundo... no planalto celestial.”

Os cristãos que acreditam nas palavras desses hinos podem decepcionar-se

um dia quando descobrirem que o seu eterno lar não é “acima do mundo... no

planalto celestial”, mas aqui embaixo, sobre a Terra. Este é o planeta que Deus

criou, redimiu e por fim restaurará para nossa eterna habitação. A.visão bíblica do

mundo por vir é explorada no capítulo 7. .

As implicações de amplo alcance e práticas do ponto de vista dualístico da

natureza humana que acabamos de considerar devem servir para impressionar o lei­

tor com a importância do tema ora sob consideração. O que abordamos neste livro

não é uma mera questão acadêmica, mas um ensino bíblico fundamental que causa

impacto direta ou indiretamente sobre uma porção de práticas e crenças cristãs.

Im o r t a lid a d e o u R e s s u r r e iç ã o ?

A s IMPUCAÇÓES DO HOUSMO BÉBUOO

V isão p o s it iv a d o f ís ic o e e s p ir it u a l

Como o dualismo clássico, o hoíísmo bíblico afeta o entendimento que temos

de nós mesmos, deste mundo presente, da redenção e de nosso destino Anal. Uma

vez que no desenrolar deste estudo examinamos extensamente várias das implicações

doutrinárias e práticas do holismo bíblico, somente aludirei a algumas delas aqui.

O ponto de vista holístico-bíblico da natureza humana, segundo o qual nosso

corpo e alma são uma unidade indissolúvel, criados e redimidos por Deus, desafia-nos

a considerar posítivamente tanto os aspectos físicos quanto espirituais da existência.

Honramos a Deus não só com a mente, mas também com o corpo, porque nosso corpo

é o “templo do Espírito Santo״ (ICo 6:19). As Escrituras nos admoestam a apresehtar

nofi»*,acorpos em sacrifício vivo״ (Rm 12:1). fcso significa auè a maneira como tia-

.«amos nossos cornos reflete a condição espiritual de nossas almas. Se poluímos nossos

copos com fumo, drogas e má alimentação, não só provocanios a poluição física de

nossos corpos, como também a poluição espiritual de nossas álmas.

Henlee H. Barnette observa que “o que as pessoas fazem por e cqm outros e

aguo seu meio-ambiente

,

depende em grande medida do que pensam sobre Deus,

ajiatureza, eles próprios e o seu destino17 .״,Quando os cristãos consideram״se e ao

mundo presente holisticamente como objetos da boa criação e redenção de Deus,

seião tanto convencidos quanto compelidos a agir como mordomo$ de Deus de

»eus corpos, bem como da ordem criada.

P reocupação com a pessoa integral

O holismo bíblico desafia-nos à preocupação com a pessoa integral. Em

n a pregação e ensino, a igreja deve atender não só as necessidades espirituais

da alma, como as necessidades físicas do corpo. Isso significa ensinar às pessoas

- como manter a saude física e emocional. Significa'que os programas da igre-

']a n ã o devem negligenciar as necessidades do corpo. Alimentação aptopriada,

exercícios e atividades ao ar livre devem ser incentivados como aspectos impor-

tantes do viver cristão.

Aceitar a perspectiva holístico-bíblica da natureza humana significa optar

por uma metodologia holística em nossos esforços evangelísticos e missionários.

Essa metodologia consiste não só em salvar as “almas” das pessoas, mas também

melhorar suas condições, de vida atuando em áreas tais como saúde, regime ali­

m entar e educação. O alvo deve ser o de servir ao mundo, não evitá-lo,« As ques-

fSesde justiça social, guerra, racismo, pobreza,.e desequilíbrio econômico devem

-fazer parte das preocupações daqueles que creem qúe Deus está operando para

restaurar a pessoa integral e o mundo inteiro. v

.O DEBATE SOBRE A NATUREZA £ O DESTINO HUMANOS

Im o rta lid a d e o u R ess u r r eiç ã o ?

A educação cristã deve promover o desenvolvimento da pessoa inteira. Isso

significa que o programa escolar deve vitfar ao desenvolvimento dos aspectos men­

tal, físico e espiritual da vida. Um bom programa de educação física deve ser

considerado tão importante quanto os programas acadêmico e religioso. Os pais e

professores devem preocupar-se em ensinar bons hábitos alimentares, o apropria­

do cuidado do corpo e um programa regular de exercício físico.

O conceito bíblico da pessoa integral também tem implicações para a medici­

na. A ciência médica recentemente desenvolveu o que é conhecido como medicina

holística. Os profissionais de medicina holística 4‘destacam a necessidade de consi­

derar a pessoa integral, incluindo condição física, nutrição, constituição emocional,

estado espiritual, valores de estilo de vida, e meio ambiente18.״ Na cerimônia de

graduação de 1975 da Escola de Medicina da Universidade Johns Hopkins, o Dr.

Jerome D. Frank disse aos formandos: “Qualquer tratamento de uma enfermidade

que não ministre também ao espírito humano é grosseiramente deficiente.19״ A cura

e manutenção da saúde física deve sempre envolver a pessoa total.

R e d e n ç ã o c ó s m ic a

O ponto de vista hoiístico da Bíblia quanto à natureza humana pressupõe uipa

visão cósmica da redenção que abrange o como e a alma, o mundo material e o es-

22 pirituah A separação entre corpo e alma ou espírito é frequentemente comparada à

divisão entre o reino da criação e o reino da redenção. O último tem sido associado

em grande medida, tanto no catolicismo quanto no protestantismo, à salvação das

almas dos indivíduos à custa das dimensões física e cósmica da redenção. Os santos

são muitas vezes retratados como peregrinos que vivem sobre a Terra mas são des­

ligados do mundo, cujas almas na morte deixam de imediato seus corpos materiais

para ascender a um lugar abstrato chamado “céu”. Esse ponto de vista reflete o dua­

lismo clássico, mas fracassa, como veremos ao longo deste estudo, em representar o

ponto de vista holístico-bíblico da criação humana e sub-humana.

Notamos anteriormente que o dualismo tradicional produziu uma atitude

de desprezo para com o corpo e o mundo natural. Esse distanciamento do mundo

reflete-se em linguagem de hinos tais como “Este mundo nao é meu lar”, “Sou um

estranho aqui, o Céu é o meu lar; a terra é um árido deserto, o Céu é o meu lar”.

Tal atitude de desdém para com nosso planeta está ausente dos Salmos, o hinário

hebreu, onde o tema central é o louvor de Deus por suas obras magníficas. No

Salmo 139:14, Davi declara: “Eu te louvarei pois fui formado de modo tremendo

e maravilhoso: grandiosas são as tuas obras; isso minha alma conhece muito bem”

(NIV). Aqui o salmista louva â Deus por seu maravilhoso corpo, um fato bem co­

nhecido por sua alma (mente). Este é um bom exemplo do pensamento hoiístico,

onde o corpo e alma são parte da maravilhosa criação de Deus.

v_/ LJfcJJAih bLJtíKt A (SIA1 UKt£A t U Dt5 i ilNU I1U MANUS

No Salmo 92, o salmista insta todos a louvarem a Deus com instrumentos

musicais, porque, diz ele: “Tu, ó Senhor, alegraste-me por tuas obras; canto de

alegria pelas obras de tuas mãos. Quão grandes são as tuas obras, ó Senhor! ״ a

92:4-5). O regozijo do salmista com seu maravilhoso corpo e maravilhosa criação

baseiam-se em sua concepção holística do mundo criado como parte integral de

todo o drama da criação e redenção.

O REALISMO BÍBLICO

O ponto de vista do holismo bíblico também causa impacto sobre nossa visão

do mundo por vir. No capítulo 7 aprenderemos que a Bíblia não retrata o mundo por

vir como um paraíso etéreo onde almas glorificadas passarão a eternidade trajando

vestes brancas, cantando, tocando harpas, orando, perseguindo nuvens e bebendo o

néctar dos deuses. Antes, a Bíblia fala dos santos ressurretos habitando este planeta

purificado, transformado e tomado perfeito por ocasião da vinda do Senhor e em

(unção disso (2Pe 3:11-13; Rm 8:19-25; Ap 21:1). Os “novos céus e uma nova ter­

ra” (Is 65:17) não são um retiro espiritual remoto e inconseqüente nalgum recanto

do espaço; antes, são o céu e a Terra presentes renovados à sua perfeição original.

Os crentes entram na nova terra, não como almas desincorporadas, mas

como pessoas ressuscitadas em seus corpos (Ap 20:4; Jo 5:28-29; lTs 4:14-17).

Conquanto nada impuro possa entrar na Nova )erusalém, afirma-se que “os reis

da terra trarão para ela a sua glória... a ela trarão a glória e honra das nações” (Ap

21:24, 26). Tais versos sugerem que tudo quanto tem real valor nos antigos céu e'

Terra, inclusive as realizações da inventividade artística e conquistas intelectuais,!

encontrarão seu lugar na. ordem dia eternidade ^própria imagem da *Tidade” I

transmite a idéia de atividade, vitalidade, criatividade e relacionamentos reais.

É pena que essa visão terrena fundamentalmente concreta do novo mundo de

Deus retratado nas Escrituras tenha sido em grande parte perdida de vista e substi­

tuída na religiosidade popular por um conceito etéreo, espiritualizado do Céu. O úl­

timo tem sido influenciado mais pelo dualismo platônico que pelo realismo bíblico.

C o n c l u s ã o

Historicamente, duas visões principais, radicalmente diferentes da natureza

humana, têm sido mantidas. Uma é chamada de clássica e é conhecida como ho-

fano bíblico. O ponto de vista dualístíco mantém que a natureza humana consiste

de um corpo material, mortal, e uma alma espiritual, imortal. A última sobrevive

à morte do corpo e parte para o Céu, ou purgatório ou inferno. Por ocasião da res­

surreição, a alma é reunida ao corpo. Essa concepção dualística tem exercido um

enorme impacto sobre a vida e pensamento cristãos, afetando a visão que as pessoas

têm da vida humana, deste mundo presente, da redenção e do mundo do além.

Im o r t a lid a d e o u R e s s u r r e iç ã o ?

Em tempos recentes, a visão dualística da natureza humana tem sofrido ata׳

ques de eruditos bíblicos, historiadores eclesiásticos, filósofos, e cientistas. Peritos

bíblicos examinaram os termos e textos antropológicos e concluíram que o ponto

de vista bíblico da natureza humana não é de modo algum dualístico, mas clara׳

mente holístico. Muitas vozes de diferentes tendências estão afirmando hoje que

o dualismo está perdendo terreno para o holismo.

A pesquisa precedente do debate em andamento quanto à posição bíblica

da natureza humana demonstrou a importância

,O INCONSCIÊNCIAUma terceira razão para o uso dajnetáfora do “sono” é sugerida pelo fato de que não há consciência do lapso de tempo no sono. Assim, a metáfora propicia uma representação adequada do estado de inconsciência dos falecidos entre a morte e a ressurreição. Eles não têm consciência da passagem do tempo. Em seus primeiros escritos, Lutero expressou o seu pensamento de uma forma bem vívida: ­Assim como alguém que caí no sono e atinge a manhã sem esperar quando des״perta, sem saber o que lhe ocorreu, de igual modo subitamente despertaremos no ultimo dia sem saber como chegamos à morte e por ela passamos”64. Novamente Lutero escreveu: ״Dormiremos até que Ele venha e bata na pequena tumba e diga: Doutor Martinho, erga-se! Então me levantarei num momento e serei feliz com Ele para sempre”65.Para efeito de precisão, deve-se assinalar que mais tarde Lutero rejeitou em grande escala a noção de sono inconsciente na morte, supostamente devido ao vigoroso ataque de Calvino a essa doutrina. Em seu Commenuxry on Genesis [Co­mentário sobre Gênesis], que redigiu em 1537, Lutero comenta: “A alma que par­tiu não dorme nessa maneira [sono regular]; é, falando-se mais apropriadamente, desperta e tem visão e conversação com os anjos e com Deus”60. A mudança de posição de Lutero do estado inconsciente para consciente na morte apenas seiyg_ para mostrar que mesmo reformadores influentes não estavam isentos de pressões , teológicas de seu tempo.i i . V l o r v w u i u L i v ^ n l / / i «-A semelhança de Lutero, a maioria dos cristãos hoje crê que a metáfora do 41sono” não é empregada na Bíblia para ensinar o estado inconsciente, mas que “haverá uma ressurreição, um despertar67״. Alguns eruditos alegam que a morte é comparada a um sono “não porque a pessoa esteja inconsciente, mas porque os mortos não retomam à Terra nem estão cônscios do que se passa onde outrora viveram’1.08 Em outras pala­vras, os mortos estão inconscientes no que tange ao que acontece sobre a Terra, mas bastante conscientes quanto a sua vida no Céu ou inferno.Essa conclusão não tem por base as Escrituras, mas o emprego da metáfora de ,*sono’1 na literatura intertestamentária. Por exemplo, Enoque, datado de cerca do ano 200 a.G, tala dos justos como tendo “um longo sono11 (100:5), mas suas almas estando conscientes e ativas no Céu (102:4, 5; c í 2 Baruque 36:11; 2 Esdras 7:2). Após examinar essa literatura, John Cooper conclui: “As metáforas de sono e descanso são empregadas quanto a pessoas no estado intermediário que estão conscientes e ativas, mas não em formas corporais, terrenas”69.O significado bíblico da metáfora do “sono״ não pode ser decidido com base em seu emprego na literatura intertestamentária, porque, como vimos, durante esse período os judeus helenistas tentaram harmonizar os ensinos do Antigo Testamento com a filosofia dualística grega de seu tempo. O resultado foi a adoção de crenças tais como a imortalidade da alma, a recompensa ou punição dadas imediatamente após a morte e orações pelos mortos. Taís crenças são estranhas à Bíblia.Nosso estudo da metáfora de “sono" no Antigo e no Novo Testamento demonstrou que a metáfora deixa implícito um estado de inconsciência que perdurará até o despertar da ressurreição. É digno de nota que em 1 Coríntios 15, Paulo emprega 16 vezes o verbo egetro, que literalmente significa “despertar” do sono.'0 O reiterado contraste entre o dormir e o acordar é impressionante. À Bíblia emprega o termo “sono” com frequência porque envolve uma verdade vital: a de que os mortos que dormem em Cristo estão inconscientes de qualquer lapso de tempo até sua ressurreição. O crente que morre em Cristo adormece e descansa inconsciente até ser despertado quando Cristo o chamar de volta à vida por ocasião de sua vinda,O SENTIDO E FUNDAMENTO DA IMORTALIDADEA imortalidade na Bíblia não é uma posse humana inata, mas um a tribu to divino. O termo “imortalidade” deriva do grego athanasia, que significa “ausêiv cia de morte”, e, portanto, existência infindável. Esse termo ocorre somente duas vezes; primeiro com relação a Deus, “o único que possui imortalidade” (lTm 6:16) e, em segundo lugar, com relação à mortalidade humana que deve revestir-se da imortalidade_£iCo !5;.53J por ocasião de sua ressurreição. A últi׳Im o r ta lid a d e o u R essurreição?ma referência nega a noção de uma imortalidade natural da alma, porque decla- ra que a imortalidade é algo de que os santos ressuscitados se ״revestirão״. Não é algo de que já sejam possuidores,base da imortalidade’1, como declara Vem Hannah, “é soteriológica e não an tropologica”. 71*Q que isso significa é que a imortalidade é um dom divino aos salvos e não uma possessão humana natural. Como R T. Forsyth declarou, “uma segura crença na imortalidade não se assenta onde a filosofia a coloca, mas onde a religião a situa, Não se fundamenta sobre a natureza do organismo psíquico, mas sobre sua relação com Outro”,72 Este “Outro” é Jesus Cristo, que “não só destruiu a morte, como trouxe à luz a vida e a imortal idade” (2TmEm parte alguma a Bíblia sugere que a imortalidade é uma qualidade na­tural ou direito dos seres humanos. A presença da “árvore da vida” no jardim do Eden indica que a imortalidade era condicional à participação do fruto de tal árvore. As Escrituras ensinam que a imortalidade deve ser “buscada” (Rm 2:7) e “revestida” (ICo É, como a “vida eterna״, um dom de Deus (Rm6:23) a ser herdado (Mt 19:29) por conhecer a Deus ()o 17:3) através de Cristo (Jo 14:19; 17:2; Rm 6:23). A perspectiva de Paulo da imortalidade está liga­da unicamente à ressurreição de Jesus (ICo 15) como fundamento e penhor da esperança do crente.75 Os que insistem em encontrar a idéia filosófica de imortalidade da alma na Bíblia ignoram a revelação de Deus e inserem idéias *40 do dualismo grego na fé bíblica.C onclusãoA crença tradicional e popular de que a morte não é a cessação da vida para a pessoa integral, mas a separação da alma imortal do corpo mortal, pode ser identificada com a mentira de Satanás “E certo que não morrereis” (Gn 3:4). Essa mentira persiste em diferentes formas ao longo da história humana até" o presente. Hoje, a crença da sobrevivência da alma, seja no paraíso ou no infer­no, é promovida não por meio das toscas representações literárias e artísticas da Idade Média, mas por meio da polida imagem de médiuns, paranormais, de sofisticadas pesquisas “científicas” em experiências de quase-morte, e da popu­lar canalização da Nova Era com espíritos do passado. Os métodos de Satanás mudaram, mas seu objetivo é o mesmo: fazer as pessoas crerem na mentira de que não importa o que façam, não morrerão, mas se tornarão como deuses para viver para sempre.O ponto de vista tradicional da morte limita a experiência da morte ao cor­po, uma vez que a alma continua sua existência. Vem Hannah apropriadamente declara que “tal redefinição radical da morte é, de fato, uma negação da morte - uma definição, sem duvida, que a ‘sutil serpente’ de Gênesis 3 acharia muitoA VISÃO BÍBLICA DA MORTEatraente”74. A Bíblia leva a morte muito mais a sério. A morte é o último inimigo (lCo 15:26) e não o libertador da alma imortal. Como Oscar Cullmann destaca que “a morte é a destruição de toda a vida criada por Deus. Portanto, é a morte, e não o corpo, que deve ser vencida pela ressurreição”/ 5Helmut Thielicke fez a profunda observação de que a idéia de imortalidade da alma é uma forma de escapismo que permite à pessoa “real” evadir-se da morte. É uma tentativa de desarmar a morte. Ele prossegue explicando quepodemos apegar-nos ídealisticamente a alguma “região inviolável do ego”, mas a morte não é um "passar adiante”, e sim um "descer", e não deixa qualquer espa­ço para o romanticismo ou idealismo. Não devemos desvalorizar nem obscurecer a realidade da sepultura mediante a idéia da imortalidade. A perspectiva cristã é a ressurreição, não a imortalidade da alma/,0Nossa única proteção contra as falsas concepções populares da morte é um claro entendimento do que a Bíblia ensina sobre a natureza da morte. Des­cobrímos que tanto o Antigo quanto o Novo Testamento claramente ensinam que a morte é a extinção da vida para a pessoa integral. Não hã lembrança nem consciência na morte (SI 8:5; 1 4 6 ^ jO :9; 115:17; Ec 9:5). Não há existência independente do espírito ou alma à parte do corpo. A m ort^é a^perda do ser totai e não meramente a perda do bem^£Sí.ar. A pessoa inteira repousa na se­pultura num estado de inconsciência caracterizado na Bíblia como “sono”. O “despertar” desse sono terá lugar quando Cristo vier e chamar de volta à vida os santos adormecidos.A metáfora do “sono” é freqüentemente utilizada na Bíblia para caracte­rizar o estado dos mortos porque representa adequadamente o estado incons­ciente dos mortos e seu despertar no dia da vinda de Cristo. Sugere que não há consciência do lapso de tempo entre a morte e a ressurreição. A metáfora do “sono” é verdadeíramente uma bela e terna expressão que indica que a morte não é o destino humano final, porque haverá um despertar do sono da morte na manhã da ressurreição.Um destacado desafio para nossa conclusão de que a morte na Bíblia é a extinção da vida para a pessoa integral deriva de interpretações infundadas de cinco textos neotestamentários (Lc 16:19-31; 23:42-43; Fp 1:23; 2Co 5:1-10; ^Ap 6:9-11) e de duas palavras, sheol e hades, empregadas na Bíblia para descre­ver o lugar de habitação dos mortos. Muitos cristãos encontram nesses textos e palavras bíblicas apoio para sua crença na existência consciente da alma após a morte. Prosseguiremos examinando no capítulo 5 esses textos e palavras que dão enfoque à condição dos mortos durante o período intermediário entre a morte e a ressurreição, comumente chamado de “estado intermediário”.Imortalidade ou Ressurreição׳R e f e r ê n c i a s1 Ray S. Anderson» Theology, Death and Dying (Nova York, 1986), 104.2 Ver Hans Schwarz, 1'Luther's Understanding o f Heaven and Hell”, interpreting Luther s Legacy,ed. F. W. M euser e S. D. Schneider (Mineapolis, 1969), 83-94·O ׳ texto dessa obra é encontrado em Tracts and Treatises of the Reformed Faith, de Calvino, trad.H. Beveridge (Grand Rapids, 1958), Vol. 3, 4 1 3 4 9 0 .־4 Ver, por exemplo, Charles Hodge, Systematic Theology (Grand Rapids, 1940), Vol. 3 .W ;״ 713-30G. T Shedd, Dogmatic Theology (Grand Rapids, n.dL), Vol. 2, 591-640. G. C. Berkouwer, The Return o/Christ (Grand Rapids, 1972), 32 ־64. Westminster Confession, chap. 32, como cirado por John H. Leith, ed., Creeds of the Churches ׳(Atlanta, 1977), 228,6 Ver David Hume, A Treatise of Human Nature (Publicado em 1739). Para uma breve mas ilumina- dora pesquisa daqueles que atacavam a crença na vida do além-túmulo, bem como os que revi­veram tal crença, ver Robert A, Morey, Death and the Afterlife (Mineapolis, 1984), 173-184. f K, Osis e E. Haraldson, At the Hour o f Death (Avon, 1977), 13.8 Ibid., 13-14. Ver também W. D. Rees, “The Hallucinations of Widowhood”, RMJ 4 (1971), 37-41; G. N. M. Tyrrell, Apparitions (Duckworth, 1953}, 76-77.9 Paul Badham e Linda Badham, Im??iorfaJity or Extinction? (Totatwa, Nova Jersey, 1982), 93-94. IJ Ibid.» 94.11 Ibid., 98.12 Ibid., 95-98.14 Estas características são tomadas do relatório do psiquiatra americano Raymond A. Moody, que escreveu dois livros originais sobre este assunto, Life After Life (1976) e Reflections on Life After Life (1977). O relatório de Moody é citado por Hans Schwarz (referência 14), 4 0 4 1 -־14 Para uma discussão de experiências de quase-morte ao longo da história, ver Hans Schwan,Beyond the Gates of Death; A Biblical Examination of Evidence for Life After Death (Mineapolis, 1981), 37-48.15 Platão, Republic, 10, 614, 621, em Edith Hamilton e H untington Cairns, eds., The CollectedDialogues of Plato including the Letters (Nova York, 1964), 839, 844·16 Ibid., 844. Ver C. S. King, Psychic and Religious Phenomena (Nova York, 1978). Para literatura adicional ׳‘sobre o assunto, ver Stanislav Grof e Christina Grof, Beyond Death;The Gates of Consciousness (Nova York, 1989); Maurice Rawlings, Beyond Death's Door (Nova York, 1981); John J. H ea­ney, The Sacred and the Psychic: Parapsychology and the Christian Theology (Nova York, 1984); Hans Schwarz, Beyond the Gates o f Death: A Biblical Examination of Evidence for Life After Death (Mineápolis, 1981). lá Paul Badham e Linda Badham (referência 9), 88.19 Na capa de R. A. Moody, Life after Life (Nova York, 1975).20 Ibid., 1S2.21 Editorial, Lancet (24 de junho de 1978).21 Paul Kurtz, “Is There Life After Death?”, uma dissertação submetida à Oitava Conferência Internacional sobre a Unidade das Ciências, Los Angeles, novembro de 1979.25 Paul Badham e Linda Badham (referência 9), 81.24 Ray S. Anderson (referência 1), 109.25 K. Osis e E. Haraldsson (referência 7), 197.26 Alguns dos estudos significativos sobre o movimento Nova Era são: Vishal Mangahvadi, Whenthe Nerv Age Gets Old: Looking for a Greater Sp>frirî affiw (Downers Grove, Illinois, 1992); TedA VISÃO BÍBLICA DA MORTEPeters, The Cosmic Sei/, A Penetrating Look at Todays New Age Movements (Nova York, 1991); M ichael Perry, Gods Within: A Cnricni Guide to the New Age (Londres, 1992); Robert Basil, ed., Nor Necessarily the New ,Age (Nova York, 1988).2' Elliot Miller, A Crash Course on the New Age Movement (Grand Rapids, 1989), 183.Ibid., 141.24 Ibid., 144·50 Lynn Smith, ‘T h e New, Chic Metaphysical Fad of Channeling", Los Angeles Times (5 de de ­zembro de 1986), Parte V״ A núncio publicitário, The Whole Person, julho de !987, 1.t: Ver Nina Easton, “Shirley MacLaine’s Mysticism for the Masses”, Los Angeles Times Magazine (6 de setembro de 1987), 8.” Alan Vaughan, “Channels-Historic Cycle Begins Again”, Mobtus Reports (primavera/verão 1987), 4-14 “Jesus” (ao longo de Virginia Essene, “Secret Truths - W hat Is Life?”). Life Times, 1, p. 3, como citado em Elliot Miller {referência 27), 172.35 Elliot Miller (referenda 27), 178,36 Oscar Cullmann, “Immortality of the Soul or Resurrecdon of the Dead?” em Jmmomhty andResurrection. Death in the Western World: Two Conflicting Currents of Thought, Krister Stendahl, ed., (Nova York, 1965), 12-20.37 Ibid., 16, 17. w Ibid., 19,ia Ibidem.4,·' Catechism of the Catholic Church (Roma, 1994), 265.41 Augustus Hopkins Strong, Systematic Theology {Old Tappan, Nova Jersey, 1970), 982.42 Henry Clarence Thiessen, Lectures in Systematic Theology (Grand Rapids, 1979), 338.42 Francis Pieper, Christian Dogmatics, trad. Theodore Engelder (St. Louis, 1950), Vol. 1, 536.44 Paul A khaus, Die Lenten Dinge (Gutersloth: Alemanha, 1957), 15745 Ibid., 155 4i> Ibidem.47 Ibid., 156.* Ibid., 158.40 John A. T. Robinson, The Body, A Study in Pauline Theology (Londres, 1957), 14. v Taito Kantonen, Life After Death (Philadelphia, 1952), 18.51 E. Jacob, “Death”, The Interpreters Dictionary o f the Bible {Nashville. 1962), Vol. 1, 802.H ’־־ erm an Bavink, "D eath”, The International Standard Bible Encyclopaedia (Grand Rapids, i960), VoL 2,812.E. Jacobs (referenda 51), 803.>4 Howard W. Tepker, “Problems in Eschatology: The Nature of D eath and the Intermediate State״, The Springflelder (verão de 1965), 26.” Basil K C. Atkinson, Life and Immortality (Taunton, Inglaterra, s.d.), 38.Ênfase suprida.Ênfase suprida.* W. Robertson Nicoll, ed.rE ^osiio rs Bible (Nova York, 1908), 362.54 Ênfase suprida.
Imortalidade ou Ressurreição - Teologia (2024)

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